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Recepção da poética clássica de Corneille pela cena portuguesa contemporânea.

No documento A Tradução Teatral: o texto e a cena (páginas 30-34)

Duas perguntas poderão surgir ao tradutor português de Corneille, hoje. A primeira incidirá na apreciação da importância a atribuir aos princípios que regulam a poética do teatro clássico francês e de Corneille nas escolhas que vão presidir à tradução deste tipo de obras para o sistema literário e teatral portu- guês quando esta visa a representação para um público actual, em particular no que respeita à versificação das peças.

A segunda, que pode ser entendida como um pressuposto para a prece- dente, questionará o grau verdadeiro de conhecimento que se tem hoje desta poética, demasiado banalizada pelo ensino normativo de uma história lite- rária sem contradição. Não será surpreendente afirmar que é sobretudo uma

2 Assinalamos aqui a importância dada actualmente à edição teatral patente em obras produzidas no campo de estudo da edição ou do livro da leitura. Ver, nomeadamente, Chartier, Roger, Do Palco à

página. Publicar teatro e ler romances na época moderna – séculos XVI-XVIII, Rio de Janeiro, Casa da Palavra,

imagem estereotipada de uma doutrina estéril e académica que prevalece ainda, em oposição com a realidade da experiência social e estética do teatro frequentado pelo público culto e “mundano” contemporâneo de Corneille.

Na realidade, e para responder às perguntas anteriores, convém lembrar que foi precisamente esta confrontação entre doutrina e experiência teatral que alimentou o teatro de Corneille desde o início, na própria definição do espectáculo teatral, como era entendido, na sua época, pelo dramaturgo quan- do afirmava o seu propósito de agradar segundo as regras, isto é, fazer passar Aristóteles para o seu campo, contra os académicos e os doutores, em confor- midade com a acção representada e o carácter universal do próprio objecto da representação: a natureza humana: “Aristote a été droit aux mouvements de l’âme dont la nature ne change point”, escreve Corneille no Discours (1963). E sabe-se que foi por ter preferido uma adequação ao ponto de vista e ao gosto da cena pública e laica que Corneille teve êxito, diríamos “apesar” das regras.

Esta dependência do público teve igualmente aspectos negativos, segun- do o estudo biográfico proposto por Bernard Dort (1957). Se Pierre Corneille (1606-1684) beneficiou de uma ascensão social nunca vista até então graças às suas qualidades de dramaturgo reconhecidas desde o êxito da sua comédia

Mélite, em 1629, ele conheceu também um lento e definitivo declínio após a

morte da regente Ana de Áustria em 1666, acompanhada pelo rejuvenesci- mento duma corte renovada, com o abandono final do teatro em 1674 após

Suréna. Seguidamente, a história literária evoca, também ela, a complexi-

dade da recepção do teatro de Corneille pelo século XVIII, onde Voltaire e os seus comentários prevalecerão sobre o conhecimento directo da obra do dramaturgo, e onde a comparação com Racine acabará sempre em desfavor de Corneille.

Mas um regresso triunfante do autor, no século XIX, devido à canonização e à apropriação selectiva de uma obra assimilada aos valores da grandeza trá- gica, da energia e da vontade, da razão dominadora, preparará a sua recepção ulterior pelo século XX, que confirmará esta forma de consagração ao nível escolar e universitário. Simultaneamente, no contexto da problematização da herança clássica dinamizada pela corrente do teatro popular do pós-guerra europeu, interessado em releituras motivadas por tendências variadas da crí- tica, é sobretudo a vertente política e ideológica que, numa leitura renovada, vai dominar as encenações levadas a cabo na segunda metade do século.

Averiguemos agora se existe, hoje, da parte dos agentes envolvidos na selecção e na tradução das tragédias citadas, uma consciência ou um reco-

nhecimento de uma poética específica nestas obras. A fonte privilegiada para tal assunto é constituída pela produção discursiva paratextual dos próprios agentes tradutores. Podemos, nos casos estudados aqui, recorrer a dois docu- mentos paratextuais de acompanhamento dos espectáculos postos em cena; são estes os programas editados pelas companhias respectivas.

Verifica-se pela sua leitura que ambos os tradutores reconhecem aos tex- tos a traduzir um estatuto e um grau de consagração literária e cultural ele- vados, mas estas qualidades encontram um significado de âmbito diferente. Assim, o tradutor de Sertório para o Teatro da Cornucópia, o poeta Nuno Júdice, apresenta o dramaturgo como “um dos grandes clássicos franceses, o que implica o maior respeito pelo texto”, e acrescenta a seguir uma alusão à “dificuldade própria da linguagem (de Corneille) ”, assegurando que “a leitu- ra de Corneille não é das mais fáceis” (1997). Do mesmo modo, num texto do programa editado pelo CCE para o espectáculo Horácio, aparece um comen- tário que esclarece a razão da escolha do texto para o repertório da companhia de teatro do CCE e que faz referência “ (à) grande excelência do grande teatro, (à) eficaz historicidade dos clássicos que o nosso olhar actual lhes confere, (à) convicção de que os públicos têm que poder dispor sistemática e permanen- temente da possibilidade de se poderem esfregar pelos melhores textos dos melhores autores de todos os tempos” (1985:12).

