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4 A BUSCA PELO ESPAÇO DAS CINCO OBRAS DE POESIA

4.3 A poesia infantil e as cinco obras

“Poesia é brincar com palavras Como se brinca com bola, papagaio, pião Só que bola, papagaio, pião

De tanto brincar se gastam As palavras não: Quanto mais se brincam com elas,

mais novas ficam Como a água do rio que é água sempre nova

Como cada dia Que é sempre um novo dia Vamos brincar de poesia?”

(José Paulo Paes)

Dentro da compreensão do processo de consolidação da literatura infantil brasileira, que teve influências políticas, econômicas, educacionais e culturais, nacional e mundialmente, faz-se necessário aprofundar e especializar o olhar nas especificidades de constituição do campo da poesia infantil brasileira.

Ao longo do seu processo de construção, a poesia infantil esteve conectada a temáticas e instituições. A primeira forte ligação foi com a tradição oral, a que foi passada de geração em geração e trabalha com imagens, sons e símbolos, presentes nas parlendas, cantigas de roda, cantigas de ninar. Essa tradição, que resgata o folclore, circula ainda nas produções poéticas por meio de releituras.

Dentro do caminho da poesia infantil brasileira, de acordo com Bordini (1986), as produções podem se dividir entre poesia infantil e pseudo poesia infantil. As produções consideradas inferiores que desconsideram as características que fazem um texto ser percebido como poema e também não respeitam as escolhas temáticas, visando a um dado leitor pretendido, são classificadas pela autora como pseudo poesia. Bordini (1986) afirma que existem características básicas que precisam estar presentes nas produções e, estando presentes, produzem uma não diferenciação dessas com as da poesia em geral, excetuando-se as temáticas:

Esse prazer da estranheza, apoiado na conexão surpreendente e amplificado pelas repetições estruturais, associa-se, junto ao consumidor infantil, ao prazer do jogo, também interativo, gratuito, simulador, buscando rearranjar o real dentro de um esquema não apenas mental (o nível semântico, no poema) de entendimento, mas também físico, de participação corporal (o nível fônico no poema). Aparentada, portanto, ao ludismo, embora esse não seja privativo da criança, a poesia infantil genuína é indistinguível da poesia não- adjetivada, salvo, talvez, em termos temáticos, o que não é o caso do texto proposto, peça lírica que não concede nada à pré-noção de infantilismo antes comentada. (BORDINI, 1986, p. 13).

Além da desqualificação, as pseudo poesias afastavam as crianças das produções do gênero poema. O foco dessas produções era, antes de mais nada, transmitir valores, normas de conduta e conteúdos didáticos. E, além do foco ser formar uma criança como a sociedade

esperava que ela fosse, essas produções não se preocupavam com características básicas de uma produção poética. Assim, esses textos não despertavam nas crianças o interesse. Não era, dessa forma, a escola que mediava a relação entre a criança e a poesia.

Para Bordini (1986), as produções consideradas genuínas eram organizadas e produzidas com o cuidado em relação: à organização espacial; à apresentação de um texto com uma formatação em versos e estrofes; a equivalências e arranjos de elementos sonoros; à multiplicação de sentidos; à diminuição do pensamento mágico nas produções à medida que as crianças vão se desenvolvendo; ao trabalho com a percepção e expressões imagéticas, metáforas e metonímias; à valorização da imaginação que completa o texto verbal, deixando abertura para a interação entre leitor e texto, já que o caráter inacabado é uma característica importante dessas produções; à ampliação da relação do leitor com o mundo.

Algumas dessas produções tinham a marca de poetas que buscavam se colocar no lugar da criança, sem diminuí-la, com o intuito de chegar ao seu mundo e conquistá-la. Apresentam o cotidiano infantil, a existência infantil, a relação entre infância e natureza, fazem adaptações da herança folclórica ou brincam com as convenções da linguagem ou realidade.

