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3 OS DIREITOS E MOVIMENTOS DOS POVOS INDÍGENAS E A REALIDADE DO SÉCULO

3.1 O PROCESSO DE RECONHECIMENTO DOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS

3.2.3 O conceito de multiculturalismo segundo Boaventura de Souza Santos

Santos (2003, p. 28-33), com base nos estudos de Stam (1997), conceitua o multiculturalismo sob duas formas, que apontam simultaneamente ou alternativamente para uma descrição e para um projeto.

O multiculturalismo como descrição pressupõe os seguintes aspectos: a) a existência de uma multiplicidade de culturas no mundo; b) a coexistência de culturas diversas no espaço de um mesmo Estado- nação; c) a existência de culturas que se influenciam tanto dentro como além do Estado-nação.

Quanto a essas características ressalta-se que “é o grau em que o multiculturalismo como descrição das diferenças culturais e dos modos da sua inter-relação se sobrepõe ao multiculturalismo como projeto

107 Peter Mc Laren, estudioso do multiculturalismo, propõe no campo da educação a teoria do multiculturalismo revolucionário, nos seguintes termos: “Há várias coisas, mas em primeiro lugar eles deveriam relacionar os processos de grupo que ocorrem dentro da sua sala de aula com o processo capitalista. Precisam desenvolver uma práxis dialética que permita fazer uma relação entre a vida cotidiana e esses processos de globalização. Também devem ser capazes de auxiliar os alunos a ver essa dialética e tornar-se pesquisadores desse cotidiano. Assim, eles podem desenvolver um senso de responsabilidade pelos seus desejos, sonhos e ações. Mas a menos que eles entendam como os sonhos e desejos são produzidos - por meio da percepção, racionalidade, emoção - é muito difícil tomar a ação política. Precisam usar as experiências de vida de seus alunos e da comunidade como base do currículo. E o maior desafio não se dá entre os estudantes, mas entre os pais. Ouvi muitos dizerem que não queriam saber desse papo de revolução. Querem que eu simplesmente ajude seus filhos a progredir, conquistar. É claro que temos de ajudá-los a ser bem-sucedidos, enquanto por outro lado os capacitamos a estar dispostos a mudar. Eu seria extremamente hipócrita se dissesse que não quero meus alunos bem- sucedidos. Mas a consciência é imprescindível para a prática revolucionária, embora ela (a consciência) não garanta nenhum resultado de mudança. E tampouco de sucesso” (MCLAREN, 2004, p. 3).

político de celebração ou reconhecimento dessas diferenças que tem suscitado críticas e controvérsias” que se originam dos diferentes setores, seja conservador ou de esquerda, ou ainda de setores progressistas (SANTOS, 2003, p. 28).108

As críticas a essa concepção de multiculturalismo são de diferentes e variadas formas. Citam-se algumas delas: que o multiculturalismo seria antieuropeu, já que estaria trocando os valores e conquistas da civilização ocidental por algo sem critérios e de realização “inferior”; que o multiculturalismo visaria à divisão, fragmentando a sociedade e com isso ameaçaria a união e objetivos da nação; seria considerado como uma “terapia para minorias”, servindo para elevar a autoestima das minorias em razão incapacidade de desempenho considerável na educação e na sociedade e também considerado o multiculturalismo como um “novo puritanismo”, que teria como âncoras o policiamento da linguagem e na imposição de uma linguagem “politicamente correta” (SANTOS, 2003, p. 29).

As respostas dos setores progressistas às críticas ao multiculturalismo se baseiam na caracterização do multiculturalismo como antieurocêntrico e não antieuropeu dos projetos culturais, visando o reconhecimento e a visibilidade das culturas marginalizadas ou excluídas da modernidade ocidental, no reconhecimento das diferenças culturais, das experiências históricas, do diálogo intercultural com o objetivo de construir alianças políticas para a promoção da cultura.

