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Motores de Detroit

No documento revista serrote (páginas 81-97)

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Placa pintada à mão, na Flórida, tendo como ilustração um Ford Bigode; esta foto, tirada por Walker Evans em �� de agosto de ����, integra a série feita com a câmera Polaroid ��-��, que havia sido lançada no ano anterior©Walker Evans Archives, The Meropolian Museum of Ar

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penúlimo abril –, eles esão sendo corados em pedaços, por uma lâmina elérica de mil oneladas, para os fornos de boca pequena. A lâmina reduz chassis, molas, rodas, para-choques e udo mais a uma sucaa de espinhas de ferro e cascas curvas de laa, como límulos faiados para servir de comida aos porcos. Quando a gene coloca óculos azuis e espia pelo ofuscane buraco na pora do forno, onde os velhos carros esão sendo digeridos com condimenos como calcário e ferro fundido, vê apenas um lago lívido que vibra com pálidas borbulhas. (A correne de ar saída do forno aquece uma caldeira – a caldeira produz vapor – o vapor movimena uma urbina – a urbina gira a venoinha que produz a correne de ar.)

Duas vezes por dia os carros velhos liquefeios são despejados pelos fundos do forno em recepáculos semelhanes a enormes baldes de ferro: um fedor quene, um assobio ensurdecedor, a evacuação de fezes fundidas de ouro converidas pelo calor num eéreo amarelo embranquecido, uma suprema incandescência, enquano um borrifo de cenelhas brancas como crisais de neve explode como minúsculos foguees. Nenhum ser humano vai à arena abaixo da galeria durane o despejo. Guindases giganes se movem ao longo do eo e, pinçando os caldeirões de sopa dourada, içam- nos aravés do grande celeiro e despejam seu coneúdo em ouros onéis, de onde o líquido escorre por orifícios para denro de moldes cilíndricos de lingoes. Mil e cem oneladas de aço por dia.

Nas vasas revas exuberanes da fábrica, luzes cor de rubi são minúscu- las e afiadas pedrinhas de relógio sob o mecanismo de vigas finas de aço e as conrações de canos vermiformes cor de praa; bafos quenes; uma desa- gradável buzina prolongada; a acrimônia de banhos de salmoura. Um guin- dase semelhane a um giganesco aeroplano azul vem deslizando ao longo do eo e, de uma complexa cabine suspensa, que se move em ângulo reo em relação ao movimeno do guindase, suspende, com grandes pinças de besouro, os lingoes para fora de se us moldes, leva-os pelo galpão e os depo- sia em fornos – os fossos de s auração –, onde eles se e ncharcam de calor aé incandescer, brancos de ão quenes.

Canos praeados – um claque-claque-claque ensurdecedor – o despen- car de avalanches meálicas – os laidos lamurienos de Cérbero em ação. Transmissores como as conchas de monsruosos caracóis vermelhos, gordos arás do vidro em saleas brancas e imaculadas, fornecem força suberrânea para os rolos. A gene olha para baixo a parir de uma esreia galeria, para uma calha de cilindros rolanes: o lingoe, agora vermelho-incandescene e esfriando, sacoleja ao longo dela como um fragmeno de coluna irregular e cheio de ranhuras. Quando ele enra numa grua mecânica, os cilindros acima e abaixo o despem da crosa exerna e uma lâmina raspa seu fundo, onde as impurezas se deposiaram, e o deixam cair num recepáculo do qual ele será expulso oura vez, para ser derreido de novo.

Agora o ferro-gusa foi ransformado em barras e esas são aquecidas para ser aplainadas na laminadora. Longas iras de meal vermelho incan- descene viajando pela eseira – comprimidas para ficar cada vez mais finas à medida que passam por enre os cilindros da máquina, vermes rubros cada vez mais compridos, os quais uma fila de homens, agarrando as alças de caixas preas numa galeria elevada, balançam para frene e para rás ou jogam, enquano elas giram, conforme saem da cenrífuga. Esquadre-  jadas e corada s em exensões iguais , elas se ornam finalme ne um galpão

cheio de aço empilhado.

Fundição: um bae-esaca aroador, que, quando, em ouros empos, produzia eixos, fazia remer a erra alagadiça e abalava o próprio edifício. Mas os eixos agora são feios em Highland Park. Aqui, em Dearborn, os grandes ferreiros com olhos congesionados esão forjando bielas. Sob o cla- rão consane que vem de fornalhas, com golpes deliberados e implacáveis, os impacos da armadilha negra que despenca, máquina-marelo sobre máquina-bigorna, os ferreiros fazem forminhas incandescenes de barras vermelhas, de maéria-prima ainda em brasa, presas por enazes.

