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3 OS DIREITOS E MOVIMENTOS DOS POVOS INDÍGENAS E A REALIDADE DO SÉCULO

3.5 MOVIMENTO INDÍGENA NO BRASIL

No Brasil o movimento indígena por meio das suas mobilizações e manifestações está ligado diretamente com os movimentos étnicos que surgiram na América Latina a partir da década de 70. Embora se reconheça as dificuldades encontradas para a construção e solidificação desse movimento no Brasil, como a distância entre as regiões, a localização de populações indígenas em diversos locais, a diversidade étnica responsável por um mosaico cultural e linguístico que coloca barreiras à comunicação entre os povos indígenas, tais fatores obstaculizaram a formação de um movimento indígena unificado.

No entanto, apesar das agruras, inúmeros avanços e conquistas foram realizados. Abordar a trajetória do movimento indígena no Brasil é importante para se conhecer a história dos povos indígenas do país, que terá início com o enfoque das assembleias indígenas nos anos 70, e

nos anos 80 com a relevância da promulgação da Constituição Brasileira de 1988.

Nos anos 70 o marco histórico do movimento indígena no Brasil foi a realização das assembleias indígenas que tinham como objetivo descobrir e trocar informações sobre os contextos interétnicos vivenciados por diferentes povos indígenas. Nesse período a base do movimento indígena se caracterizou pela solidariedade que surgiu desses encontros e que contribuiu fortemente na construção do espírito de corporação, fundamento da mobilização indígena da época.

A primeira assembleia dos povos indígenas no Brasil ocorreu em abril de 1974 e teve a participação de 17 (dezessete) representantes indígenas. Esses encontros propiciaram a discussão sobre a situação de dominação e discriminação que estavam sujeitas as etnias e a busca de novas formas de organização política e de mobilização para o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. Ressalta-se que nessa época o Brasil estava em plena ditadura e as assembleias indígenas sofreram forte oposição dos órgãos governamentais, inclusive da FUNAI e de segmentos da sociedade que viam esses encontros como afronta e diante da possibilidade de serem outorgados direitos aos povos indígenas em detrimento de interesses de uma parcela privilegiada da sociedade brasileira, em específico, quanto à questão das terras indígenas. Embora houvesse a repressão ao nascedouro do movimento indígena:

Paradoxalmente, a repressão dos militares, cristalizada no ‘Projeto de Emancipação’, de 1978, que pretendia anular os dispositivos legais especiais que normatizavam as questões indígenas, levou a uma aliança entre índios e setores da sociedade civil, dando origem às condições políticas para a criação de uma entidade representativa dos povos indígenas de todo o país (NEVES, 2003, p. 116).

Em abril de 1980, um grupo de estudantes indígenas, residentes em Brasília, criou a União das Nações Indígenas (UNIND).125

125 A Unind era “formada por jovens com pequena representatividade em seus próprios povos e que mantinham fortes relações com a Funai, e sobretudo por não resultar das discussões que vinham ocorrendo nas assembleias de lideranças indígenas, a Unind atropelou o processo de organização política que vinha sendo construído em todas as regiões do território brasileiro” (NEVES, 2003, p. 116).

Essa entidade não foi reconhecida como legítima para representar o movimento político dos índios no Brasil, o que levou as lideranças indígenas a criar, em junho de 1980, na cidade Campo Grande, Mato Grosso do Sul, a organização denominada União das Nações Indígenas (UNI).

A UNI, que era a porta-voz do movimento indígena da época, foi responsável por muito tempo pela organização e coordenação do movimento indígena no Brasil, tendo como bandeira principal a defesa dos direitos das diferentes etnias. Nesse período também ocorreu o esvaziamento político da FUNAI, e o movimento indígena se expandiu pelo país por meio de organizações indígenas que assumiram o papel de agentes políticos e representantes dos grupos indígenas.

Nos anos 80, o Brasil vivenciava a ebulição dos movimentos sociais na luta pelo fim da ditadura e como principal objetivo a redemocratização do país. Nesse contexto de reivindicações por um novo panorama político e social também se apresentava o movimento indígena, que se fortaleceu em razão do momento pela busca da democracia que se vivia no Brasil.