Todavia, o texto que acabámos de citar esclarece a seguir que é a estraté- gia de repertório para uma política teatral que legitima a selecção do texto. Sem limitar o alcance do critério valorativo enunciado anteriormente a um estatuto próprio de um texto de Corneille enquanto autor consagrado na lite- ratura, atribui-lhe todavia uma função associada à orientação programática adoptada com vista à uma estratégia teatral: “(...) a suspeita de que quando essa possibilidade não existe, não existe movimento teatral, quando muito só coisas teatrais insusceptíveis de produzirem públicos, só portanto beneficiá- rias de pequenas percentagens dos públicos existentes, dos tais públicos que não existem, nem podem existir, onde não existe aquele generalizado e siste- mático e permanente movimento teatral” (ibid., id.). Além disso, é de notar que a caracterização literária da peça enquanto género – o da tragédia - não é referida em termos explícitos, nem o nome do tradutor, a responsabilidade do acto literário e textual de traduzir sendo por isso atribuível à companhia profissional de teatro do CCE, representante dum projecto de descentraliza- ção teatral, com uma política de repertório centrada na encenação dos textos clássicos para um público contemporâneo. De maneira sintomática, a tradu-

ção não foi publicada por ser destinada à representação e apresenta-se na forma de um guião para os actores, com o estatuto de componente textual de um conjunto semiótico que significa como um todo.

Recorrendo ao conceito de norma preliminar ou seja: “Preliminary norms have to do with two main sets of considerations: those regarding the very exis- tence of a definite translation “policy” along with its actual nature, and those questions related to the “directness” of translation” (Toury (1980:244-245), podemos desde já afirmar que é no papel estratégico atribuído à dramatur- gia clássica que residirá uma marca diferenciadora entre os dois projectos tea- trais, com consequências no processo da tradução que, de resto, não é objecto de nenhuma referência no caso do texto incluído no programa da autoria do CCE.

No caso da Cornucópia, as referências a um qualquer contexto de inser- ção da tradução numa política teatral de companhia não existem no texto de acompanhamento produzido pelo tradutor Nuno Júdice que, pelo contrário, evoca o “desafio” que representou traduzir Corneille, informando que se tra- tou de uma “proposta que (lhe) fez Luis Miguel Cintra”, e reconhece que a sua função consistiu numa intervenção relacionada com a elaboração do texto do espectáculo (1997). Faz alusões explícitas às qualidades literárias do texto francês e aos efeitos que este produz sobre o receptor no plano ético e estéti- co. A experiência descrita é a de um “envolvimento” e da impossibilidade de ficar indiferente “perante este universo construído a partir de emoções intemporais, como são as do coração”. Escreve igualmente o mesmo tradutor, ao descrever o modo como se processou a produção do texto de chegada: “ (...) o texto português ia nascendo por si, ganhando uma vida própria e, finalmen- te, impondo certas regras que se tornaram uma disciplina de trabalho que me permitiu fazer a tradução em pouco menos de um mês” (ibid.). A relação assim instaurada com o texto de partida levou ao que se chama aqui “dar a Corneille uma voz portuguesa” (ibid.).

Pelo contrário, no caso do CCE, o paratexto alude ao trabalho de tradução apenas numa nota indirecta e de carácter geral que clarifica a opção escolhi- da, a de não explicitar o que se entende como componentes datadas do texto e, por conseguinte, culturalmente distantes do espectador, com uma única excepção, suscitada pelo termo “parricida” que o texto de Corneille emprega num sentido lato e desactualizado: “O texto de Corneille contém alusões, referências, expressões e sentidos textuais que a tradução procurou respei- tar, e que não é possível explicitar exaustivamente, nem é certo que fosse sequer boa prática fazê-lo. Consideramos todavia excepção o uso do termo

“PARRICIDA”, principalmente na acusação de Valério no V acto” (1985). Resulta desta comparação dos paratextos que o tradutor de Sertório repre- senta uma forte componente individual e subjectiva no processo de tradução. Sabe-se que, ausente do texto teatral, a voz do autor só se manifesta em textos de prefácio ou de comentários ao seu trabalho. Aqui, a voz do tradutor que se manifesta no paratexto analisado revela escolhas iniciais claramente distintas daquelas adoptadas no caso de Horácio. O tradutor preenche uma função idên- tica em ambos os casos, necessária à comunicação no plano interlinguístico mas, se para Horácio, ele é inequivocamente um autor anónimo identificado com um projecto teatral global pela partilha da responsabilidade da escolha e da recepção do texto, para Sertório, o tradutor, ele mesmo poeta e autor reco- nhecido na vida literária portuguesa, aparece como um autor segundo, facto pelo qual nasce um outro texto, recriado na língua de chegada onde é moldado como um novo objecto, integrado na dramaturgia portuguesa.

Enquanto agente que toma posição no processo da tradução em que inter- vém fazendo escolhas, poder-se-á admitir que o tradutor, portador de uma expe- riência individual e de uma visão do mundo essencial na sua concepção traduto- lógica, terá um papel decisivo na estratégia que define a recepção desejada para o texto de chegada. É neste aspecto que a versificação e o seu tratamento no texto de chegada podem funcionar como elementos de grande pertinência.

No documento A Tradução Teatral: o texto e a cena (páginas 30-34)