Maquinaria: uma biela prona é o produo de �� processos diferenes. Os denes da eseira ransporadora serpeneiam em zigue-zague enre ban- cadas, levando as bielas de uma máquina a oura. Cada uma delas em que ser enrijecida e depois amaciada por diferenes processos de aquecimeno e esfriameno. Ela é girada numa máquina que raspa sua crosa e orna bri- lhane o meal opaco; aprumada em prensas; perfurada por brocas giraó- rias; pré-orneada, orneada, chanfrada e rosqueada; provida de buracos para manivela e pino de êmbolo – os buracos são revesidos de esanho e cobre, o esanho e o cobre polidos aé ficar lusrosos como ceim. A biela é limpa, oxidada, lavada, com os orifícios de lubrificação perfurados e a bolsa de óleo cavada (um homem compaco de erno marrom e óculos redondos acabou de invenar uma nova máquina para fazer odos esses buracos de uma vez e esá supervisionando sua insalação); os sulcos para lubrificação são aberos, a bolsa de óleo alargada, equilibrada numa balança e corrigida – aquelas que pesam demais ou de menos são jogadas em baldes de ferro de bordas largas; buracos no esanho e no bronze são feios com uma broca de diamane; ela é inspecionada em esufas de emperaura consane, exposa à luz violea de ubos de mercúrio e calibrada com a precisão de um milio- nésimo de polegada por um insrumeno com pona de diamane.

A peça – a biela – agora esá quie com a eseira de produção e começa oura jornada ao longo da eseira da linha de monagem, no curso da qual ouras peças são acrescenadas. Os pinos de êmbolo agora são acoplados, a manivela e o pisão são ajusados. A biela é imporane, ela precisa ser uma peça perfeia: em que suporar o desgase de ��� revoluções por minuo. Finalmene, é insalada no bloco do moor. O bloco do moor segue seu

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caminho e, peça por peça, orna-se plenamene equipado; adquire uma esranha focinheira e dois olhos prouberanes – assume um aspeco ani- mal. Ele finalmene raseja eseira acima a caminho do galpão de monagem como um obediene besouro ropical.

Nesse galpão de monagem, sob o esrondo preciso dos marelos, o bloco do moor é içado e deposiado num chassi vazio e ainda sem rodas que, numa eseira dupla, esá passando embaixo para recebê-lo. Agora, oma forma nessa eseira uma espécie de iciossauro que se move lena- mene com as paas esendidas e um único e comprido olho saliene de lesma que logo a gene reconhece como um eixo de ransmissão. Essa forma, à medida que avança, apanha rodas, para-lamas reluzenes, esri- bos reluzenes. De cima, o corpo familiar é baixado sobre a carcaça de olho esbugalhado: a coisa agora é um auomóvel, brilhane e prono para par- ir, mas ainda passivo, ainda movido por oura enidade, como se ainda não ivesse emergido do úero. Ele recebe seus úlimos eses e oques: buzinas são forçadas a falar, limpadores de para-brisa perfazem seu arco, arranhões acidenais são apagados com ina. Cupês preos; sedãs urbanos azuis; Tudors castanhos; conversíveis amarelos; caminhonetes verdes –eles deixam a eseira para sempre; são empurrados para fora, calmos e cini- lanes, com seus olhos de vidro arregalados recém-aberos, rumo à sua primeira sala de exibição iluminada. Ficam esperando para ser dirigidos por algum moorisa ou levados em reboques para os revendedores, pelo longo e melancólico descampado de Michigan.

“Não é humano – eu sou capaz de explodir ao falar sobre isso –, é de abalar o espí- rio de um elefane, ô se é. P refiro morrer de fome a volar pra lá! Eles não e dão nenhum aviso. June suas ferramenas e pegue uma dispensa, diz o chefe – enão eles visoriam sua caixa de ferramenas pra ver se você não esá levando nada da companhia – enão você vai ao deparameno de pessoal com seu car ão de pono e eles e dão uma dispensa que diz que não êm mais ineresse em e usar – e enão é o seu fim. Esou desempregado desde julho. Às vezes eles e deixam com o eu crachá, e aí você não consegue arranjar rabalho em nenhum ouro lugar, porque, se você ena, eles ligam para a Ford e lá dizem que você ainda esá na folha de pagamenos, embora não eseja rabalhando e nem ganhando um mísero cen- avo. Assim eles podem dizer que êm ainda anos homens na folha de pagamen- os. É um prodígio em publicidade, esse Ford.