Como destaca Neves (2003, p. 117-118), o movimento indígena no Brasil da década de 80 significava uma etapa de afirmação de alianças com segmentos da sociedade civil e setores populares que procuravam se reorganizar, o que resultou em ações conjuntas e cooperação com igrejas progressistas, organizações não governamentais, entidades ligadas à causa indígena, seringueiros da Amazônia, reunião que originou a Aliança dos Povos da Floresta, marco inovador do ambientalismo no Brasil.

Outro evento importante para o movimento indígena no Brasil foi a realização da II Assembleia dos Povos Indígenas do Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, em abril de 1987. Nesse encontro as autoridades governamentais e representantes indígenas discutiram e negociaram sobre umas das questões mais relevantes que era as terras indígenas. Participaram nesse evento 500 (quinhentas) lideranças indígenas da região, especialistas sobre o tema, antropólogos, sociólogos, advogados, representantes de partidos políticos, dos movimentos sociais, do governo federal e estadual, entre outros. No evento ficou consignada a exigência da imediata demarcação das terras indígenas, reconhecimento exclusivo de seus direitos sobre os recursos do solo e do subsolo e o pagamento das indenizações pelas prospecções do solo e do subsolo e pagamento de indenizações pelas prospecções e explorações ilegais realizadas por empresas mineradoras (NEVES, 2003, p. 118).

Todas essas reivindicações foram contempladas na Constituição de 1988, pois antes desta Carta Constitucional os índios eram considerados como relativamente incapazes e estavam sob o manto da tutela do Estado.

Denota-se que durante os anos 80 foram criadas inúmeras organizações em prol do movimento indígena, em decorrência da maturidade do movimento indígena e da compreensão dos contextos locais e nacional quanto do contexto político e internacional, que implica realizar ações localizadas formando ligações e articulações em rede em diferentes pontos internos e externos, visando objetivos comuns.126

Nos anos 90 ocorrem significativas mudanças nas relações interétnicas. A política vigente direciona-se para a redução da máquina do Estado, prevalecendo a terceirização de serviços. Nesse contexto a ação indigenista do Estado divide-se em políticas setoriais indígenas, com a transferência de responsabilidades aos diferentes órgãos do governo, nas esferas federal, estadual e municipal. Com essas mudanças o Estado não possui mais o monopólio da interlocução com os índios. A via dos direitos surge com uma gama de possibilidades de negociação, de contestação e criação de sentidos na relação de índios e Estado.

Como ressalta Neves (2003, p. 123), as organizações indígenas devem ser “estratégias políticas de viabilização de demandas nativas orientadas por concepções e valores étnicos que, mesmo nas situações de contato, fundamentam a vida e a luta dos povos indígenas nos novos cenários das relações interétnicas em que foram inseridos com a instalação de processos de colonização europeia em seus territórios”. Todas as ações, programas, projetos e outras atividades de iniciativa de organizações indígenas devem ser direcionadas por valores étnicos.

Percebe-se que seja por iniciativa de grupos locais, seja a partir de iniciativas de ações ordenadas de um movimento indígena, o quadro interétnico no Brasil é marcado por iniciativas distintas entre si. Uma

126 O surgimento das inúmeras organizações não pode ser interpretada como fragmentação do movimento indígena - que traria a ideia de diluição da ação política-, “mas deve ser interpretada como multiplicação “uma ‘atomização’, diretamente relacionada ao processo histórico de dispersão a que estão submetidos os povos indígenas pela colonização de seus territórios tradicionais, ou um ‘fracionamento’ no qual as organizações de base, funcionando como ‘frações’, como ‘átomos’ constitutivos de uma mobilização maior, mantêm ligações entre si de modo a criar estratégias e realizar ações locais dentro da perspectiva global do movimento indígena” (NEVES, 2003, p. 121).

gama de ações, programas, projetos e outras iniciativas são realizadas por organizações indígenas no país, em especial no Amazonas.127

Registra-se que, nos governos de Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, houve uma parada nos processos de demarcação das terras indígenas, o que provocou sérios conflitos de terra em áreas ocupadas pelos povos indígenas. Uma das ações do Governo que demonstrou o descaso com a questão indígena e autoritarismo foi em janeiro de 1996, quando por medida legal o Estado brasileiro efetivou a juridificação do processo de demarcação das terras indígenas, diminuindo a participação do indígena no processo.

