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1 INTRODUÇÃO

1.4 Os motivos da escolha

“Fiquei com os três pares de óculos para mim. Perdi, por descuido, os óculos de ver o perto e os de ver o longe. Acho que ao usar os meus próprios olhos, descobri que minha memória podia ver o longe, o perto e escolher entre os

dois. Sonhar meu sonho passou a ser melhor que fantasiar sobre os três pares de óculos.” (Bartolomeu Campos de Queirós)

Optar por uma pesquisa que engloba campos da história do livro, da literatura infantil e da formação literária do pequeno leitor é reconhecer que esses se entrecruzam e trazem reflexões para a educação, para a história e para a literatura infantil.

Essa escolha pode, inicialmente, ser justificada a partir das ideias de Hallewell (2012): Procurar conhecer uma nação por meio de sua produção editorial é, mais ou menos, o mesmo que julgar uma pessoa por sua caligrafia. Ambas constituem partes muito pequenas nas atividades total de um país ou de uma pessoa, mas as duas podem ser muito reveladoras, pois nós somos como nos expressamos. Na verdade, é difícil imaginar uma atividade que envolva tantos aspectos da vida nacional quanto a publicação de livros. O livro existe para dar expressão literária aos valores culturais e ideológicos. Seu aspecto gráfico é o encontro da estética com a tecnologia disponível. Sua produção requer a disponibilidade de certos produtos industriais (que podem ser importados, feitos com matéria-prima importada ou fabricados inteiramente no país). Sua venda constitui um processo comercial condicionado por fatores geográficos, econômicos, educacionais, sociais e políticos. E o todo proporciona uma excelente medida do grau de dependência do país, tanto do ponto de vista espiritual como do material. (HALLEWELL, 2012, p. 31).

Estudar cinco obras de poesia infantil pode parecer miúdo e tímido no universo de produção da literatura infantil brasileira, no entanto, esse estudo pode trazer mais algumas reflexões acerca das complexidades que marcam o campo da literatura infantil brasileira em sua construção e consolidação, como produtora de obras literárias com valor estético e/ou artístico. Para além disso, esta proposta de estudo visa, também, contribuir com a discussão acerca do processo de construção de uma obra literária que envolve não só o autor e seu texto, mas distintos e necessários atores que interferem na construção do livro que vai ou deveria chegar a um dado leitor.

Compreender o percurso de O menino poeta (Henriqueta Lisboa, 1943), Ou isto ou aquilo (Cecília Meireles, 1964), Pé de pilão (Mário Quintana, 1968), A Arca de Noé (Vinicius de Moraes, 1970), É isso ali (José Paulo Paes, 1984), em suas várias roupagens, é reconhecer que uma obra literária é muito mais que um texto literário produzido por um poeta. Mais do que isso, é visualizar que, por trás de uma produção, há uma história da obra que a fez ser legitimada e ter um ciclo de vida perene. Tudo isso contribui para ampliar o olhar em relação a um dado livro. Para além de todos os aspectos materiais, gráficos, imagéticos (que vão muito além da ilustração de um ilustrador), dos paratextos e do texto literário,

compreendemos que o estudo de um livro, em sintonia com distintos estudos de Frade (2000, 2004, 2010a, 2010b, 2005, 2011),

sempre nos envia para fora dele.[...] a análise de um livro deve se valer, além de outros aspectos de sua produção, que não estão no livro, da observação de uma cultura gráfica de um período e mesmo de uma determinada editora e poderemos refletir melhor sobre essa dimensão, quando observarmos o modo como outros livros se organizaram num dado momento e quando a soma de vários estudos sobre aspectos gráficos de livros brasileiros puder indicar como funciona o campo editorial nas páginas do impresso. (FRADE, 2010, p. 167)

O estudo das obras, dentro e fora do objeto livro, permite visualizar aquilo que se denomina literatura infantil brasileira, mais especificamente, poesia infantil brasileira. Assim, esse processo permite reconhecer, em um primeiro momento, que a definição de literatura é consequência dos juízos de valor construídos no coletivo de uma sociedade. Em conformidade com Eagleton (2006), a definição de literatura não é algo objetivo e estável. O que já foi considerado literatura pode não ser mais considerado hoje e vice-versa.

Se não é possível ver a literatura como uma categoria “objetiva”, descritiva, também não é possível dizer que a literatura é aquilo que, caprichosamente, queremos chamar de literatura. Isso porque não há nada de caprichoso nesses tipos de juízos de valor: eles têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças, tão evidentes e inabaláveis quanto o edifício do Empire State. Portanto, o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais. (EAGLETON, 2006, p. 24).