“Na Inglaerra eles fazem as coisas com mais folga. Eu fui ferrameneiro e mealúrgico em Mancheser desde os �� anos de idade. Ganhei seisshillings

por semana durane see anos – aé a Guerra, quando fui mandado para a Força Aérea Real – mas fui reprovado no ese psicológico – fui mecânico de aviação durane a Guerra. Uma ia minha inha vivido nos Esados Unidos e viso as possibilidades, e quando ela volou, me disse: ‘Ber, você esá desperdiçando

seu empo!’ – enão eu vim pra cá em seembro de ����. Eles esão brincando com o perigo na Inglaerra – esão com as cosas conra a parede –, as indúsrias viais esão sendo arrancadas deles, e eles não conseguem dar cona das des- pesas de previdência social, mas, se pararem de pagar, vão er que enfrenar o ranco. Há sujeios jovens lá que cresceram à cusa da previdência social, e agora você não consegue fazê-los rabalhar – quando arrumam um rabalho pra eles, eles se demiem de propósio. O governo esá enre a cruz e a caldeirinha. Se irar o pão dos animais, eles vão morder. Do jeio que eles fazem as coisas na Inglaerra, é um milagre que ainda sobrevivam!

“Quando cheguei aqui, rabalhei na empresa Fisher Bodies por rês meses. Em vez de ficar andando por aí, logo de cara peguei um rabalho de rês urnos na produção logo de cara. Mas quando eu fui para a Ford – como odo mundo, eu inha ouvido falar dos salários da Ford. De fao você consegue os salários. Eu recebia cinco dólares por dia nos primeiros dois meses e seis dólares depois disso – enão pedi um aumeno e ganhei �� cenavos a mais por dia durane dois anos e meio – mas nunca cheguei aos falados see dólares por dia. Mas os salários são a única coisa que compensa. Se ele baixasse os salários, os operá-

rios lhe dariam as costas. Você consegue o salário, mas vende sua alma ao Ford –

rabalha feio um escravo o dia odo, e quando fica cansado demais pra fazer qualquer coisa – você vai dormindo no carro para casa. Mas, como se diz, uma vez empregado da Ford, sempre empregado da Ford. Você fica apáico, desfi- brado, como se diz em Lancashire – fica sem coragem de sair. Tem gene que vem do inerior para a Ford, pensando que vai ganhar um dinheirinho – que vai só rabalhar por alguns anos e depois volar e ser independene. E enão eles ficam lá pra sempre – a não ser que sejam despedidos. Você nunca em segu- rança nenhuma no emprego. Finalmene eles nos ransferiram para a fábrica de Rouge – fomos os primeiros lá – fomos os pioneiros lá quando o maquinário mal inha sido insalado. Mas, quando começamos a nos preparar para o modelo �, a produção foi fechada e ficamos sem rabalho. Tenei ser ransferido, mas eles me demiiram. Enão ouvi dizer que esavam querendo moldadores – eu nunca inha rabalhado como moldador, mas disse que esava na firma fazia cinco anos e consegui o rabalho. Fiquei naquele deparameno rês anos aé ser despedido em julho. Pedi pra ser ransferido e me mandaram embora. Agora eles e demiem com ou sem moivo.

“É pior que o exércio, vou e conar – você é aormenado e perseguido o empo odo. No exércio você fica espero depois de um empo, mas na Ford você nunca sabe onde esá pisando. Um dia você pode andar pelo corredor, no dia seguine eles e mandam cair fora dali. Num deparameno, e pergunam por que diabos você esá sem luvas e em ouro por que diabos você esá de luvas. Se você esá vesindo um macacão limpo, eles jogam óleo n ele; se um ferrameneiro em orgulho de suas ferramenas, eles as jogam no chão quando ele esá ausene. Os chefes são pegajosos como melado e esão sempre no eu pé, porque o homem

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acima deles está no pé deles e Sorenson,� no pé de todo mundo –

ele é o homem que despeja o óleo fervene que o velho Henry produz. Eis ali um homem nascido com ��� anos de araso, um perfeio feior de escravos – os homens remem quando veem Sorenson se aproximar. Ele cosumava ser muio bruo – che- gava a esmurrar os homens. Um dia, quando se esava fazendo a mudança da fábrica e ele chegou e enconrou um homem senado num caixoe. ‘De pé!’, disse Sorenson. ‘Você não sabe que não pode senar aí?’ O homem não se mexeu e Sorenson irou o caixoe debaixo dele com um ponapé – aí o homem se levanou e acerou Sorenson no queixo. ‘Vai pro inferno!’, disse ele. ‘Não rabalho aqui – rabalho para a companhia Edison!’�

“A gene em só �� minuos para o almoço. O carrinho do almoço passa por ali – a gene o chama de carrinho da purefa- ção. Você paga �� cenavos por um grande mone de serragem. E deixam você comprar uma água maravilhosa que não vê leie há um mês. Sorenson em paricipação em uma das empresas de refeição, me conaram. A comida da gene esá na gargana ainda quando a gene começa a rabalhar – não dá empo de chegar ao esômago.