As obras dos poetas Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, Mário Quintana, Vinicius de Moraes e José Paulo Paes são citadas por Bordini (1986) como exemplos da poesia infantil que se assemelhava à poesia geral em relação à qualidade estética, artística e literária das produções, apresentando características essenciais do texto poético, bem como o cuidado em levar em consideração temáticas e abordagens que considerassem o leitor pretendido, ou seja, a criança.

O início da consolidação da poesia infantil brasileira, da mesma forma que a produção em prosa, fez uso das traduções, adaptações das obras estrangeiras, no século XIX e anteriormente a ele. Então, inicialmente, circulavam as obras oriundas de outros países com escassas produções manuscritas, feitas por brasileiros, conforme aponta Camargo (1998). Para o pesquisador Camargo (1998), o processo de consolidação da poesia infantil brasileira, a partir do século XIX, parece ser marcado por três paradigmas.

O primeiro deles é o paradigma moral e cívico, iniciado no século XIX e finalizado em 1960, relacionado com a função educativa, assumida pela poesia, e sua forte ligação com a escola. Ou seja, o eu poético era um adulto que encaminha um poema para uma criança com a intenção de transmitir valores de uma dada educação moral. Os poemas, em sua maioria, eram organizados em Antologias, para serem trabalhados nas escolas, com o intuito de transmitir

padrões sociais e normas de condutas a serem seguidos, além de serem a base para o ensino de Língua Portuguesa.

Um livro que tem grande destaque nesse período, com 27 edições até 1961, é Poesias infantis, de Olavo Bilac, que, de acordo com o próprio autor, foi produzido para ser utilizado em sala de aula, com o intuito de contribuir para a formação moral dos alunos, por meio de uma linguagem simples e temáticas do cotidiano. Mesmo sendo produzido para esse fim, hoje é uma obra considerada clássica da poesia infantil brasileira.

A diferença entre a produção de Olavo Bilac (1904) e de Henriqueta Lisboa (1943), escritas no período do paradigma moral e cívico, é que a obra O menino poeta, da poetisa, libertou-se da dependência escolar e investiu em um cuidado com a linguagem, com as temáticas, ou seja, com o literário, deixando de lado a função primordial do período de transmitir ensinamentos para as crianças.

O livro O menino poeta (1943), de Henriqueta Lisboa (1901-1985), privilegia o lirismo, utilizando largamente a metáfora, afastando-se, assim, do descritivismo e da narratividade características tanto de Olavo Bilac como da produção que o antecede, mas sem romper com o paradigma moral

e cívico. (CAMARGO, 1998, p. 6).

Isso posto, pode-se dizer que algumas obras não seguiam os padrões do contexto em que estavam inseridas, incorporavam características das produções tidas como direcionadas para os adultos e, dessa forma, acompanhavam as propostas da poesia geral do período. A obra O menino poeta, de Henriqueta Lisboa, pode ser considerada uma obra de transição entre propostas da poesia infantil, dando início ao rompimento com o foco de moralizar e educar.

O segundo paradigma é denominado por Camargo (1998) como paradigma estético por focar na produção de poemas que trabalhem com a linguagem e suas potencialidades. Sidônio Muralha, poeta português, radicado no Brasil, é considerado aquele que efetivamente rompeu com o primeiro paradigma por meio da sua obra A televisão da bicharada (1962), ao trazer para o público leitor poemas que enfatizam o jogo sonoro, as rimas, o ritmo, a musicalidade das palavras, o humor e ao narrar breves cenas cômicas. Porém, duas obras são apontadas como aquelas que consolidam esse paradigma: Ou isto ou aquilo (1964), de Cecília Meireles e A arca de Noé (1970), de Vinicius de Moraes.

Nos últimos quinze anos do século XX, há uma produção não só preocupada com a linguagem, mas também em oferecer o humor, o jogo, a brincadeira. Os poetas que produziram com esse foco estão inseridos, como indica Camargo (1998), no terceiro paradigma, o paradigma lúdico. José Paulo Paes e Sérgio Capparelli são mencionados como

representantes dessa proposta. Assim, a primeira produção de José Paulo Paes, voltada para o público da poesia infantil, É isso ali (1984), está inserida no terceiro paradigma.