Em que pesem as críticas e controvérsias sobre o termo multiculturalismo, de maneira geral, o multiculturalismo é considerado como “modo de designar as diferenças culturais em um contexto transnacional e global”, o que não significa dizer que as tensões, as

108 “As críticas conservadoras têm encontrado expressão e eco sobretudo nos Estados Unidos da América, como resposta às transformações na composição étnica da população americana; à presença crescente de imigrantes, sobretudo deum forte contingente de imigrantes ilegais com origem na América Latina; aos programas sociais de discriminação positiva dirigidos a grupos excluídos ou marginalizados, como os afro-americanos ou os hispânicos; ao desenvolvimento, no meio acadêmico, de programas de estudos culturais e de estudos sobre as mulheres, e às transformações no curriculum de áreas tradicionais como a literatura, destinadas a conferir visibilidade e voz às mulheres e às minorias, e, finalmente, ao surgimento, no espaço público, de movimentos defendendo políticas de identidade baseadas no reconhecimento da sua diferença” (SANTOS, 2003, p. 29).

contradições e críticas tenham sido superadas em seu todo (SANTOS, 2003, p. 33).109

O multiculturalismo como projeto pode assumir uma linha e um conteúdo emancipatórios, com sustentáculo no reconhecimento da diferença e da coexistência ou construção de uma vida em comum além de diferenças de vários tipos. A concepção de multiculturalismo vincula- se a espaços sobrepostos e histórias entrelaçadas, produtos das dinâmicas imperialistas, coloniais e pós-coloniais que puseram em contato metrópoles e territórios dominados e que criaram as condições de separação e outras formas de mobilidade (SANTOS, 2003, p. 33-34).

Para essa concepção de cultura, Santos descreve o multiculturalismo emancipatório pós-colonial como “A política da diferença é o que tem de novo em relação às lutas da modernidade ocidental do século XX, nas lutas progressistas, operárias e outras que assentaram muito no princípio da igualdade”. O multiculturalismo é considerado um conceito que suprime a problemática das relações de poder, da exploração, das desigualdades e exclusões.

O reconhecimento e a tolerância que o multiculturalismo oficial promete deixa intacta a estrutura social e institucional que constrói as diferenças. O multiculturalismo oficial não apenas

109 Na América Latina o multiculturalismo também enfrenta críticas, como narra Sansone (2016, p. 24) “essa ideia entra em crise, sujeita a críticas de todos os lados, sobretudo da direita conservadora, nos países que começaram comesse experimento. Na Holanda e na Inglaterra se insiste, novamente, na necessidade das minorias (étnicas) se ‘integrarem’ aos comportamentos da maioria – adotando testes para medir o grau de ‘integração sociocultural’ ́de imigrantes para que a eles sejam concedidos o visto permanente. Uma das vítimas da ‘guerra ao terror’ tem sido o próprio multiculturalismo, uma tentativa de pensar um convívio mais harmônico transformando a dupla negativa diferença/distância na dupla positiva diversidade/tolerância. Tanto em parte da Europa como nos Estados Unidos hoje há uma ênfase governamental muito forte, com respaldo de boa parte da opinião pública, contra o apoio público a instituições étnicas “outras”, sobretudo quando de origem islâmica. Assim pode se ter um país como a Inglaterra, onde a linguagem do Estado tem incorporado a linguagem ou jargão da diversidade, quer dizer, é importante mostrar uma Inglaterra multirracial em suas manifestações públicas mas onde, de fato, o grau de tolerância para experimentos multiculturais ou transculturais na educação está reduzido ao mínimo (1). O contexto mundial do multiculturalismo é, por isso, bastante complexo: existem países que começaram há pouco tempo e outros com experiência antiga, há novo interesse de uma parte e crise de outra”.

deixa de questionar os padrões de conhecimento eurocêntricos como, na maioria das vezes, fortalece a classificação de pessoas e saberes a partir de um ‘ponto zero’ do conhecimento. Isto é renova e encobre a prática de subalternização epistêmica. (SANTOS, 2003, p. 96).