“Um homem deixa o cérebro e a liberdade na pora quando vai rabalhar na Ford. Alguns daqueles carcamanos com os pés úmidos e sapaos furados se senem felizes de esar sob um eo seco – mas isso não é pra mim! Esou enando esquecer aquilo – agora aé fico enjoado oda vez que enro num carro que vai para o oese!”

Esse inglês, cujo nome é Ber, mora com um homem cha- mado Hendrickson, americano que rabalha para a compa- nhia Edison. Hendrickson ganha �� dólares por semana para descobrir o que há de errado com dínamos e ouros apare- lhos que não funcionam, mas seu ineresse em elericidade não se resume a colocá-los para funcionar novamene. Ele monou um pequeno laboraório e esúdio na casa em que Ber e ele são pensionisas – pouco mais que um esreio quarinho coníguo à sala de esar, mas com espaço sufi- ciene para um quadro-negro, no qual Hendrickson rabisca com giz seus problemas; para uma considerável biblioeca écnica, incluindoInroducion o Mahemaics [Inrodução à maemáica] de Whiehead, e uma obra de pura lieraura, osEnsaios de Monaigne. Ainda há lugar para as planas dos ransformadores de Deroi: esruuras inrincadas de longas

�. Sorenson: na verdade, Charles Emil Sorensen (����-����), imigrane dinamarquês que foi o principal direor da Ford durane suas primeiras quaro décadas e era ido c omo braço-direio de Henry Ford. [�.do �.�

�.Esa hisória é uma lenda de Deroi. Escuei-a repeidas vezes.

linhas reesadas – aqui e ali enfileirando séries de blocos ou cachos de sinais de inclusão runcados – de uma absração quase maemáica e com a beleza de diagramas maemáicos; para um pequeno lavabo converido em câmara escura, na qual ele é capaz de fazer essas planas por um erço do que eria de pagar a um foógrafo; para uma pilha de manuscrios que raam de problemas variados, cuidadosamene arqui- vados em pasas azuis, e para foos de Tesla e Seinmez.�

Hendrickson é grande admirador de Seinmez. Tem duas foos dele e acha uma delas paricularmene boa. Explica que é difícil conseguir um rerao de Seinmez pelo fao de ele ser corcunda – ele não conseguiria enrar nese país se chegasse aqui hoje, acrescena. Na verdade, Hendrickson nunca chegou a ver Seinmez, mas é capaz de falar sobre o modo como ele lecionava quase como se o ivesse ouvido pessoalmene. Seinmez cosumava discor- rer sem usar anoações e, se não fosse inerrompido, falava sem parar. Ele esava sempre ão ineressado naquilo que dizia – e ornava udo ão claro para seus ouvines – que os arrasava consigo: odos aceiavam ouvi-lo pelo empo que ele quisesse. Ber diz que Hendrickson em o mesmo dom.

No cômodo seguine, com seu papel de parede cinza mosqueado, seu pequeno órgão de igreja e seu rerao da rainha Viória, a dona da pensão, um ano desalinhada, cochila em meio às páginas do jornal de domingo, enquano seu filhoe de vira-laa preo e marrom brinca no apee com um rolo de papel higiênico e um osso.

Geralmene, Ber leva em ala consideração as habilida- des de Hendrickson e sene que ele esá sendo explorado por seus superiores. Alega que osexpers da Edison ganham o crédio por exos cieníficos para os quais Hendrickson for- nece o maerial. Em oda organização, diz Ber, um homem carrega o piano e ouro se sena para ocá-lo. Mas isso não parece preocupar Hendrickson – ele não em nenhuma desavença com a companhia Edison. Pelo conrário, sene orgulho pessoal por Deroi poder se gabar de er �� mil vols a mais de cabos suberrâneos do que qualquer oura cidade do país. Seu roso esá permanenemene marcado por púsulas e cicarizes causadas por um derramameno de ácido alguns anos arás, mas o acidene não parece er ido efeio psicológico algum sobre ele. Esá incessanemene preocupado com problemas de elericidade e quando em

�. O sérvio Nikolas Tesla (����-����), engenheiro elérico e físico, foi invenor da bobina de Tesla e dos circuios rifásicos. O alemão Charles Proeus Seinmez (����-����), maemáico e engenheiro elérico, foi um dos principais responsáveis pelo desenvolvimeno da correne alernada. Ambos emigraram para os ��� e conribuíram decisivamene para o avanço da indúsria elérica nore-americana. [�. do �.�

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algum empo disponível, não impora onde eseja, ele se sena e imediaa- mene cai num sono profundo.

É evidene que o briânico Ber é um homem desajusado, pouco à von- ade na América, infeliz a meio caminho enre a classe média e a classe ra- balhadora; mas Hendrickson parece habiar um mundo que é homogêneo,

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