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4 A BUSCA PELO ESPAÇO DAS CINCO OBRAS DE POESIA

4.2 As fases da literatura infantil brasileira

4.2.1 Primeiro Período: O início da produção da literatura infantil brasileira (1890-

“Diz a História que os índios comeram o bispo Sardinha. Mas como foi que eles conseguiram abrir a latinha?” (José Paulo Paes)

O primeiro período é marcado por uma produção inspirada na experiência europeia e, também, na divulgação de uma imagem nacionalista superficial. Anteriormente, como já foi mencionado, as obras que circulavam eram obras portuguesas e, aos poucos, começavam as traduções dos contos de fada e, do mesmo modo, as suas adaptações. As obras imprimiam, em seus conteúdos, ideais de caridade, obediência, aplicação no estudo, constância no trabalho, dedicação à família, visões idealizadas de pobreza, reforço de conteúdos curriculares, difusão de modelos de língua nacional e uma missão patriótica por meio da exaltação da natureza, da unicidade, da grandeza nacional e de episódios da história do Brasil.

Esse início da literatura infantil brasileira confunde-se com o aumento da produção dos livros de leitura utilizados pelas escolas no final do século XIX e início do século XX. Muitos dos livros utilizados para a leitura faziam parte de obras da literatura universal e de textos Bíblicos. Muitas escolas, por exemplo, adotavam Os Lusíadas como livro didático para se ensinar aspectos da Língua Portuguesa. Então, nos catálogos analisados por Arroyo (2011), há indicação de uma produção de obras voltadas para a cultura da infância e adolescência, enfocando temáticas escolares, temas religiosos e literatura. As produções, inicialmente, são traduções de obras estrangeiras que, não necessariamente, eram traduzidas com o devido cuidado, passando para produções estrangeiras e nacionais com traduções e adaptações mais cuidadosas. Aos poucos, as obras de leitura passam a ser autorizadas a sair do espaço escolar, e, assim, a literatura infantil começa a adquirir características que ultrapassam o enfoque didático e assume o caráter de prazer, ludicidade, imaginação e diversão, bem como há um investimento em ilustrações.

Parece-nos que nunca é demais insistir na inventariação dos títulos de livros usados nas escolas no começo deste século. Tais livros constituíam o que então se chamava “a leitura escolar”, ou seja, o livro por excelência lido sistematicamente pela infância e juventude do Brasil, ambos à espera de uma autêntica literatura infantil, mesmo que nos viesse de fora. E assim sucedia, mas essa mesma, a que nos vinha de fora, ressentia-se de uma tradução adequada para a linguagem brasileira infantil, embora nesse mesmo setor se possam apresentar muitas exceções [...]. (ARROYO, 2011, p. 130).

Por meio de pesquisas realizadas pelo autor (ARROYO, 2011) em catálogos comentados de editoras e, também, em buscas nas bibliotecas nacionais, vem à tona esse processo de construção da literatura infantil brasileira, que é tratado similarmente por vários pesquisadores. Ou seja, predominam livros de leitura escolares, obras estrangeiras, valorização do português de Portugal e traduções que não levavam em consideração as questões brasileiras. Aos poucos, as traduções passam a ser mais cuidadas, os clássicos universais passam a transitar pelos leitores brasileiros, bem como as imitações. Há títulos que são recorrentes nas apresentações dos pesquisadores, como: Robinson Crusoé, de Daniel Defore; Viagens de Gulliver, de Swift; Contos de Andersen; de Júlio Verne; As Fábulas, de La Fontaine; As aventuras de Telémaque, de Fénelon; Mil e uma noites, clássico da literatura árabe, e também outras obras que não são tão citadas por outros pesquisadores, mas que circularam no Brasil no século XIX: Os caçadores de cabeleiras, de Mayne Reid; O Gil Brás da Infância ou Aventuras de Gil Brás, de José Fonseca; Simão de Nântua, de M.Laurent de Jussieu; Escolha de histórias morais; Resumo da História do Novo Testamento; Contos Militares de Amicis; Fábulas de Fedro; livros de Julio Verne; Aventura de três russos e três

ingleses na África; Astúcias de Bertoldo, de Giulio Cesaro Croce; O alfajore do contador; dentre outros.

O marco inicial da produção efetiva da literatura infantil brasileira pode ser relacionado à criação da imprensa, em 1808, quando Dom João VI veio para o Brasil e garantiu alterações culturais e educativas. No entanto, a produção de livros não iniciou de forma imediata. Os primeiros impressos foram os jornais.

