• Nenhum resultado encontrado

Motivações para a selecção do repertório traduzido.

No documento A Tradução Teatral: o texto e a cena (páginas 50-55)

1988): um estudo de caso.

4. A política de tradução do Centro Cultural de Évora 1 A selecção das obras

4.2. Motivações para a selecção do repertório traduzido.

Além da motivação de natureza dramatúrgica enunciada nas suas grandes linhas e reflectida nas obras traduzidas ou originais portuguesas, é possível compreender com mais precisão a escolha dos textos traduzidos se os re-situ- armos no seu contexto de recepção em que dominam e evoluem determinados códigos discursivos com os quais são compatíveis.

Constituindo dois terços do repertório, essas traduções distribuem-se no tempo de duas maneiras. Numa primeira fase, elas predominam: em 1975 e 1976 e até Janeiro de 1977, data da encenação de uma comédia do primeiro autor português, Almeida Garrett, apenas são representados textos traduzi- dos; no final de 1977, um texto português fecha a temporada depois da mon- tagem de duas traduções. A presença dos textos de origem não portuguesa será, a partir dessa data, assim distribuída: em 1978, representam-se duas tra- duções (Peter Weiss e Brecht) e dois autores nacionais; em 1979, encenam-se apenas duas traduções: Weisenborn e Molière; em 1980, Camões é escolhido ao lado de três obras de autores estrangeiros (Paul Maar, Kleist e Aristófanes); em 1981, Garrett é escolhido de novo com dois textos estrangeiros também (Gogol e Goldoni); em 1982, três autores de língua alemã são traduzidos e encenados ao lado de duas obras portuguesas, das quais uma é uma versão escrita a partir de um original brasileiro. Em 1983, a dramaturgia nacional

domina com três textos em cinco, sendo os outros dois franceses (Mérimée e Vinaver); em 1984, apenas um é português contra quatro estrangeiros (três farsas francesas anónimas, Tchekhov e dois autores para a juventude); em 1985, três em seis textos são traduções (Ben Jonson, Corneille e Jean-Pierre Schlegel); nenhum autor português será escolhido em 1986, ano em que são encenados Molière e Lope de Rueda. Em 1987, duas das quatro encenações são feitas com base em textos traduzidos de Marivaux e Ibsen, e 1988 fecha o ciclo com Gil Vicente, com uma quarta obra escolhida desde 1978, e com um contemporâneo, francês, Adamov, cinco anos depois de Vinaver, onze depois de Kateb Yacine e treze depois do primeiro contemporâneo francês, Richard Demarcy que inaugurou o repertório do recém-criado Centro Cultural em Janeiro de 1975 com um texto original, imediatamente traduzido.

A confrontação desses dados com os princípios enunciados anteriormente mostra uma ausência inicial da dramaturgia portuguesa contemporânea e uma aplicação tardia das recomendações que pediam e pressupunham uma releitura das obras do passado, mas revela também uma inclusão a partir de 1977 dos autores clássicos portugueses.

Por um lado, é a própria produção nacional que se encontra efectivamen- te em crise; a edição teatral nacional do mesmo período, no que respeita aos autores dramáticos nacionais, muito reduzida, mostra que a história recente do país não foi seguida de um movimento imediato de produção e de difusão literárias. A estagnação da instituição literária não representa todavia um obstáculo ao trabalho teatral que procura na parte das obras já consagradas o alimento para a sua actividade, muitas vezes de modo indirecto num trabalho de releitura ou de actualização, ou que produz as suas próprias traduções.

