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“... O quartel pegou fogo, a polícia deu sinal acorda, acorda, acorda a bandeira nacional...” Marcha soldado – Ciranda

Constata-se que a história da Literatura Infantil no Ceará não remonta de muito tempo, uma vez que somente há um mais de três décadas se registraram as primeiras manifestações solitárias de alguns aficionados e abastados escritores locais.

O processo literário no Ceará procurou, embora a passos lentos, acompanhar o movimento revolucionário no campo da Literatura existente no País.

Nesse período, a Universidade Federal do Ceará, em parceria com o Ministério da Educação, lança o Projeto “Biblioteca da Vida Rural”, o qual estimulou significativamente o surgimento de autores literários de qualidade e de vários outros profissionais ligados à produção editorial. Quiçá tivesse contemplado outras ações editoriais.

A Biblioteca da Vida Rural constituía um projeto de grande porte e que se propunha ter longa vida e largo alcance. Contudo, pela falta de verbas, que lhe assegurassem pleno funcionamento, extinguiu-se em pouco tempo. Mas, certamente, plantou muitas sementes de estímulo à Literatura Infantil, alcançando vasta área desse território árido, carente e faminto de pão e saber.

Com a implantação da disciplina de Literatura Infantil na faculdade de Letras da Universidade Federal do Ceará, a história da Literatura Infantil, em nosso Estado, toma novo impulso, posto que, a partir de seu ensino, os alunos despertaram para esse tipo de linguagem esquecida, passando a vê-la com

mais sensibilidade. Essa nova forma de absorver a magia existente na Literatura Infantil é democraticamente partilhada com a sociedade, pois, a partir daí, surgem no cenário literário grandes nomes como o da, até então professora, Elvira Drummond, que consegue aliar a arte literária à arte musical. Outro nome que merece ser destacado é o do professor Horácio Dídimo, que até hoje encanta nossas crianças com seus textos poéticos.

A Literatura Infantil, ainda que de forma acanhada, vai ganhando adeptos, escritores e profissionais, hoje firmemente comprometidos com a produção literária para as crianças. E, como num passe de mágica, percebe-se que a editoração é um mercado promissor, que aos poucos vai ganhando a simpatia dos pequenos leitores.

Fato importantíssimo foi o surgimento, no mercado editorial, da Fundação Demócrito Rocha, que busca arregimentar os autores que produzem arduamente sozinhos, com a finalidade de editar e divulgar suas obras. Com esse novo amparo, o mercado editorial literário infantil no Ceará vem se consolidando, e já se pode perceber o surgimento de novos autores talentosos, possuidores de trabalhos de excelente qualidade, tanto em nível literário quanto ilustrativo. E o mercado se torna mais exigente, mais participativo.

Esse avanço pode ser constatado nas publicações recentemente lançadas na 6ª edição da Bienal Internacional do Livro, quando vários títulos, de diferentes autores e gêneros literários, foram expostos, registrando-se uma significativa participação do público presente àquele evento.

Mas, onde esses mestres da produção literária vão buscar inspiração criadora? Quem os estimula a escrever para crianças?

Em seus depoimentos, prevaleceu uma feliz unanimidade: foram embalados, ainda quando crianças, por vozes sonoras que lhes contavam histórias, invadindo graciosamente seus sentidos. Vozes que vinham de seus avós, seus pais e tios, que sempre lhes narravam enredos cheios de encantos

e magias, fossem de cordéis, de vida e mesmo das famosas páginas dos livros do insubstituível Monteiro Lobato.

O certo é que a contação de histórias, a priori, serviu como suporte valioso ao ato criador, e as imagens que outrora povoavam suas mentes hoje enriquecem sua obra. É a história oral contribuindo para a formação cultural desses cidadãos e favorecendo sua criatividade e imaginação, elementos imprescindíveis na construção do enredo literário.

Foi possível presenciar, em alguns deles, o brilho no olho ao relembrar e a voz embargada ao relatar passagens de suas vidas. A prática de vasculhar a memória ao rememorar seu encontro com a leitura, permitiram que as lembranças alçassem vôos, ganhassem voz, tivessem vez. As imagens foram surgindo e sendo transcritas por puro deleite, fazendo um intercâmbio entre o ontem e o hoje, deixando transparecer os saberes reelaborados, num exercício de “Memória de Trabalho”, que afirma que lembrar não é viver, mas refazer, reconstruir, repensar com idéias de hoje as experiências do passado. Por mais nítida que possa parecer, a lembrança é um fato antigo, não é a mesma imagem que vivenciamos no passado, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de valor, tal como afirma Maurice Halbwaches: “A memória sofre influência do aprendido” (BOSI, 1994, p. 123).