Não somente com a implantação da Imprensa Régia, mas também pelo processo de urbanização, a produção editorial no Brasil passou a ter, mesmo que timidamente, um aumento em função da ampliação dos leitores pretendidos.

O período marcado pela transformação de uma sociedade rural para uma sociedade urbana, de forma lenta e gradativa, abre espaço para a importância da escola e, juntamente com isso, a publicação de impressos voltados para o processo de escolarização, como os livros didáticos e os livros de literatura infantil.

Decorrente dessa acelerada urbanização que se deu entre o fim do século XIX e o começo do XX, o momento se torna propício para o aparecimento da literatura infantil. Gestam-se aí as massas urbanas que, além de consumidoras de produtos industrializados, vão constituindo os diferentes públicos, para os quais se destinam os diversos tipos de publicações feitos por aqui: as sofisticadas revistas femininas, os romances ligeiros, o material escolar, os livros para crianças. (LAJOLO; ZILBERMAN, 2007, p. 23).

Outro aspecto relevante do processo de consolidação da literatura infantil brasileira, apontado por Arroyo (2011), é a sua forte relação com a imprensa. A imprensa impulsionou a produção, inicialmente, de jornais para esse público, com influências de impressos da Europa, com ênfase na Espanha e na França. Além disso, após a liberação do Reino para a abertura da imprensa na Colônia, houve condições para que os escritores brasileiros produzissem com maior efetividade. Nesse sentido, em um primeiro momento, houve um movimento para a produção de jornais escolares, que passaram a ser substituídos pela Revista O Tico-tico24 no início do século XX.

A impressa escolar e infantil fez-se presente em todo o Brasil com maior ou menor intensidade em diferentes estados. Os conteúdos eram variados. Muitas vezes, dentro do contexto escolar, havia um resgate da valorização do nacional e da cultura popular. Já havia,

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O Tico-Tico, como que galvanizando toda a necessidade de leitura das crianças brasileiras, impunha-se pioneiramente como publicação tecnicamente concebida. Fora a revista organizada em bases racionais, com motivos e temas de interesse nacional. O grande número de pequenos jornais e revistas que antecederam com dificuldades a importante publicação de Luís Bartolomeu de Sousa e Silva havia criado condições excepcionais para o triunfo de O Tico-Tico, que haveria, por mais de meio século, de se tornar leitura obrigatória de crianças brasileiras. (ARROYO, 2011, p. 212).

nesse sentido, um maior cuidado em se considerar a infância e a adolescência como períodos de desenvolvimento distintos da fase adulta. Os jornais eram, dessa forma, antecedentes de produções literárias voltadas para a infância publicadas em livros.

Eram veículos que recebiam e faziam circular as primeiras manifestações literárias de intelectuais, escritores e poetas, que, mais tarde, em muitos dos casos, se salientariam no país das letras. Era, de certo modo, a meninada pedindo leitura, literatura que, praticamente, não existia e que ela mesma começava a fazer, criando uma atmosfera, um clima propício, que logo foi percebido por alguns autores aparecidos na época, como Olavo Bilac, Coelho Neto, Alexina Magalhães Pinto, Manuel Bonfim e tantos outros. (ARROYO, 2011, p. 194).

Isso aconteceu de forma intensa no final do século XIX, estendendo-se para o século XX. No entanto, no século XX, com a produção da Revista O Tico-tico, a produção dos jornais diminuiu e muitas crianças passaram a ler essa revista, que trazia temas sobre educação, moral, literatura e entretenimento. Muitos escritores da literatura infantil brasileira participaram da produção dessa revista, que passou a fazer parte do universo infantil, mas também do universo adulto. Passou por diferentes fases. Inicialmente, fazia uso de padrões estrangeiros, para, depois, criar os personagens brasileiros e destacar os usos e as formas de se viver no Brasil.

A literatura infantil brasileira começa a se constituir no mesmo período em que há a abolição da escravatura e o início do período republicano, dois aspectos propícios para a construção de um público sólido, pensando-se na expansão dos espaços urbanos e, similarmente, na ampliação da oferta de escolas.

Diferente do que acontece com a literatura considerada não infantil, que se abre para a liberação do uso de linguagens não academicistas, a literatura infantil se liga fortemente a uma linguagem requintada, rebuscada e, igualmente, às demandas escolares.

