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MOTIVAÇÕES DA IDA DE GAÚCHOS PARA RORAIMA

5 O CAMINHO DOS GAÚCHOS EM DIREÇÃO À AMAZÔNIA BRASILEIRA

5.4 MOTIVAÇÕES DA IDA DE GAÚCHOS PARA RORAIMA

Como já vimos, o desenvolvimento das relações de produção capitalistas na agricultura gaúcha (e brasileira) a partir dos anos 1950 resulta no processo de pauperização dos pequenos agricultores familiares. A expansão das grandes lavouras empresariais, tais como trigo, arroz e soja demandam extensas áreas para a sua produção, o que acaba por dificultar a incorporação dos pequenos proprietários neste processo produtivo. A saída para muitos deles foi a união em cooperativas ou, em boa parte dos casos, o arrendamento de suas terras para os grandes empresários do campo. Nos anos 1970 a modernização do campo

encontra-se completamente difundida no processo de produção primária propriamente dita. Naquele momento a marginalização do pequeno produtor torna-se ainda mais evidente, minando sua capacidade de suprir as necessidades de sua família. Sem dúvida, no caso dos pequenos agricultores no Rio Grande do Sul, muitos deles, sem outras alternativas, vão se aliar ao grande capital. Para eles, esta era a única forma de manter a reprodução de sua família. Para outros, a alternativa era “tentar a sorte” em outro lugar. E, naquele momento, a Amazônia, pelos motivos já mencionados, torna-se um lugar de atração para os gaúchos. Portanto, a primeira ordem de motivos que leva os agricultores gaúchos a se deslocarem para a Amazônia, e por extensão, para Roraima, é estrutural. Como bem afirma Tavares dos Santos (1993), causas estruturais de ordem socioeconômica impulsionam as pessoas a migrar. Entretanto, Tavares dos Santos (1993) nos lembra ainda que motivos subjetivos concorrem na decisão das pessoas em migrarem ou não. Não só os motivos de ordem estrutural, mas também os motivos subjetivos recaem na decisão dos (futuros) migrantes. As causas de ordem estrutural se originam da estrutura da sociedade, historicamente determinada, ao passo que os motivos subjetivos (ou individuais) “refletem a interiorização, pelos agentes sociais, de suas condições de existência” (TAVARES DOS SANTOS, 1993, p.14). Assim,

Essas duas dimensões são vividas simultaneamente pelos grupos sociais em questão,

sendo distinguíveis apenas a nível analítico. Devemos observar ao mesmo tempo

os fatores de expulsão demográfica e os de atração das populações. Esses dois fatores em conjunto definem um fluxo ou uma corrente migratória que se desdobra em determinadas condições de espaço e de tempo (grifo nosso).

Portanto, Tavares dos Santos (1993) afirma haver duas ordens de motivos que levam as pessoas a migrar, uma estrutural e outra subjetiva. E, como chama a atenção o próprio autor, tais dimensões só são distinguíveis a nível analítico. O processo migratório, desta forma, é um projeto coletivo, pois não se estabelece unicamente por escolhas individuais, mas por condições estruturais. Assim, ele não remete apenas a uma necessidade eminente, como a busca por terras pra produzir, por exemplo, mas a escolhas que envolvem subjetividades. Estas duas ordens de motivos são amplamente perceptíveis na obra do autor. Em seu trabalho com colonos gaúchos no Mato Grosso, tanto os motivos de ordem estrutural quanto os subjetivos são recorrentemente empregados pelos agricultores para justificar suas transferências para o Mato Grosso.

Já Souza (2004), em sua Tese de Doutorado intitulada “História, Memória e Migração: processos de territorialização e estratégias de inserção entre migrantes gaúchos radicados em Roraima” propõe que o estudo dos processos migratórios deva considerar três

dimensões, interdependentes entre elas: a dimensão estrutural, que se liga a processos sociais e históricos situados em uma perspectiva temporal mais longa; a conjuntural, que se relaciona a aspectos situados em um tempo mais curto, flexível e dinâmico; e a singular, que expõem situações específicas, únicas e particulares, enfocando e identificando lugares, grupos ou indivíduos. Comungamos da ideia dos autores. Partimos do pressuposto que os gaúchos que escolheram Roraima para viver o fizeram por questões estruturais nas suas regiões de origem e destino e por motivações subjetivas. Entretanto, para os migrantes gaúchos do século XXI as redes sociais tiveram papel central na migração.

