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MOMENTO DE ESCOLHA

No documento É Preciso Algo Mais (Elisa Masselli) - PDF (páginas 174-185)

“É PRECISO ALGO MAIS” _ ELISA MASSELLI

“Assim que seus pais saíram do quarto, Artur levantou-se e foi ao banheiro.

Novamente olhou-se no espelho. As olheiras continuavam grandes, seus olhos estavam vermelhos e inchados. Já não era só por causa da droga, mas também pelo muito que havia chorado. Olhando-se no espelho, pensou:

"Eles são realmente os melhores pais do mundo. Por que não confiei neles? Mas, depois de tudo que passei esta noite e de ver o sofrimento em seus rostos, nunca mais usarei cocaína ou qualquer outra droga. Irei para a clínica. Sei que não será fácil, mas conseguirei!"

Voltou para o quarto, novamente se deitou.

Devido às emoções do dia e do muito que chorara, adormeceu em seguida.

Acordou no meio da noite. Olhou para o relógio, faltavam vinte minutos para as três horas da manhã.

Estava suando. Levantou-se, sentiu um leve tremor. Voltou a se deitar após alguns segundos. Percebeu que não conseguiria. Desesperado, pensou:

"Estou novamente precisando da droga! Não! Não vou usar! Vou acordar meus pais e pedir ajuda!"

Abriu a porta. Uma luz fraca iluminava o corredor que levava aos quartos. Dirigiu-se ao quarto dos pais. Ia bater na porta, mas parou com a mão quase tocando nela:

"Não! Não posso fazer isso! Eles estão dormindo! Não é justo acordá-los!"

Voltou para o seu quarto. Lá dentro, entrou e saiu várias vezes do banheiro. O tremor aumentava a cada segundo. A vontade da droga foi se tornando insuportável. Entrou novamente no banheiro.

Não sabia quantas vezes já havia feito esse percurso. Em uma das vezes, ao sair do banheiro, olhou para a mesa do computador e para sua gaveta. Não pensou muito. Abriu a gaveta:

"Aqui está o que preciso."

Pegou um dos pacotinhos, esparramou o seu conteúdo em cima da capa de um livro, tapou um lado do nariz e com o outro inspirou. O efeito foi quase imediato. Sentiu aquele bem- estar tão seu conhecido. Em poucos minutos já era outro. Feliz, pensou:

“Definitivamente, eu gosto desta sensação”. Não quero ficar sem a droga, ela só me faz bem. Não posso ir para clínica alguma, não vai adiantar. Mas também não posso continuar aqui em casa, meus pais não aceitarão, me levarão para lá.

Olhou para o armário, abriu a porta, tirou uma calça, uma camisa e uma jaqueta. Pegou os pacotinhos que estavam na gaveta, colocou-os no bolso da jaqueta e abriu a porta bem

devagar. Estava tudo em silêncio. Seus pais e Leandro dormiam. Na ponta dos pés, saiu do quarto e desceu a escada. Logo estava na porta da sala. Abriu-a e saiu.

A noite estava escura, apenas iluminada pelas luzes dos postes de eletricidade. Ele saiu caminhando sem destino. Andou muito, não se preocupando para onde ir.

Quando se deu conta, estava em frente à casa de Rodrigo. Ela estava toda escura. O carro da mãe dele não estava ali.

"Ela ainda não voltou. Para que clínica o terá levado?" Sem saber o que fazer ou para onde ir, continuou andando. Só de uma coisa ele tinha certeza:

"Nunca mais voltarei para casa! Não quero ir para a clínica."

Continuou andando. O dia estava clareando quando chegou à favela onde Jiló morava. Enquanto entrava por uma viela, algumas pessoas passaram por ele. Imaginou que elas estivessem se dirigindo ao trabalho. Lembrou-se quando Iracema disse:

"— Não, dotô, na favela não tem só bandido, não! Tem muito trabaiadô!"

Imediatamente ele se lembrou do dia em que, chorando, ela jurara ser inocente. Lembrou-se também de seu pai empurrando-a e levando-a para a delegacia. Uma lágrima quis se formar, mas ele a enxugou:

"Isso agora será resolvido. Hoje mesmo meus pais deverão ir até a casa dela e esclarecer tudo."