O acesso à Literatura Brasileira, inicialmente, se dá pela leitura de jornais, em função da precariedade da imprensa. A produção literária brasileira no final do século XIX e início do século XX sai do romantismo e se abre para a produção que apresenta o regionalismo, a denúncia social e, também, o simbolismo a partir de Olavo Bilac, Aluísio de Azevedo, Raul Pompéia, Monteiro Lobato, dentre outros.

É nesse contexto que a literatura infantil começa a se organizar. Passa a ser vista como uma mercadoria para um Brasil que se encontrava em um período de modernização e urbanização, assim como possibilidade de atingir a proposta de formação de leitores pela instituição escolar. “Assim, também as campanhas pela instrução, pela alfabetização e pela

escola davam retaguarda e prestígio aos esforços de dotar o Brasil de uma literatura infantil nacional.” (LAJOLO, ZILBERMAN, 2007, p. 26).

A produção para as crianças passa a ser vista como uma possibilidade para escritores e professores, visto que tinha forte influência dos governos e estes tinham interesse na formação das crianças.

Tratava-se é claro, de uma tarefa patriótica, a que, por sua vez, não faltavam também os atavios da recompensa financeira: via de regra, escritores e intelectuais dessa época eram extremamente bem relacionados nas esferas governamentais, o que lhes garantia a adoção maciça dos livros infantis que escrevessem. Se isto, por um lado, pode explicar o tom gramscianamente orgânico da maior dos contos e poesias infantis desse tempo, por outro, sugere que escrever para crianças, já no entre séculos, era uma das profissionalizações possíveis para o escritor. (LAJOLO, ZILBERMAN, 2007, p. 27).

Dentro da produção especificamente da poesia infantil dessa época, as obras de Zalina Rolim – “Coração” (1893) e “Livro das crianças” (1897) –, de Olavo Bilac – “Poesias Infantis” (1904) –, de Francisca Júlia e Júlio da Silva – “Alma infantil” (1912) – são evidenciadas pelos pesquisadores como referência da época e tiveram um percurso editorial longo. Outros autores são também citados na pesquisa de Arroyo (2011):

Não menor foi a contribuição de diversos autores na área da poesia destinada à infância. O poeta cearense Juvenal Galeno, em 1871, dava para as crianças do seu estado um volume intitulado Canções da escola, registrado por Sacramento Blake. Em Porto Alegre, saía dos prelos um volume de 150 páginas com poesias infantis: era o livro de José Fialho Dutra, Flores do

campo. Em 1886, José de Sousa Lima editava, no Rio, Aos bons filhos, série

de pequeno poemas para as crianças brasileiras. (ARROYO, 2011, p. 236).

Arroyo (2011) destaca o investimento da Livraria Francisco Alves, no início do século XX, em produzir obras para a infância levando em consideração uma formatação diferenciada, bem como o uso de ilustrações. São citadas, nessa produção, obras de poesia infantil que são consideradas pioneiras dos escritores brasileiros:

A Livraria Francisco Alves lançara os Contos pátrios, de Olavo Bilac, e

Histórias da nossa terra, de Júlia de Almeida – Todos ilustrados. E já então

recomendava as Poesias Infantis, de Olavo Bilac, o Teatro Infantil, de Olavo Bilac e Manuel Bonfim, e O livro das crianças, de Zalina Rolim. Já com seu livrinho Coração merecera a poetisa elogios dos grandes nomes de poetas de então, como Olavo Bilac. São muitas as poesias de Zalina Rolim declamadas pelas crianças do Brasil todo. (ARROYO, 2011, p. 255).

Lajolo e Zilberman (2007) e Arroyo (2011) apontam críticas às obras que eram traduzidas para o Português de Portugal e, por isso, não levavam em consideração o vocabulário das crianças brasileiras, o que as distanciava da compreensão do que se lia.

É, segundo eles, por esse motivo que houve, nas duas primeiras décadas do século XX, um movimento para nacionalizar a literatura infantil brasileira. Foram criados projetos editoriais que visavam à nacionalização do acervo literário europeu. Figueiredo Pimentel25 inaugurou as traduções “abrasileiradas” com o famoso Contos da Carochinha, as obras dos Irmãos Grimm, Perrault e Andersen. Foi pioneiro, também, dentro da Editora Laemmert, Carlos Jansen26, que traduziu e adaptou obras como Robinson Crusoé e As aventuras de celebérrimo Barão de Munchhausen.