Por outro lado, o período de criação do Centro corresponde a um momen- to político de grande intensidade, baseado numa renovação da consciência nacional e recorrendo largamente a uma participação colectiva no processo em curso. A motivação da selecção dos anos 1975 e 1976, que será modifica- da progressivamente a seguir, são os temas da História, os conflitos sociais e ideológicos, a luta contra toda a forma de alienação ou de cegueira, o exercício das novas liberdades, e também a necessidade de tratar esta realidade em termos discursivos, pela palavra assumida no palco, a fim de poder dominá- la, pelo menos simbolicamente. É assim que são seleccionados dois textos de Brecht e duas traduções do teatro americano de intervenção de Luiz Valdez sobre os temas da guerra colonial (nesse caso, a do Vietname no lugar daquela que ainda não tinha terminado em África) e a greve, direito novo com grande

significado nessa altura. A peça de inauguração do Centro é escrita por um autor francês, Richard Demarcy, a partir duma dramatização de um facto real, a crise político-militar em Portugal em Setembro de 1974.

Finalmente, as transformações do quadro político em que a companhia tea- tral e o seu projecto se situam, sendo subsidiados anualmente pelo governo central, obrigaram o repertório a corresponder a regras estritas relativamente estáveis, a partir de 1976, quanto à obrigação de incluir na programação auto- res nacionais; o regulamento estabelecido pela Secretaria de Estado da Cultura avalia os pedidos de financiamento de acordo com a aplicação de tais normas. Assim, a inclusão de “autores e (...) obras que fazem parte do património teatral da humanidade e a literatura dramática portuguesa, clássica e contemporânea” são o “primeiro factor objectivo” para a atribuição de financiamento.

Trata-se de uma verdadeira mudança capaz de determinar uma evolução do repertório para um reforço da dramaturgia nacional ou devemos, pelo con- trário, ler este factor de constrangimento como o resultado da menor aceita- bilidade das obras estrangeiras cujo carácter inovador ou até subversivo do sistema em vigor seria sublinhado pelas próprias estratégias de tradução? Não seria isto incompatível com a hipótese de uma eventual aceitabilidade das traduções, visível na naturalização dos textos? A questão do papel dessas traduções na literatura e na cultura receptoras está ligada às anteriores, dado que a abertura para a cultura estrangeira pode simultaneamente funcionar como factor de evolução para uns e de recuo para outros. Sabemos também que se trata aqui de toda uma dramaturgia para a qual o trabalho de releitura dos clássicos nacionais para o palco não é incompatível com a encenação de textos traduzidos porque são tratados segundo uma idêntica concepção do papel do teatro na sociedade.

Este breve estudo não pretende levar à determinação da importância da tra- dução teatral em geral na cultura portuguesa actual. Tratou-se apenas de assi- nalar um conjunto de fenómenos ligados à tradução a propósito de um género literário particular e tendo em conta dados precisos e concretos no tempo e no espaço. Por outro lado, esta análise não poderá limitar-se a este único nível de pesquisa, de natureza sobretudo sociocultural e histórica. A importante inte- racção entre a cultura receptora, portuguesa, e as outras, aquelas donde provêm as obras traduzidas, deverá ser definida ou especificada a partir duma descrição e duma análise dos próprios textos, de modo a tornar visíveis as normas, prelimi- nares ou operacionais (Toury 1980), que orientam o processo de tradução.

as estratégias mais capazes de permitir a sua introdução na cultura receptora são, no caso deste corpus, frequentemente tornadas explicitas em metatex- tos que expõem os princípios seguidos (os textos dos programas de sala, por exemplo). Além do seu estudo, devem também ser tidos em conta todos os elementos através dos quais se produz uma imagem da obra traduzida, mais ou menos dada a conhecer enquanto obra estrangeira ou não (com os elemen- tos de publicidade, por exemplo). As referências feitas pela crítica, outra fonte de paratextos, à tradução e a sua avaliação segundo critérios – que devem ser decifrados como pressupostos não-explícitos na maior parte dos casos –, assim como os dados que deverão ser reunidos do lado da recepção ou do público destinatário, representam um elemento de grande interesse neste caso, dado que o contexto histórico que originou essas traduções está ele próprio carre- gado de tensões e de conflitos, o que leva as normas a serem frequentemente contraditórias entre si.

