• Nenhum resultado encontrado

2 OS DIREITOS INDÍGENAS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA Neste capítulo, a ênfase dada é sobre os direitos dos povos

2.2 O INDÍGENA NA FORMAÇÃO DO BRASIL

2.2.2 O Serviço de Proteção ao Índio (SPI)

Nos primeiros vinte anos do Brasil republicano, nada havia no sentido de regulamentar a relação com os índios, época em que se desbravava o interior do país e se construíam ferrovias, o que ocasionou grandes frentes de lutas contra os indígenas.

No ano de 1910, grandes faixas de terras brasileiras que envolviam as cidades de São Paulo, Vitória, Ilhéus e Blumenau, se encontravam inviabilizadas economicamente em razão de lutas entre colonizadores e indígenas, o que levou, muitas vezes, ao extermínio de tribos inteiras. Mas tal extermínio era praticado e defendido como solução indispensável à segurança daqueles que construíam uma civilização no interior do país (RIBEIRO, 1996, p. 148).

A população que vivia nas cidades, formada principalmente por intelectuais, escritores e jornalistas da época, iniciou um movimento contra ao extermínio dos índios, e isso levou à criação de um órgão oficial do governo brasileiro, denominado Serviço de Proteção aos Índios (SPI).60Outro fato relevante que impulsionou a criação do SPI foi

o artigo publicado pelo respeitável cientista Hermann von Ihering o qual defendia ardorosamente o extermínio dos índios hostis, considerados como entrave à colonização dos sertões do Brasil. Esta manifestação pública ocasionou mais revolta no reduto intelectual da sociedade brasileira da época.

Os debates sobre o problema indígena vertiam em duas correntes opostas. A primeira era de cunho religioso. Com base na experiência secular dos missionários, estabelecia como diretriz a catequese como solução para a questão dos índios e da formação do povo brasileiro. A

60 Esse movimento em defesa do índio “empolga as classes cultas do país; e o índio, até então esquecido, torna-se o assunto do dia – na imprensa, nas revistas especializadas, nas instituições humanitárias, nas reuniões científicas. No Congresso de Geografia realizado em 1909, já é a questão mais vivamente debatida e objeto de quatro alentadas teses (Primeiro Congresso Brasileiro de Geografia, 1911). Para essa toada de consciência do problema, contribuíram ponderavelmente as conferências do gen. Rondon, que, de volta de suas expedições, revelava à gente das cidades uma imagem nova do índio verdadeiro que aguardava a intervenção salvadora do Governo“ (RIBEIRO, 1996, p. 148-149).

segunda era leiga e defendia que a proteção dos índios competia exclusivamente ao Estado.

No entanto, embora houvesse forte pressão das duas correntes citadas, a formação da política indigenista no Brasil, nesse período, atribui-se especialmente aos positivistas com forte influência “no evolucionismo humanista de Augusto Comte, propugnavam pela autonomia das nações indígenas na certeza de que evoluiriam espontaneamente, uma vez que libertadas de pressões externas e amparadas pelo Governo” (RIBEIRO, 1996, p. 154).

A proposta era a proteção dos índios, de cunho meramente social, para o amparo das necessidades e proteção contra a opressão. Nesse período a figura destaque é a do Marechal Cândido Rondon que utilizou na prática as ideias de Comte e do Exército no desbravamento dos sertões interiores na busca da proteção do índio.

A partir desse contexto histórico e político criou-se oficialmente o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, em 20 de julho de 1910, por meio do Decreto n. 8072. A organização constituiu-se, primeiramente, em núcleos de atração de índios hostis, depois para as povoações destinadas aos indígenas com hábitos mais sedentários e finalmente os centros agrícolas, local em que os esses iriam trabalhar conforme o modelo rural brasileiro e recebiam uma gleba de terras para se instalarem ao lado de sertanejos. Em 1914, modificam-se alguns aspectos dessa legislação e o SPI passou a tratar exclusivamente da questão indígena e a localização dos trabalhadores nacionais passa a ser atribuição de outro órgão brasileiro.