As obras de literatura infantil se misturavam com aquilo que era produzido para ser trabalhado em ambiente escolar. Além disso, inicialmente, existiam as traduções de obras utilizadas para a formação da criança em países como França e Itália, e todo o nacionalismo e particularidades desses territórios eram trazidos para a formação da criança brasileira, o que gerava um certo distanciamento do que as crianças vivenciavam na vida real com as leituras apresentadas.

Adiante, alguns escritores, baseando-se nessas obras estrangeiras, ou seja, apoiando-se no enredo, começaram a construir obras parecidas, levando em consideração o contexto brasileiro. No entanto, não havia o cuidado em apresentar características e diferenças entre as diversas regiões brasileiras, que eram apenas descritas de forma muito simples, diferente do que acontecia com obras da literatura geral, que se especializavam em questões regionalistas.

O foco da produção infantil era apresentar uma leitura que contribuísse para a formação moral da criança leitora, exaltando o civismo e o patriotismo por meio da exaltação ao trabalho, à obediência, à disciplina, à caridade e à honestidade, “[...] confirmando seus compromissos com um projeto pedagógico que acreditava piamente na reprodução passiva de comportamentos, atitudes e valores que os textos manifestavam e, manifestando, desejavam inculcar nos leitores.” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2007, p. 32).

25 Alberto Figueiredo Pimentel (1869-1914) foi poeta, romancista, jornalista, cronista, autor e tradutor de

literatura infantil. “Cronologicamente, Figueiredo Pimentel instaura na literatura infantil brasileira – que até então em sua forte maioria se manifestava por meio de livros presos e interessados ao sistema educacional do País – uma nova orientação: a popular. Isto é, o livro de autores clássicos já não se apresentava apenas por meio de edições que visavam exclusivamente ao público escolar. Nisto o escritor e tradutor brasileiro contou com o auxílio e inspiração de José de Matos, então gerente da famosa Livraria Quaresma. Com efeito, José de Matos, começou a publicar livros em apresentação de caráter popular, e foi por sua inspiração que Figueiredo Pimentel nos deu, em 1896, uma tradução de Perrault, de Grimm e outros autores com o título de Contos de fadas, que traziam algumas ilustrações. De 1894 são os Contos da carochinha. Do ano de 1896 são Histórias da avozinha e

Histórias da baratinha.” (ARROYO, 2011, p. 249).

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Carlos Jansen (1829-1889) foi militar, escritor, jornalista e tradutor. Era alemão e mudou-se para o Brasil. “Devemos destacar desde logo a atuação de Carlos Jansen, a que se deve a apresentação, em tradução brasileira, de muitas obras clássicas da literatura infantil, assim consideradas. Desde logo percebeu o ilustre professor do Colégio Pedro II as deficiências que havia no Brasil no terreno da literatura infantil e juvenil e as já manifestas inconveniências representadas pelas traduções ou originais portugueses. Carlos Jansen inscreve-se, desse modo, entre os pioneiros de nossa literatura infantil não só pelas traduções que realizou, como também pela consciência que tinha do problema.” (ARROYO, 2011, p.242).

As paisagens naturais brasileiras são exaltadas e valorizadas tanto pela literatura infantil quanto pela não infantil, com intensidades e focos distintos. Há uma centralidade no país agrícola idealizado, a paz da vida no campo, já que não se menciona o fracasso e a pobreza de muitos trabalhadores rurais. São por esses e outros detalhes da produção que se fala em um nacionalismo superficial, já que as obras não retratavam todo o universo da problemática brasileira do período.

Além da preocupação em impor um nacionalismo superficial, valores e moralidade nas produções de literatura infantil, havia também um cuidado, nessa época inicial, com a escrita, que deveria usar a norma culta. Dessa forma, o regionalismo, os contos populares e o folclore perdiam as características típicas da linguagem coloquial.

Os escritores que já produziam para adultos e produziram similarmente para crianças concordavam com esse cuidado, posto que queriam prezar pela sua trajetória de escritores. “[...] Olavo Bilac, Coelho Neto ou Francisca Júlia não podiam, mesmo que o quisessem, ter nas suas carreiras de escritor para crianças uma atitude perante a língua diferente da posição acadêmica, culta e perfeccionista que permeia seus escritos não-infantis.” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2007, p. 41).

Essas imposições à literatura infantil no início da sua construção no Brasil são ainda vivenciadas, com grau diferenciado. A literatura infantil, muitas vezes, torna-se dependente de “sugestões” de outras instâncias, como a escola e o Estado, a fim de permanecer com suas produções no mercado editorial brasileiro.