Chegou finalmente à porta do barraco de Jiló. Ia bater quando se lembrou da última vez em que o acordara. Resolveu esperar até que ele acordasse. Sentou-se no chão, encostou a cabeça na parede do barraco. Ali sentado, lembrou-se do olhar de

Leandro quando tomara conhecimento de que havia sido ele quem roubara o colar e permitira que Iracema levasse a culpa.

"Ele estava com muito ódio, acho que nunca mais me perdoará."

Ficou ali sentado e pensando, sem ver o tempo passar. A porta do barraco se abriu. Jiló saiu. Ao ver Artur ali sentado, admirou-se:

— Que está fazendo aqui há esta hora? Sei que tem muita coca! Ao ver Jiló, ele se levantou, respondendo:

— Não estou aqui por causa da coca. Fugi de casa. — O quê?

— E isso que disse, fugi de casa! Jiló com as mãos esfregou os olhos.

— Acho que ainda estou dormindo. O que você disse? — Fugi da casa.

— Por quê? Está louco?

— Meus pais descobriram tudo e querem me levar para uma clínica, e eu não quero ir.

Jiló ficou pensando por um tempo, depois disse: — Conte com calma, o que aconteceu?

Artur contou tudo, como haviam sido presos, dos rostos de seu pai e da mãe de Rodrigo quando os viram na delegacia. Após terminar, Jiló ficou pensando mais um pouco:

— E Rodrigo, onde está?

— Não sei, a mãe dele ia levá-lo direto para uma clínica. — Foi mesmo?

— Foi.

— E agora? O que pretende fazer?

— Não sei, estou aqui para ver se você me ajuda ou me dá alguma idéia. Não sei o que fazer!

— Pensa que eu sei? — Preciso de ajuda!

— A rua é bem grande! Tem bastante espaço! — Não posso ir para a rua!

— Volte pra sua casa, então! — Eles me internarão!

— É mano, é sua hora de escolher... Não posso fazer nada... Entrou no barraco e fechou a porta. Artur ficou ali olhando, sem saber o que fazer. Lágrimas começaram a correr de seus olhos: "Eu devia imaginar que ele faria isso. Nunca foi meu amigo, eu era simplesmente um freguês. O que preciso fazer é voltar para minha casa. Não há outro caminho”.

Estava ali ainda sentado quando um rapaz se aproximou. Viu Artur, mas não tomou conhecimento. Bateu na porta do barraco. Ela não se abriu. Ele insistiu e chamou por Jiló, só aí ele atendeu.

— Careca! É você? Entre aqui.

Afastou-se para que o rapaz pudesse entrar. Olhou em direção a Artur, não disse nada. Assim que entrou atrás do rapaz, fechou a porta. Artur ficou pensando:

"Deve ser mais um freguês que veio em busca da mercadoria." Mas não era disso que se tratava. Assim que entraram, o rapaz desabotoou a camisa e de dentro dela tirou um pacote grande. Entregou-o a Jiló, que disse:

— Trouxe uma boa quantidade, mas sabe que não é o suficiente. Minha freguesia cresce dia a dia.

— Sei disso, mas foi só isso que mandaram. Onde está o dinheiro?

Jiló tirou uma tábua do chão. Apareceu um buraco e de dentro dele tirou um pacote. Abriu-o e apareceram algumas notas. Entregou-as ao rapaz, dizendo:

— Aqui está tudo o que consegui. Assim que entregar esta mercadoria, terei mais dinheiro, por isso pode voltar daqui a dois dias e trazer mais.

O rapaz contou, embrulhou o dinheiro, tornou a enfiá-lo sob a camisa e saiu. Lá fora, olhou para Artur, dizendo:

— Você também veio comprar? Desesperado, Artur respondeu:

— Não, estou com um problema, vim pedir ajuda pro Jiló. O rapaz começou a rir:

— Ajuda? Acreditou mesmo que aqui encontraria ajuda? — Não tenho mais ninguém a quem recorrer.

— O que aconteceu?

Artur ia responder quando Jiló retornou e, raivoso, disse para Artur:

— Você ainda está aqui? Já não disse que não posso ajudar? Ao ouvir aquilo, o rapaz disse:

— Você parece que está em apuros e sem rumo. — E isso mesmo, não sei o que fazer...

— Se quiser, pode vir comigo, talvez eu possa ajudar.

Artur levantou-se e, agradecendo, acompanhou-o. Durante o caminho foi contando tudo o que havia lhe acontecido. Após ouvir, o rapaz disse:

— Estou nessa vida há muito tempo, várias vezes quis sair, mas nunca consegui. Está vendo este pacote que está aqui embaixo da minha camisa?