Conforme ressalta Ribeiro (1996, p. 155-164), essa política indigenista fixou alguns princípios, dos quais se ressaltam os seguintes: o princípio do respeito às tribos indígenas como povos, que tinham o direito as suas crenças e a viver conforme tinham aprendido de seus antepassados. Nesse contexto, o Estado afasta-se, pelo menos na legislação, do dogmatismo religioso e do etnocentrismo, que até então não admitia outra fé e outra moral senão a própria religião católica; outro princípio introduzido era o da proteção ao índio em seu próprio território, contrário à política então vigente “punha-se cobro à velha prática dos descimentos, que desde os tempos coloniais vinham deslocando tribos de seu habitat para a vida famélica dos vilarejos civilizados” (RIBEIRO, 1996, p. 158-159). Observa-se o princípio da proibição do desmembramento da família indígena, isto é, a separação entre pais e filhos, sob o pretexto de educação e catequese, que privava o índio da convivência com os seus e com suas tradições.

Além disso, evidencia-se na política indigenista como ponto elementar, a pacificação do índio. As teses evolucionistas tinham como direção a integração dos índios de forma lenta e pacífica, mas sempre com a finalidade desenvolvimentista, como bem descreve Beckhausen (2010, p. 528):

[...] mas sempre visando um horizonte ‘desenvolvimentista’, ou seja, que o índio pudesse ‘progredir’ do seu ‘estágio social’ para o estágio da ‘avançada civilização branca’. Na verdade, existe uma sobreposição entre as políticas da intolerância e da tolerância: existe uma política de exclusão disfarçada que oferece ao índio a ‘oportunidade de evoluir’, sem a qual o mesmo não poderá alcançar a cidadania.

O objetivo também era incorporá-los à categoria de trabalhadores nacionais. O indígena era tido como incapaz, e a capacidade para os atos da vida civil só seria alcançada quando adquirissem outros costumes e se inserissem ao modo de viver da comunidade nacional. Era o que prescrevia o Código Civil brasileiro de 1916, no artigo 6º, no que se referia ao relativamente incapaz.

Estas ideias se tornaram planos para a ação e se materializaram institucionalmente. O tratamento ao indígena estava sempre associado à produção e ao trabalho na agricultura, o que se evidencia nessa direção com a criação do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), em 1906, com uma política voltada à civilização dos índios e ao desenvolvimento do meio rural. Dessa forma, a ideia de produtividade rural, desenvolvimentismo e evolução vão se formando e resulta em um aspecto diferenciado, mais técnico do que a política anterior a de 1889.

Outra legislação criada posteriormente foi o Decreto n. 5.484 de 27 de junho de 1928, que tinha como objetivo regular a situação dos índios no território brasileiro. No artigo 1º estabelecia a emancipação dos índios da tutela orfanológica a que eram submetidos. O artigo 2º previa a classificação dos índios da seguinte forma: 1º índios nômades; 2º índios arranchados ou aldeiados; 3º índios pertencentes a povoações indígenas; 4º índios pertencentes a centros agrícolas ou que vivem promiscuamente com civilizados.

Dessa forma, os índios foram classificados e hierarquizados com o intuito de enquadrá-los juridicamente, a fim de medir seu nível de integração e sua capacidade para os atos da vida civil. Cada nível de

classificação recebia uma política direcionada, isto é, uns índios deveriam ser integrados e tutelados. Aqueles que já estavam “ambientados” na civilização teriam uma política mais apurada, visando ao seu desenvolvimento com a sociedade nacional (BECKHAUSEN, 2010, p. 530).

O artigo 6º desse Decreto previa que competia ao Estado, por meio do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), exercer a tutela sobre os índios que não estavam completamente adaptados, não importando qual fosse a sua categoria classificatória em que se encontrasse. O Estado passa a ter o monopólio da proteção dos índios. “A tutela foi incorporada à política indigenista oficial como uma forma de controlar os índios, sob um discurso onde estes não seriam capazes de responder a si próprios, gerir suas próprias vidas, ou seja, seriam irresponsáveis e inimputáveis” (BECKHAUSEN, 2010, p. 531).

Em 1967, o SPI foi extinto, mas deixou sedimentada a pacificação de dezenas de tribos, abriu vastos sertões à ocupação e criou 97 postos de amparo ao índio, distribuídos por todas as regiões do Brasil. Mas, também há que se registrar que esse órgão, nos últimos anos de administração dos militares, não mais direcionados pelos princípios filosóficos de Augusto Comte e da atuação de Rondon, levaram o SPI a um ponto raso de atuação, chegando, em certas situações, à condição degradante de agente de sustentação dos usurpadores e assassinos dos índios (RIBEIRO, 1996, p. 168).

Evidencia-se que é fundamental a classificação dos índios como relativamente incapazes nos códigos e demais leis da época, porque só dessa forma o projeto tutelar funcionaria.

2.3 AS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS E OS DIREITOS