A definição do que vem a ser literatura infantil, nesse sentido, também sofreu alterações ao longo dos anos a partir das interferências de diferentes instâncias sociais e a partir do que se estabelecia como função desse campo. Uma literatura voltada para crianças nasce da necessidade de se construírem mercadorias, modos de educação e espaços diferenciados para uma nova concepção de infância que tira a criança da ideia de “adulto em miniatura” e a concebe como um ser humano em desenvolvimento que necessita de espaços, vivências e formações diferenciadas. Foi nesse processo de consolidação do campo que passou a existir a distinção entre obras de leitura escolar e obras de literatura infantil, ou seja, reconheceu-se que alguns textos eram produzidos com a intenção de construção de saberes escolares e outros, para além disso, eram produzidos pensando-se em ofertar, também, obras de literatura para as crianças. A separação entre obras de leitura escolar e obras literárias aconteceu aos poucos, quando houve um rompimento entre a função didática e moralizante e a função literária e artística de uma obra tida como pertencente da literatura infantil brasileira.

Por isso, a literatura infantil começa a se aproximar cada vez mais da literatura, diferenciando-se somente pelo leitor pretendido. Inicia-se, então, a defesa de uma produção voltada para a criança com objetivo literário, sem intenções secundárias que descaracterizam as obras literárias. Consoante Cademartori (2009),

A literatura não tem – e não pode ter – compromisso com a transmissão de antídotos a males sociais variados, seja sexismo, racismo, desigualdade social, poluição ambiental e outros. Tampouco lhe cabe a difusão de noções de saúde, higiene, religião, ecologia, história. Ou o texto é pragmático ou é literário. Ou é doutrinário ou é estético. Uma coisa e outra também não consegue ser. Livros em que predominam intenções ideológicas ou pedagógicas, e que têm por objetivo primordial transmitir informações de ordem prática, não privilegiam a fantasia nem a aventura individual do leitor com os sentidos múltiplos que um texto literário é capaz de suscitar. Se prevalecer o intuito de pregação, o texto fica impedido de, ao mesmo tempo, ampliar e matizar seus efeitos de sentido. (CADEMARTORI, 2009, p. 48- 49).

É notório que a literatura para crianças toma novas feições no Brasil a partir das produções de Monteiro Lobato, pois ganha forma de obras artísticas que levavam em consideração o leitor pretendido, ou seja, as crianças. Lobato foi então o pioneiro dos textos em prosa. E podemos dizer que Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, Mário Quintana, Vinicius de Moraes e José Paulo Paes fizeram parte dos pioneiros para a produção poética. Suas obras foram publicadas antes e no início do boom da literatura infantil, que aconteceu no início da década de 1970, período em que o mercado editorial ganha força e novas tecnologias são implantadas, trazendo contribuições para propostas gráficas e, também, para o texto imagético, com novas cores, técnicas e interações.

Mesmo que quatro das cinco obras tenham sido lançadas antes desse momento, que deu mais destaque e cor aos livros literários para crianças e jovens, elas permaneceram no mercado editorial recebendo distintos investimentos, o que contribuiu para que elas caminhassem ao lado das novas produções. Há, nessa permanência, a referência ao texto poético e ao próprio poeta. Os cinco poetas iniciaram sua produção para a poesia e, posteriormente, deram também sua contribuição para a poesia infantil, sem que, em conformidade com Cademartori (2009), fosse diminuída a qualidade dos poemas.

Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, Mário Quintana, Vinicius de Moraes e José Paulo Paes inauguraram, nessa nova proposta, uns de forma mais tímida, outros de forma mais ousada, uma produção poética livre do moralismo, do didatismo, sem deixar de dialogar com o mundo infantil, com o imaginário através do ritmo, da sonoridade, da linguagem, da conversa com a palavra.

As memórias da infância de Henriqueta Lisboa, o lirismo de Cecília Meireles, as brincadeiras musicais de Vinicius de Moraes, as histórias instigantes e, ao mesmo tempo, poéticas de Mário Quintana, o humor conciso nos jogos de palavras de José Paulo Paes são marcas expressivas para a produção da poesia infantil brasileira:

Nomes como o de Olavo Bilac, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Mário Quintana, Vinicius de Moraes e José Paulo Paes são referências obrigatórias quando se fala de poesia infantil no Brasil. Todos eles escreveram com igual inteligência, e pode-se dizer que os livros que escreveram são aqueles que compõem o cânone da produção poética para crianças de grande circulação nacional. Eles hoje representam marcos dessa produção, em torno dos quais giram outros autores e obras. (MACHADO, 2003, p. 54).