Nos anos 1970/80, além da modernização agrícola poupadora de mão de obra e intensiva em capital que dificulta a reprodução social das famílias no sul do país, o sistema de hereditariedade característico dos agricultores contribui para o fracionamento das propriedades, resultando numa dificuldade ainda maior aos colonos. Cabe ressaltar que é nas regiões Norte e Noroeste do Rio Grande do Sul que este fenômeno vai ocorrer com maior intensidade. Lá era (e é) a porção do estado caracterizada pelas pequenas propriedades e trabalho familiar. O centro do Rio Grande do Sul, a região serrana e a zona dos Vales já haviam passado por esse processo algumas décadas antes. Já Campanha Gaúcha não sofreu tanto com este fenômeno, dada sua característica socioeconômica e espacial. Por lá impera a grande propriedade, marcada pela pecuária extensiva e regime de trabalho assalariado.

O relato a seguir, da dona Anita é representativo ao descrever os motivos que levaram sua família para Roraima:

Foi uma aventura, ó. Viemos tudo num caminhão de Ijuí pra cá, demoramo uns 16 dias pra chegar aqui. Viemos mais ou menos umas 30 pessoas na carroceria do caminhão. Era um caminhão baú. Fizemos uma casa lá dentro, a gente até cozinhava lá dentro. Veio o pai, a mãe, com nove filhos (7 homens e 2 mulheres), um tio com 3 filhos mais a esposa, outro com 10 filhos e mais o motorista. Depois veio mais uma “renca”. Mais dois irmãos meus e outros parentes e amigos. O pai ainda foi pra lá duas vezes trazer mais gente. Primeiro foi uma camionete, depois foi uma Kombi. Era muita gente, muito filho pra pouca terra lá. O pai também era tratorista, dirigia trator pruns arrozeiros. Mas o que ele gostava mesmo era a lida da roça. Ele mora lá no Raiar do Sol29, tá com 76 anos e tem a roça dele lá. Planta couve, alface, abóbora, verdura. E lá a roça num dava mais, não tinha como. Aí nós tinha um tio que já morava aqui e mandou buscá nós. Meu pai comprou umas terras do meu tio e aí continuamos nossa vida da roça. O pai começou a plantar tomate, abóbora, alface, essas coisa tudo, milho (01/10/11).

O depoimento anterior demonstra a importância que a roça tinha para a família, não só em termos financeiros, mas como elemento constituinte do modus vivendi daquele núcleo familiar. A quantidade de filhos não era apenas um limitante à satisfação alimentar da família,

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mas um obstáculo à continuidade da vida na roça. Como nos alerta Demartini (2005), os relatos orais estão repletos de sentimentos, ideologias, ambiguidades, conflitos, etc. e cabe ao pesquisador saber ler e interpretar estas idiossincrasias. Precisa saber “ouvir” o que não foi dito, “ler” nas entrelinhas o que não foi escrito. Este processo permitiu-nos compreender o quanto “a lida da roça” era importante para a família da dona Anita. Roraima possibilitou mais do que uma melhora financeira, permitiu que sua família continuasse a viver na agricultura, trabalhando em conjunto, como fazia em seu local de origem. Nossa entrevistada demonstrou grande entusiasmo ao falar sobre esta permanência na roça, o que para ela foi fundamental para manter a unidade familiar mesmo depois de mais de 25 anos de vida urbana. Centrada na figura do patriarca, a família de dona Anita mantém uma unidade familiar consistente, que, segundo ela, foi fundamental para a permanência de (quase) todos em Roraima. Pelo relato da dona Anita se verifica a presença de laços familiares na migração. Um tio que já morava no estado convidou sua família para morar em Roraima. Seu tio era caminhoneiro e havia ido a Roraima levar a “mudança” de outro gaúcho. Conheceu o Taiano (projeto de colonização) onde havia muitos gaúchos e resolveu se mudar definitivamente para Roraima. Depois de seis anos a família de dona Anita mudou-se para lá, levando junto alguns amigos. Posteriormente seu pai ainda foi ao Rio Grande do Sul buscar mais parentes e amigos.