Factor de inovação ou pelo contrário de conservação, a tradução pode ser uma das manifestações mais explícitas das orientações que definem uma cul- tura nas suas relações com o seu meio. Como interveio nos anos 70 e 80 em Portugal? Marcado por numerosas mudanças em vários níveis, terá este período permitido verdadeiramente uma evolução da literatura, favorecida pela inova- ção estrangeira ou, pelo contrário, esta última terá originado uma confirma- ção dos valores nacionais, ficando assim numa posição periférica? Apenas uma abordagem detalhada das estratégias adoptadas poderá levar à discussão destas hipóteses e dar resposta às perguntas deixadas aqui em aberto.

Bibliografia

Bassnett, Susan, 1978. “Translating Spatial Poetry”, in Holmes et al. (eds), Literature and

Translation. Leuven: Acco.

Bassnett, Susan, (1980) 1992. Translation Studies. London: Routledge. 2nd ed.

Bassnett, Susan, 1985. “Ways through the Labyrinth”, in Theo Hermans (ed. ), The

Manipulation of Literature. Studies in Literary Translation. London: Croom Helm.

Brisset, Annie, 1990. Sociocritique de la traduction.Théâtre et altérité au Québec (1968-1988,). Québec: Le Préambule.

Coelho, Jacinto do Prado, 1977. A Originalidade da literatura portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa.

Even-Zohar, Itamar, 1990. Polysystem Studies. Poetics Today 11:1. Special issue. Gontard, Denis, 1973. La décentralisation théâtrale. Paris: Sedes.

Lambert, José, 1978. «Échanges littéraires et traduction. Discussion d’un projet», in Holmes et al. (eds), Literature and Translation. Leuven: Acco.

Lambert, José, 1980. «Production, tradition et importation: une clef pour la description de la littérature et de la littérature en traduction». Revue canadienne de littératare comparée, 7. Lambert, José, 1983. «L’éternelle question des frontières: littératures nationales et systèmes

littéraires», in C. Angelet et al. (eds), Langue, dialecte, littérature. Études romanes à la

mémoire de Hugo Plomteux. Leuven: Leuven University Press.

Lambert, José, 1990. «À la recherche des cartes mondiales des littératures», in J. Riesz et A. Ricard (eds), Mélanges offerts à Albert Gérard. Semper Aliquid Novi. Littérature comparée et

litératures d’Afrique. Tübingen: Narr.

Lefevere, André, 1989. «The Dynamics of the System: Convention and Innovation in Literary History», in Theo d’Haen, Convention and Innovation in Literature.

Lopes, Oscar & Saraiva, António José, (1955) 1978. História da literatura portuguesa. Porto: Porto Editora. 10ª ed.

Pavis, Patrice, 1989. “Études théâtrales”, in Marc Angenot et al. (eds), Théorie littéraire. Paris: Presses Universitaires de France.

Picchio, Luciana Stegagno,(1969). História do teatro português. Lisboa: Portugália Editora. Rebello, Luís Francisco, (1968) 1989. História do teatro português. Lisboa: Europa-América. Saraiva, António José, (1949) 1965. História da literatura portuguesa. Lisboa: Europa-América. 8ª ed. Schultze, Brigitte, 1990. “In Search of a Theory of Drama Translation: Problems of trans- lating Literature (reading) and theatre (implied performance)”, in Actas do Primeiro

Congresso da Associação Portuguesa de Literatura Comparada. Lisboa: APLC.

Toury, Gideon, 1980. In Search of a Theory of Translation. Tel-Aviv: The Porter Institute for Poetics and Semiotics.

Zurbach, Christine, 2002. Tradução e Prática do Teatro em Portugal de 1975 a 1988. Lisboa: Edições Colibri.

No documento A Tradução Teatral: o texto e a cena (páginas 50-55)