Artur não viu o que era, mas percebeu que o volume era bem grande. Perguntou:

— O que é isso?

— Entreguei uma mercadoria para o Jiló, e ele pagou. — Você é um traficante?

— Não! Sou apenas um entregador, nada mais. Quem vende prós malacas é o Jiló.

— Malacas?!

O rapaz começou a rir:

— Pelo jeito, você não entende gíria! Malaca é gente igual a você e eu: viciado.

— O que faz é o mesmo que traficar.

— Prefiro não pensar assim, prefiro pensar que sou só um entregador.

— Por que faz isso?

— Cheguei a um ponto que não me restou mais nada pra fazer. Já estou acostumado.

Não quero fazer isso

— Então, meu amigo, a melhor coisa que tem para fazer é voltar pra sua casa. Meus pais são pobres, nunca me pagariam uma clínica, mas você disse que os seus querem levá-lo. Talvez seja a única solução para se livrar. Isto aqui não é vida, não. A qualquer momento a gente morre. Se não for a polícia, vai ser um outro traficante. Eu não tenho mais futuro, mas você tem ainda uma chance.

Artur ficou só ouvindo. Chegaram a uma outra favela. Ele acompanhou o rapaz até um outro barraco. Entraram.

— Aqui é o meu mocó. Artur ficou olhando. O rapaz começou a rir:

— Esqueci que você não está acostumado com algumas palavras! Logo aprenderá. Entre e sente-se aí.

Artur olhou a sua volta. Nunca havia visto um lugar igual àquele. O chão era de terra. Não havia quase nada lá dentro, só uma cama de solteiro, que parecia não ter colchão, uma mesa, uma cadeira quebrada e um fogareiro, mais nada. Em cima da mesa, uma panela com arroz queimado. Muita sujeira.

O rapaz percebeu que ele estava olhando. Disse:

— Está vendo onde eu moro? Se continuar nessa vida, vai acabar morando assim. Meu nome é Careca, e o seu, como é?

Artur começou a rir:

— Meu nome é Artur, mas, Careca? Isso não é nome de gente!

— De gente não, mas de quem vive nessa vida, sim! Se fosse você, já ia pensando em um nome de guerra pra usar quando for traficante.

— Nunca serei um traficante!

— Será sim. Se continuar nessa vida, sim! — Por que não me diz seu nome verdadeiro?

— Porque se os "ómi" pegarem você, não vai poder me entregar.

— Os "ómi"? O que é isso? Ele novamente começou a rir:

— Esqueci que você não conhece algumas gírias. Estou falando da polícia.

— Mas eu nunca o entregaria!

— Isso você diz agora, mas quando estiver nas mãos deles, nem vai se lembrar disso que está dizendo. Quer comer um pouco desse arroz? A gente pode fritar uns "óio". Antes que pergunte o que é isso, vou dizer. É ovo.

Artur olhou novamente para a panela. Disse: — Não, obrigado, não estou com fome.

— Mas eu estou.

Com uma colher, ele tirou o arroz queimado, colocou em uma panela e levou ao fogareiro para esquentar. Enquanto esquentava, em outra panela ele fritou dois ovos. Artur ficou olhando-o comer. Imaginou como uma pessoa podia comer aquilo. Lembrou-se da comida que havia em sua casa, principalmente daquela que Iracema cozinhava. Ficou pensativo.

Quando Careca terminou de comer, disse: — Resolveu o que vai fazer da vida?

Artur suspirou antes de responder:

— Acho que sim. A melhor coisa é voltar para casa e tentar me livrar. Só estou pensando...

— No quê?

— Você não ganha dinheiro com o seu trabalho?

— Claro que ganho, mas com o passar do tempo, a gente vai precisando de mais droga, e de mais dinheiro para pagá-la. Todo dinheiro que ganho fica por contra da droga que uso. Também acho que deve voltar para casa. Esta vida não vale a pena, não.

— É isso mesmo que vou fazer. Tchau. Careca, com um sorriso e aliviado, disse:

— Tchau, e boa sorte.

Artur seguiu pelo caminho que o levaria de volta para casa.

