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Cada peregrino possui motivos de âmbito pessoal que provocam a sua iniciativa e entrega a uma acção tão exigente e com algum cariz de aventura como é uma peregrinação. Enfrenta medos e inquietudes diversos que exigem uma atitude de coragem e de audácia.

Com certeza que a devoção se assume como principal razão de uma peregrinação, envolvendo nalguns casos o cumprimento de uma promessa ou a penitência por um pecado cometido, mas também em forma de agradecimento pelas graças recebidas e a esperança no futuro.

107 SILVA, José Antunes, A Caminho de Santiago. Como quem procura uma fonte ou uma estrela. Prior Velho: Paulinas,

48 Tradicionalmente, as peregrinações nasciam de necessidades pessoais ou até mesmo colectivas. Em termos individuais, peregrinava-se frequentemente, como ainda hoje acontece em alguns casos, no sentido do sacrifício para que lhe seja concedida determinada graça ou de agradecimento pela graça obtida. Tal era e é visível particularmente em momentos ou fases de especial aflição, como, por exemplo, a cura de uma doença ou a concretização de um desejo. Em termos colectivos, peregrinava-se graças a alguma necessidade colectiva, como por exemplo a fome e a peste instaladas em determinada localidade, ou simplesmente em agradecimento colectivo pela graça recebida.

Na Idade Média, muitos crimes eram punidos com a pena de peregrinação a Compostela, em substituição da prisão efectiva108, tornando-se público o crime. Nalguns casos, os criminosos faziam o percurso de pés atados com correntes, agravando assim a dificuldade do trilho, de forma a melhor expiar os seus pecados.

A pena de peregrinação não surge apenas como uma punição, mas também como uma forma de evitar represálias por parte das famílias das vítimas. Um caso muito peculiar é o crime de adultério público, igualmente punido com a pena de peregrinação, ainda que tenha uma pequena ressalva: era-lhes sentenciada uma peregrinação curta, mas, caso se mantivessem juntos após o cumprimento da pena, a mesma agravava-se e teriam que peregrinar até Compostela.109

Actualmente, as peregrinações, sejam individuais ou colectivas, caracterizam-se essencialmente pela sua vertente religiosa e espiritual, ainda que outras vertentes tendem a caracterizar e a assumir especial protagonismo nas peregrinações como a cultural, a turística e a comercial, de forma a atrair cada vez mais “peregrinos”.

Na peregrinação, a vertente é apenas a espiritual, o que acontece é que, tanto para crentes como para não crentes, os caminhos de peregrinação podem assumir-se como atractivo cultural e por conseguinte turístico.

Em verdade, são muitos os que continuam a fazer a peregrinação com o sentido de agradecimento de uma graça recebida ou com um pedido especial a Deus, ou simplesmente com o intuito de “encontrarem” Deus e de se encontrarem a eles próprios, como se a

108 Curiosamente, ainda hoje na Bélgica, é permitido ao condenado “substituir” a pena de prisão pela “pena” da peregrinação

a Compostela. PRECEDO LAFUENTE, Manuel Jesús, Santiago el Mayor y Compostela. Un apóstol, una ciudad, unos

caminos. Madrid: Aldeasa, 1999, p.87.

49 peregrinação se tratasse de uma viagem ao seu próprio interior, mas sempre com uma índole acentuada de religiosidade e de espiritualidade.

Porém, começa a haver quem procure determinada rota de peregrinação com o intuito de turismo cultural ou turismo religioso110, descobrindo na rota um destino turístico acessível e com muitas ofertas culturais.

3. “Impacto” da Peregrinação nos Territórios

Independentemente da rota de peregrinação escolhida e dos motivos da peregrinação, o peregrino, para além do próprio enriquecimento espiritual, cultural, social, entre outros, tem de ter em conta o importante impacto na sociedade e na comunidade onde se encontra instalado o santuário / mosteiro / local sagrado.

Ainda que os “protagonistas” sejam os locais de peregrinação, muitas são as ofertas disponibilizadas aos peregrinos. De facto, paralelamente à peregrinação, existem serviços e estruturas para os peregrinos, principalmente a nível religioso, cultural, turístico e comercial. Devido às peregrinações, a cultura, a economia e o comércio de determinadas zonas desenvolveram-se de tal forma que, actualmente, são igualmente apontadas como verdadeiros locais turísticos, constituindo uma mais-valia não só para os peregrinos que ali chegam, mas também para os turistas que ali se deslocam.

Muitos são os estabelecimentos hoteleiros, de restauração e de comércio que “vivem” exclusivamente do fluxo de peregrinos, oferecendo-lhes condições especiais, que rapidamente são dadas a conhecer no seio dos próprios peregrinos111. Curiosamente, muitas unidades hoteleiras e de restauração têm como principal público os peregrinos que, ao terem um menu ou preços exclusivos, se sentem mais valorizados e melhor acolhidos nas localidades.

Além do impacto económico, há que valorizar o impacto social, uma vez que os peregrinos, oriundos de todo o mundo, convergem numa rota de peregrinação, em que a partilha e a convivência dão o mote para a interculturalidade, contribuindo para o enriquecimento individual em termos culturais e de personalidade. Paralelamente, os locais de

110 Tratar-se-à desta temática na Parte II, no capítulo I, subcapítulo 2.

111 Muitas informações são obtidas nos albergues, muitas vezes em conversa entre peregrinos “novatos” e outros mais

50 peregrinação vêem-se obrigados a responder a todos os que ali passam, tendo o cuidado de disponibilizar informação acessível a todos os que a procuram, além de promoverem a sua própria cultura e tradições.

Com efeito, muitos são os peregrinos que regressam a determinado país pela boa experiência que tiveram aquando da realização da sua peregrinação, explorando outros locais de atracção.

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CAPÍTULO III

A Peregrinação a Compostela

52 “Inspirados na vida do Apóstolo Tiago, vamos em peregrinação, não para testar

a nossa resistência ou para cumprir promessas, mas para fazer um exercício de caminhada interior. Ao mesmo tempo que vamos avançando no terreno, vamos também purificando a alma, aliviando o stress, abandonando o que é supérfluo, ficando mais atentos e despertos para o essencial.”112