Esse processo de juridificação da demarcação resultou no enfraquecimento de regulação social e de mobilização conquistada pelo movimento indígena na década de 80. Outra ação repressiva do Estado brasileiro foi em abril de 2000, quando forças policiais agiram com violência em face dos representantes indígenas que estavam presentes e se manifestavam contra as celebrações governamentais dos 500 anos de descobrimento do Brasil.

Ainda como evento importante ocorrido nos anos 90 e de iniciativa popular foi o Movimento Brasil: 500 Anos de Resistência Indígena, Negra e Popular – Brasil Outros 500, organizado por entidades e segmentos excluídos da sociedade brasileira contrários às comemorações do governo dos 500 anos de descobrimento do Brasil.

Outro evento relevante foi o II Encontro pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, em dezembro de 1999, em Belém do Pará. Neste encontro estavam presentes representantes de 24 países das Américas e da Europa, representantes de 31 nações indígenas e representantes de organizações políticas e sociais do Brasil. Neves (2003, p. 128) descreve que o encontro se inspirou no movimento

127 As iniciativas se direcionam a vários campos que vão desde a comunicação, programas de rádio, informática, sistemas de radiofonia, formação de entidades de natureza profissional e cursos de formação profissional, cursos de capacitação pedagógica e linguística para professores indígenas das escolas indígenas, desenvolvimento de técnicas e implementação de projetos de psicultura, controle e proteção ambiental das terras indígenas e apropriação de seus recursos naturais de maneira sustentável, representação indígena em conselhos dos estados e munícipios. Criação de fóruns de discussão e encaminhamento político, tais como a Comissão dos Professores Indígenas da Amazônia (Copiam), a União Ticuna (Ticunião), que se destina a criação de entidade dos índios ticuna, o Fórum de Debate dos Direitos Indígenas (FDDI), propõe alternativas para a política local, uma base para os índios da região da Amazônia (NEVES, 2003, p. 125-126).

zapatista que sobrevive em razão da divulgação das suas reivindicações por meio de redes internacionais de apoio. Os representantes do movimento indígena tiveram a oportunidade de se encontrar com os representantes do internacionalismo solidário, que buscaram meios para resistirem às comemorações festivas do governo brasileiro de cunho irreal dos 500 anos de Descobrimento do Brasil.128

Em suma, os anos 90 foram marcados pela consolidação de projetos e programas étnicos diretamente ligados às demandas urgentes dos indígenas e de iniciativas locais e nacionais de ocupação dos espaços institucionais (NEVES, 2003, p. 127).

Após o estudo sobre os direitos dos povos indígenas e seus movimentos em nível interno e externo, no quarto e último capítulo realiza-se análise específica das demandas trabalhistas das comunidades indígenas em Chapecó.

A abordagem parte do global para se situar no local, a partir das vivências e experiências do cotidiano dos trabalhadores indígenas que ingressam com reclamatórias trabalhistas no Foro Trabalhista de Chapecó, identificando a natureza dessas demandas e suas principais reivindicações.

128 “A participação dos índios no ‘Movimento Brasil Outros 500’ ficou marcada por dois momentos- ‘Marcha Indígena 2000’ e a ‘Conferência dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil’-, que são marcos na história do movimento indígena no Brasil. Partindo dos quatro cantos do país, a ‘Marcha Indígena’ mobilizou cerca de 3.600 índios em caravanas. Traçando o caminho inverso da ocupação europeia, em um movimento simbólico de retomada do Brasil, a ‘Marcha’ deu ao país um exemplo gritante de exercício da cidadania na defesa dos direitos fundamentais das populações indígenas, realizando manifestações nas diversas cidades por onde passou. Concebida como fórum para reflexão sobre o passado e definição de estratégias comuns e alianças para o futuro, a ‘Conferência’ reuniu, de 18 a 21 de abril de 2000, na aldeia pataxó de Coroa Vermelha, município de Santa Cruz da Cabrália, cerca de 6 mil índios, representando 140 povos de todo o país” (NEVES, 2003, p. 128).