Almir Mota afirma em seu depoimento que o que ouviu, viu e viveu está de certa forma retratado em seus livros, e relembra - os caretas - uma brincadeira popular que acabou sendo enredo de um de seus últimos lançamentos.

Demonstrando um grande entusiasmo, se reporta mais uma vez à sua infância, quando seu avô materno recitava Cego Aderaldo e sua célebre frase “O analfabeto ensina a ler”, e, com embargo na voz, rememora a voz de seu avô lendo para ele trechos de cordel do famoso cordelista:

“Quando perdi minha vista, O meu corpo faleceu Vou ao mundo afora

Contando a sorte que Deus me deu Carro de boi também canta

Mas é pau que já morreu”

E ainda menciona Patativa do Assaré. Recusa-se, porém, a declamar qualquer trecho de sua autoria.

O que se percebe é que, independente do poder aquisitivo, os escritores tiveram como estímulo a Literatura, que lhes foi apresentada ainda quando crianças, a princípio pela oralidade e, posteriormente, através de livros. Em suas memórias, o nome mais marcante foi o de Monteiro Lobato, com seu inesquecível pó de pirlimpimpim, que até hoje nos permite realizar incríveis viagens ao mundo da imaginação, desvendando alguns mistérios e elaborando tantos outros.

Os artistas gráficos, por sua vez, tiveram suas inspirações alicerçadas nas imagens da vida, da natureza, tela tão bem pintada pelo poder do Divino Espírito Santo.

Interrogado intencionalmente com vistas a este trabalho, Silas Rodrigues, artista plástico e ilustrador, se diz encantado desde a mais tenra idade pelas revistas em quadrinhos, afirmando que o poder das imagens dos gibis, em alguns casos, dispensa o texto.

De fato, a imagem é uma representação semiconcreta da realidade, constitui-se numa comunicação mais direta do que a escrita. Além disso, a ilustração é uma linguagem internacional, podendo ser compreendida por

qualquer povo e em qualquer lugar, e que pode não apenas ser apreciada, mas, sobretudo, entendida e sentida.

Foi possível perceber claramente que a produção literária infantil, no Ceará, vem gradativamente conquistando espaço e que, para isso, somam- se os valores dos grandes literários conterrâneos aos avanços tecnológicos, resultando desta adição a conquista de um público leitor fiel, assíduo e exigente de produções de qualidade.

Constata-se, também, que os autores têm um compromisso de responsabilidade com seus leitores, uma vez que se preparam, pesquisam e estudam o perfil de seus clientes, com o intuito de elaborar uma obra condizente com o gosto apurado das crianças, buscando colocar no mercado publicações de qualidade. Percebendo-se, em muitas delas, a clara intenção de retratar um pouco de nossa cultura, de nossos saberes e costumes, tão pouco lembrados pelos educadores e quase que totalmente esquecidos nos lares.

Indagados sobre o retorno financeiro de suas produções, admitiram ser impossível a sobrevivência baseada unicamente em suas obras: “morreríamos de fome, se assim fosse”, afirmou um deles em tom de deboche.

Porém, sua maior alegria se reflete em ver suas produções sendo consultadas e lidas pelo público ao qual se destinam. E seu maior entrave advém da divulgação, ainda, precária.

O contrato estabelecido entre editor e escritor, segundo Socorro Acioli, é padrão brasileiro, o autor recebe 10% das vendas pelos direitos autorais, podendo ainda optar por receber essa porcentagem em livros, cada tiragem corresponde a 1000 títulos. Afirma ainda, que a produção literária permite a abertura para outras portas, amplia a visão de mundo, e cita o trabalho desenvolvido pelo Almir Mota, como contador de histórias, que está

ganhando espaços e, também, a implantação da “Edições Calango” de iniciativa de Fabiano dos Santos.

Quando questionados sobre as dificuldades de se escrever livros para crianças em tempos de internet, os escritores responderam que toda essa tecnologia pode vir em auxílio à Literatura, quando adequadamente trabalhada. Os hipertextos e outras tecnologias, atualmente utilizadas por muitos, podem e devem ser empregadas como meio capaz de despertar na criança o interesse pela leitura, pela Literatura, através da divulgação de textos, bastando, para tanto, que sejam devidamente orientados.

De fato, o uso constante das novas tecnologias faz parte do mundo contemporâneo e não podemos deixar as crianças fora disso. De forma dosada o computador é uma ferramenta que pode ajudar as crianças a entenderem as múltiplas possibilidades de comunicação, interação e lazer. Ele não substitui as brincadeiras e a leitura, nem tira a capacidade de Imaginar. Ao contrário, abre novas possibilidades de criação. O mundo funciona de forma dinâmica e a tecnologia auxilia a criança a criar um pensamento que responda a esse meio.