Outro gaúcho “pioneiro”, o senhor Evilásio, assim descreve a vinda dos conterrâneos mais antigos em Roraima:

Tchê, a nossa vinda pra cá (os mais antigos) tá muito relacionado com o campo. A maioria de nós era do campo e viemos pra Roraima para continuar nossa vida no campo. Vendemos terra lá e compramos aqui, era muito mais barato. Meu pai tinha uns dois mil hectares de campo lá no sul. Aí teve cinco filhos. Ficou quatrocentos pra cada um. Depois cada um teve seus filhos. Aí o que sobrou pra mim foi uns cento e cinquenta hectares. E eu tava acostumado com bastante terra. Eu vim pra cá pra ter de novo esse horizonte de campo. Não foi porque tava mal lá, porque tava ruim. Eu podia ter ficado lá. Ia viver com aqueles cento e cinquenta hectares. Mas eu precisava de mais campo, precisava pegar o cavalo e sair troteando, enxergando longe. Aí vendi meus cento e cinquenta hectares lá e comprei uns dez mil aqui. Foi isso (05/10/11).

Novamente o senhor Roberto nos brinda com o seguinte depoimento sobre sua ida para Roraima, ainda ao final dos anos 1970.

A vinda nossa pra Roraima foi uma coisa fantástica. Passou uma reportagem na Globo sobre os cavalos selvagens de Roraima. E no Acre (onde morava) tinha gado, mas o gado era tocado a pé. Aí veio uma turma lá depois daquela reportagem pra comprar os ditos cavalos de Roraima, ora se os cavalos eram selvagens devia ser barato, e era. Vieram aqui pra comprar cavalo. Meu sogro veio pra cá e deixou uma fazenda comprada, lá em Normandia. Ele era pantaneiro, mano. Morava lá em

Bonito. Aqui era um novo pantanal pra ele. Quando eles vieram era inverno mano, tudo alagado. Eu fui o primeiro a vir cá, quando eu cheguei aqui mano, lá na Normandia, beira da Guiana Inglesa, os rio Mau e Tacutú, os dois seco. Eu perguntei, mas vem cá, onde é que tão as fazenda embaixo dágua. Se pudesse ele tinha me batido por telefone (07/10/11).

A ida do senhor Roberto para Roraima ocorreu justamente porque o seu sogro pantaneiro comprou esta fazenda no município de Normandia e o convidou para tomar conta da propriedade. Segundo o que nos contou o entrevistado, a ideia do sogro em comprar a fazenda foi pela semelhança que havia com o seu lugar de origem, o pantanal. “Foi uma espécie de encantamento que o velho teve com Normandia” (relato oral). “Ele achava que o pantanal era só lá no Mato Grosso, e quando chega aqui, dá de cara com outro pantanal” (risos). Antes da ida para Roraima, o senhor Roberto já havia morado em Santa Catarina, Paraná, Paraguai, Mato Grosso (área do atual Mato Grosso do Sul) e Acre. Portanto, sua migração, rural-rural, foi marcada por diversas etapas. O seu último local de residência antes de Roraima tinha sido o Acre, onde trabalhou por três anos como coletor de castanha no interior da floresta. No final de 1979 foi pra Roraima cuidar da fazenda do sogro, no município de Normandia, na beira do rio Tacutu, divisa com a Guiana. Após uns três anos se mudou para a sede do município onde virou comerciante e chegou a ser secretário de finanças municipal. Em seguida mudou-se definitivamente para Boa Vista, onde reside até hoje, exercendo a atividade de comerciante e escritor/poeta.