Assim, podemos dizer que suas produções passaram a fazer parte da memória coletiva, passando a ser consideradas clássicas e referências da poesia infantil brasileira a partir das avaliações recebidas pelos primeiros leitores que as acessaram.

Os livros inesquecíveis, aqueles que nos causaram impacto na juventude, e ainda nos reservam prazer e surpresas ao serem relidos muitos anos depois, fizeram parte de nossa formação de conceitos, ordenaram certas vivências, mas sobretudo, nos fascinaram. (CADEMARTORI, 2009 p. 84).

Ao definir uma obra como clássica ou como uma obra de literatura concordamos com Eagleton (2006), que aponta como causas os valores e a construção feita por argumentos de sujeitos interessados por esses aspectos da cultura de uma dada sociedade. As obras conservam seu valor através do tempo por entre variadas leituras e porque não reescritas, já que passam a ser interpretadas pelos atores que as reproduzem e, por outros leitores, de outras formas. Conforme Eagleton (2006), “todas as obras literárias, em outras palavras, são “reescritas”, mesmo que inconscientemente, pelas sociedades que as leem; na verdade, não há releitura de uma obra que não seja também uma ‘reescritura’.” (EAGLETON, 2006, p. 19).

Dessa forma, supomos e tentaremos comprovar que as cinco obras se tornaram clássicas pelo valor que foi dado ao texto e ao poeta que a compôs, produzindo uma legitimação que fez com que estivessem presentes ao longo de anos. E, por esse ângulo, será importante conhecer os motivos que fazem com que os textos literários não envelheçam, não percam sua força, sendo relevantes para as gerações de leitores.

Obras como as que investigamos oferecem uma imersão em um texto poético, ou seja, a combinação entre sons, imagens, por meio do jogo, da imaginação e pela experimentação da linguagem. É um conjunto de obras que poderia ser denominado como “sem-idade, porque reorganiza a realidade próxima da infância em esquemas mentais e corpóreos, isto é,

observando aspectos relacionados ao entendimento, ao som, ao ritmo”. (SORRENTI, 2007, p. 16).

Seriam as obras que investigamos produções que se esmeram em oferecer a essência da poesia sem rótulos, somente com o cuidado de permitir que o pequeno leitor tenha condições de interagir, de brincar e jogar com as palavras? Compreendemos o jogo, nesse caso, como

uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da vida “quotidiana”. (HUIZINGA, 2014, p. 33).

Apropriando-nos dos apontamentos de Huizinga (2014), entendemos que a poesia desses poetas pode ser, então, compreendida como um jogo com características lúdicas que envolvem a ordem (organização espacial dos poemas e da leitura), a tensão (entre o leitor, a leitura e a construção de significados), o movimento e a mudança (à medida que entra no poema, o leitor se conecta com outro mundo, outra realidade, ou seja, outro movimento), o ritmo (o compasso da leitura, a sonoridade das palavras, as rimas), a solenidade (que marca o ato de ler um texto em versos) e o entusiasmo (que pode vir da escolha livre em ler). “Os jogos infantis possuem a qualidade lúdica em sua própria essência, e na forma mais pura dessa qualidade.” (HUIZINGA, 2014, p. 21). Portanto, os livros de poesia infantil poderiam ser considerados obras que apresentam propostas que conquistam não só o leitor pretendido, mas também os adultos, afinal, o jogo, a brincadeira, o sair da realidade também fazem parte da vida.

Ao acompanhar várias dimensões do percurso das obras, a pesquisa que empreendemos revelou o processo de transformação da sociedade brasileira que foi incorporado pela produção literária para crianças. Assim, buscamos descrever e analisar como, ao longo das diversas edições das obras, foram sendo adotadas novas técnicas gráficas, bem como o uso das ilustrações que passaram a ocupar maior espaço nas produções. Mais do que isso, tentaremos mostrar a forte relação da presença das obras dentro e fora do contexto escolar, a partir de avaliações e críticas literárias, da força do texto do poeta, dos investimentos editoriais, da presença em livros didáticos e antologias e do impulsionamento da produção da literatura infantil pelos programas governamentais de incentivo à leitura. Além disso, buscamos confirmar se a escola ainda é um espaço privilegiado para a interação do leitor com a leitura a partir da oferta dos livros literários e da mediação na formação do leitor literário.