Enquanto caminhava pelas vielas da favela, ia prestando atenção em tudo. As vielas eram estreitas. Passava pelos barracos, alguns estavam com as portas abertas. Ele pôde notar que em quase todos existia a mesma pobreza que no de Careca. Crianças mal-vestidas brincavam. Lembrou-se do professor de Ciências quando naquele dia dissera:

"— Tem muita pobreza neste país! Muitas pessoas não têm para comer, muito menos para estudar!"

Artur ia olhando e pensando:

"Ele tinha razão. Mas por que existe tanta pobreza neste mundo?"

Chegou finalmente ao fim da favela. Já na rua, caminhou decidido em direção a sua casa.

Caminhou muito. Seus pensamentos estavam confusos. Sabia que realmente aquela era a única solução para tentar retornar à vida anterior às drogas, mas no íntimo sabia que jamais voltaria a ser o mesmo de antes. Vivera, conhecera sensações e coisas diferentes, antes nunca vividas.

Era verão. Embora ainda fosse cedo, o sol já estava quente. Ele continuou andando. Chegou à rua em que morava. De longe podia ver sua casa. Viu quando o carro de seu pai se aproximou e entrou na garagem da casa..

Os dois carros de seus pais estavam na garagem:

"Papai! De onde ele estará vindo? Ele não foi trabalhar hoje? Se eu for até lá, o que vou dizer? Eles não acreditarão em nada do que eu disser. Eu já os fiz sofrer muito. Não! Não posso entrar! Não sei o que dizer!"

Voltou-se e, correndo, tomou o caminho contrário ao da sua casa. Correu muito. Chegou à praça muito cansado. Já quase sem conseguir respirar, sentou-se em um banco. Embora soubesse que se entrasse em casa os pais o receberiam bem, pois eles o amavam, definitivamente não queria ir para a clínica.

Colocou a mão no bolso, tirou um pacotinho. Ali não tinha como cheirar. Olhou para o chão, viu uma folha de jornal. Pegou, rasgou um pedaço, enrolou como se fosse um funil,

colocou o pó dentro e cuidadosamente o inspirou. Em poucos minutos estava bem novamente:

"Não irei para clínica alguma!"

Levantou-se e continuou andando sem rumo.

Assim que Artur saiu, Careca ficou olhando a sua volta. Percebeu a pobreza enorme em que vivia. Lembrou-se de como havia começado naquela vida.

“Eu não tinha catorze anos ainda, meu pai havia abandonado nossa casa”. Minha mãe ficou sozinha com quatro filhos, eu fiquei desesperado, sem saber o que fazer. Era o mais velho dos irmãos. Poderia ter tentado encontrar um trabalho, mas meu amigo Créo me ofereceu um emprego onde eu poderia ganhar muito mais. O trabalho era fácil, só tinha que entregar uma mercadoria pra alguém. Lembro-me que ele dissera:

"— O dinheiro que vai ganhar é muitas vezes mais do que vai ganhar trabalhando. Você sabe que não tem uma profissão, nem estudo."

Logo nas primeiras entregas pude ver que ele dissera a verdade. Ganhei muito dinheiro, tanto que nunca em minha vida eu tinha visto igual. Fiquei encantado com tanto dinheiro e com tão pouco trabalho. Só tinha que entregar um pacote, pegar o dinheiro e levar pro seu Romeu, nada mais. Ia tudo bem, eu levava dinheiro pra casa. Minha mãe nunca desconfiou do trabalho que eu fazia, ficava contente quando eu lhe dava dinheiro pra ir à feira. Nunca perguntou onde eu conseguia. Durante uns seis meses eu trabalhei sem problema. Até que um dia Créo me deu o primeiro baseado. Fiquei empolgado com a sensação que ele me deu. Depois do primeiro, veio outro e mais outro, até que cheirei pela primeira vez a coca. Aí sim foi que vi o que me tornava com ela. Poderia ser o que quisesse nada me importava e nada era

impossível fazer. Logo fui notando que para ter aquele prazer precisava de dinheiro, muito dinheiro. Hoje estou aqui, vivendo desse jeito... Sempre coloquei a culpa na pobreza, mas e Artur? Por tudo que me contou, é um menino rico! Tem uma família perfeita! Por que entrou nessa? Não sei, não sei mesmo.

Foi em direção a uma gaveta, tirou uma seringa, aqueceu o pó e se aplicou. Em seguida, começou a rir muito. Saiu para a rua”.

No documento É Preciso Algo Mais (Elisa Masselli) - PDF (páginas 174-185)