O senhor Pinheiro Machado, 57 anos, comerciante, natural de Crissiumal e residente em Roraima desde 1980, também apresenta os seus motivos subjetivos para ter se mudado pra Roraima. Segundo o relato que nos foi dado em 12/10/2011, sua ida para Roraima ocorreu porque “queria ser dono do próprio nariz, ser meu patrão”. Torneiro mecânico da empresa SLC no município de Horizontina, o senhor Pinheiro nos relatou que não tinha a necessidade financeira de sair do Rio Grande do Sul. Seu emprego, numa empresa multinacional, lhe permitia criar sua família de maneira digna no sul do país. Mas, não queria mais ser empregado. Tinha um cunhado que morava em Roraima há um ano e este lhe convidou para conhecer o então Território. Inicialmente foi morar na região do Tucano, interior do estado. Foi trabalhar na garagem do governo do Estado, mas, o salário, segundo nos contou, era baixo. “Se fosse pra continuar ganhando isso e ainda por cima continuar empregado dos outros teria ficado no Rio Grande”. Ainda no mesmo ano (1980) se mudou definitivamente para Boa Vista, onde “consegui fazer minhas conquistas, fiz minha vida” (relato oral). Mais uma vez a rede estava presente no relato do senhor Pinheiro Machado. O senhor Pinheiro

Machado possuía um cunhado que morava em Roraima e este lhe convidou para ir pra Roraima.

A fotografia abaixo mostra o estabelecimento comercial de um gaúcho pioneiro em Roraima:

Fotografia 4: “Mercadinho dos Pampas”. Bairro São Vicente. (Foto: Pedro M. Staevie, 2012)

Os relatos orais nos ajudam a compreender as distintas motivações que levaram estes gaúchos a fixar residência em Roraima. Assim como constatou Tavares dos Santos (1993) em seu estudo, também em Roraima encontramos motivações estruturais e subjetivas que concorreram para levar os gaúchos àquele estado. Através da pesquisa bibliográfica feita com bibliografia pertinente, juntamente com a pesquisa na hemeroteca do Diário Oficial de Roraima, e as entrevistas realizadas, se pôde inferir que tanto motivações estruturais quanto subjetivas explicam a migração de gaúchos para Roraima. Para os migrantes gaúchos atuais, as redes sociais tem papel de protagonista neste movimento migratório.

Esta dicotomia (racionalidade individual X estruturas sociais) permeia a discussão acerca do fenômeno migratório no âmbito das ciências sociais. Por um lado, a exacerbação do

individualismo nas decisões e, por outro, a superestimação das estruturas sociais como as únicas responsáveis pela mobilidade do trabalho, fazendo do indivíduo uma simples marionete destas estruturas historicamente determinadas. Sem dúvida, a liberdade das escolhas individuais tomadas num vazio social inexiste. O indivíduo está envolto num conjunto de relações que lhe condicionam a decisão (de migrar) de forma consciente e inconsciente. A ação individual encontra-se diluída numa trama social que prepara o indivíduo para as escolhas, moldando a forma de apreensão dos fatores de repulsão e atração e a reposta do indivíduo a esta situação. Este se encontra sempre coagido por estruturas sociais, tanto na sua região de origem, como na região de destino, que interagem entre si e alimentam um fluxo migratório (MATOS, 1993).

O indivíduo, portanto, decide (migrar ou não) mediante uma apropriação muito particular da forma de resposta que lhe foi incutida pelas estruturas sociais às quais está submetido. As circunstâncias condicionam a decisão sobre o fato de migrar ou não, mas não a determinam. Se não fosse assim, porque alguns gaúchos submetidos a perversidades estruturais em seus locais de origem permaneceram lá, ao passo que outros se deslocaram para Roraima, por exemplo?

No próximo capítulo discutiremos o papel das redes sociais na migração contemporânea de gaúchos para Roraima e na adaptação e permanência destes migrantes naquele estado.

6 MIGRAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE GAÚCHOS PARA RORAIMA E O