É oportuno salientar que a produção editorial infantil, no Ceará, vem crescendo muito nestes últimos anos. Contudo, o que impede uma projeção maior, segundo depoimento de Almir Mota, são as tiragens bastante reduzidas, em torno de mil exemplares, porque o mercado distribuidor, infelizmente, não funciona de forma proporcional, ou seja, se produz pouco, por que a procura é mínima. Sob esse prisma, foi possível detectar uma enorme falha no que diz respeito à divulgação.

Em síntese, pensamos que, se fosse desenvolvido um trabalho efetivo de divulgação indistintamente junto ao público infantil, seja nas escolas, nas bibliotecas, nas livrarias, utilizando em grande escala a mídia, certamente teríamos um público leitor consciente da existência de produções cearenses, desmistificando a figura do escritor como ser inatingível, que só pode habitar o distante eixo sul-sudeste do País.

É preciso que se realize um trabalho eficaz e efetivo junto ao público em geral, é importante que se divulgue as produções dos autores locais, é fundamental que se propague às boas produções literárias do Ceará a fim de que elas possam ganhar asas e invadir o imaginário infantil da criança cearense.

Não quero, com isso, defender o bairrismo e o apego ao Nordeste e, de forma particular, ao Ceará. Pensamos, sim, que o livro deve estar ao alcance de toda e qualquer criança, bastando, para tal, ser de boa qualidade, independentemente de quem seja seu autor, se cearense, ou não. Em nossa concepção e nossa ótica, a Literatura é universal e não localizada. Contudo, é pertinente afirmar que há uma ampla facilidade de penetração da produção nacional nas escolas, livrarias e feiras culturais, onde produções regionais são relegadas a plano secundário, traduzindo a velha cultura de valorização do que vem de fora, esquecendo os valores aqui existentes.

O que se percebe, ainda, no âmbito dos órgãos ligados à cultura, é uma total ausência de uma política governamental e privada, que ofereça reais condições para que os valores regionais possam ser revelados ao público leitor, possam vir à tona, conferindo-lhes legítimas condições de competir com os valores nacionais.

Nas visitas realizadas às bibliotecas públicas e escolares constatamos que, em seus acervos, inexistem quase que por completo títulos de autores locais, e, até mesmo alguns dos profissionais que estão à frente desses setores, desconhecem a vasta listagem dos autores que integram o cenário literário cearense.

Dentre as escolas visitadas, uma adquiriu recentemente, na 6ª Bienal Internacional do Livro, todos os títulos infantis editados pela Fundação Demócrito Rocha. Contudo, nenhum trabalho pedagógico foi desenvolvido em relação a estas produções, que passaram a se constituir apenas como mais

alguns volumes postos nas prateleiras de sua biblioteca, aumentando o quantitativo de obras existentes, apenas isso.

Outra escola visitada incorporou ao seu acervo todos os títulos de um só autor e, com eles, desenvolveu um excelente trabalho junto ao seu alunado, através de atividades de leitura, pesquisa e reflexão, as quais culminaram com a participação do autor em um evento cultural, quando o mesmo deu depoimentos e assinou autógrafos para as crianças e adultos.

É válido assinalar que, apesar da inexpressiva existência de obras literárias infantis genuinamente cearenses, no setor infantil da maior biblioteca do Estado do Ceará, um bom trabalho de contação de histórias vem sendo desenvolvido, por iniciativa de um escritor local, no sentido de divulgar suas produções e, ao mesmo tempo, formar um público leitor. O Projeto intitula-se “Casa do Conto”, teve início em 2002, atende a professores e alunos das redes de ensino, pública e particular. Segundo depoimento de seu fundador, o Projeto surgiu como um incentivo à leitura, atualmente recebe escolas e grupos de leitores para sessões de contação de histórias com músicas, leitura e mini- oficinas de produção de texto, desenho, pintura e outras atividades.

Por fim, pode-se concluir que a Literatura Infantil cearense vem cavalgando em pequenos galopes, aos poucos e a duras penas galgando espaço, numa conquista que merece registro, muito mais pelo denodado esforço dos escritores conterrâneos. Prossegue, entretanto, como um trabalho quase que solitário, carente de apoio material e financeiro e de uma política de divulgação eficiente e eficaz, que venha contribuir para que as produções locais conquistem seu lugar ao sol, nessa nossa terra tão bem servida de talentos nas diversas expressões literárias. É preciso que esse sol, tão forte e acolhedor, projete seus raios em direção a todos, indistintamente.

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