Ao inserir a poesia infantil brasileira na divisão dos quatro períodos, algumas produções ganham destaque, como pode ser observado na Tabela 4:

Tabela 4 – A poesia infantil e os períodos de produção

Fonte: Elaborada pela autora.

Pode-se dizer que as obras, do gênero poema, que incorporaram a essência da literatura infantil, ou seja, o folclore, as tradições orais, o cuidado em se pensar em temáticas para o pequeno leitor, o trabalho com a linguagem, com o humor, o jogo de palavras, bem como as contribuições dos movimentos artísticos, com maior fluidez, são as obras que não se perderam ao longo do tempo, ou seja, permanecem circulando, em variadas versões.

Por esse motivo, essas obras chamam a atenção e são mencionadas, por distintos pesquisadores, como é o caso de Camargo (2012), Coelho (2000), Pinheiro (2000, 2018), Cunha (2012), Sorrenti (2007), Lajolo e Zilberman (2007), Machado (2003), Aguiar e Ceccantini (2012), Bordini (1986), como referências e como clássicas da poesia infantil brasileira. Dessa forma, essas obras podem ser consideradas marcos de mudanças, bem como referências em sofisticação estética, artística e literária ao produzir um texto literário respeitando as características essenciais do gênero, bem como apresentando temáticas e organizações que pensem e toquem o leitor pretendido.

Neste capítulo vimos, portanto, que, a poesia infantil brasileira nasceu ligada à instituição escolar e, muitas vezes, conectada às produções estrangeiras. Além de buscar alcançar o objetivo de contribuir com a formação moral da criança, ela carregava os pressupostos vivenciados na sociedade. Essa obediência contribuiu para que fosse considerada, por muitos, como um gênero menor. Aos poucos e, também de forma tímida, a

Período Obras

1890 a 1920

Poesias infantis – Olavo Bilac (1904)

Cantigas de Crianças e do Povo – Alexina de Magalhaes Pinto (1897) Alma Infantil – Francisca Júlia (1912)

O Livro das Crianças – Zalina Rolim (1897) 1920 a 1945 O menino poeta – Henriqueta Lisboa (1943) 1945 a 1965 A televisão da bicharada – Sidônio Muralha (1962)

Ou isto ou aquilo – Cecília Meireles (1964)

1965 a 1985

Pé de Pilão – Mário Quintana (1968) Caderno de Capazul – Stella Carr (1968) A Arca de Noé – Vinicius de Moraes (1970) É isso ali – José Paulo Paes (1984)

poesia infantil passou a incorporar as contribuições dos movimentos, como o Modernista, e a resgatar as raízes que deram origem ao povo e à cultura popular brasileira.

A partir da quebra com a poesia tradicional e a incorporação do Movimento Modernista, a poesia infantil passou a mudar sua forma de lidar com a temática, com o leitor pretendido e com o trabalho com o texto literário. Na década de 1940, com a obra O Menino Poeta, de Henriqueta Lisboa, a temática infância foi resgatada. A poesia dos anos de 1960 e 1970 resgataram-se temas abordados pelo folclore, pelas cantigas, pelo cotidiano, pela relação entre seres e coisas, pelo jogo, pela brincadeira com a linguagem, o humor, como pode ser evidenciado nas obras Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles e A arca de Noé, de Vinicius de Moraes. A partir dos anos de 1970 e 1980, Coelho (2000) considera que há uma eclosão criativa na produção e, assim, há “a valorização da poesia como um modo de ver o mundo e um caminho para a autodescoberta do eu em relação ao tu (ao outro) com o qual deve conviver para que a vida se cumpra em plenitude.” (COELHO, 2000, p. 251).

Os poetas (Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Mário Quintana e José Paulo Paes) e suas obras, dentro da história da poesia infantil brasileira, representam, como foi evidenciado neste capítulo, as rupturas, as inovações, a aproximação com a poesia para adultos. Representam, então, uma nova forma de produzir poesia, por meio da elevação da importância da liberdade e de elementos artísticos.