Atualmente a cultura tornou-se um conceito central para a definição de identidades e alteridades, para afirmar e exigir o reconhecimento da diferença, em espaços de lutas e contradições. O conceito de multiculturalismo também perpassa por um viés controverso e de tensões. O multiculturalismo “descreve uma série de processos e estratégias políticas sempre inacabadas, por isso as diversas espécies de multiculturalismos, já que o conceito é polissêmico e sujeito a diversos campos de força política” (COLAÇO; DAMÁZIO, 2012, p. 94).

Vive-se em uma sociedade globalizada, de comunicação em rede, de diferentes culturas que lutam por reconhecimento. Nesta sociedade também há as diferenças que reclamam por um tratamento específico. A multiculturalidade está presente e ganha espaço, pois as vastas culturas lutam pelo reconhecimento da legitimidade de sua vivência histórica. Portanto, é necessário a defesa da possibilidade do homem identificar em si e, no outro com o qual convive as características básicas da existência comum e das diferenças que identificam cada um de forma particular:

Defender o reconhecimento à diferença entre cada povo e cada cultura, nestes termos, é defender o encontro do homem com ele mesmo, a busca do indivíduo por seu lugar no mundo. Proteger a manifestação de cada cultura em particular é possibilitar o surgimento de condições objetivas para o fortalecimento tanto das individualidades quanto da consciência e das políticas de grupo, fomentando, inclusive, a superação de obstáculos e o afloramento de potencialidades, tanto individuais quanto coletivas (LUCAS, 2010, p. 273).

A efetivação dos direitos indígenas se apropria da demanda da identidade, quando colocados em confronto com a realidade cultural. Para tanto, é necessário encontrar um denominador comum, que seja compartilhado pelos diferentes grupos culturais existentes na realidade contemporânea, a partir do instante em que se observa o fator do multiculturalismo.

A respeito do multiculturalismo, Amaral Junior e Silva (2011, p. 1) esclarecem que:

É um empreendimento de legitimação adequado, pois se amolda bem à diversidade e ao princípio da igualdade material, uma vez que permite o reconhecimento postulado pelos grupos culturais integrantes das sociedades pluralistas contemporâneas, através da consideração de seus interesses e visões de mundo, na medida em que eles possam participar de discursos na esfera pública, mediante a livre e igualitária exposição de argumentos racionais.

O multiculturalismo reivindica o respeito às características culturais na esfera pública e demanda o reconhecimento dos direitos coletivos. Nesta direção, Costa e Werle (1997, p. 160) aduzem que “o desafio colocado pelo multiculturalismo é como discernir, diante dos evidentes padrões étnico-normativos conflitantes de diferentes grupos socioculturais, critérios de justiça que tenham um mínimo de universalidade”.

Este caráter universal que reflete o multiculturalismo está centrado na perspectiva que pode auxiliar na adequação da diversidade de culturas existentes por meio da afirmação e da valorização das diferenças.

Nesta lógica, com propriedade afirma Alexy (2011, p. 24): los derechos fundamentales son derechos que han sido consagrados en una Constitucion com la intencion de transformar a los derechos humanos en derecho positivo — La intencion, en otras palabras, de positivizar los derechos humanos. [...] A hora bien, los derechos humanos son, en primer lugar, morales, en segundo lugar, universales, en tercer lugar, fundamentales, en cuarto lugar, abstractos y, en quinto lugar, son derechos que gozan de prioridad por sobre los demas tipos de derechos.110

110 Tradução livre: direitos fundamentais são direitos que estão consagrados na Constituição com a intenção de transformar os direitos humanos em direito positivo - A intenção, em outras palavras, é positiviar os direitos humanos. [...] No entanto, os direitos humanos são, em primeiro lugar, moral, em

Outra temática vinculada aos direitos indígenas e que permeia o debate nas mais diversas instâncias internas e no campo das relações é a tensão entre igualdade e diferença.

Afirma-se que toda a matriz da modernidade deu destaque à igualdade (igualdade de todos os seres humanos, independentemente das origens, da nacionalidade, das orientações sexuais, da religião, e outros), sendo o ponto central para entender toda a luta da modernidade pelos direitos humanos.

Hoje o interesse se deslocou,111 está mais em destaque o tema

diferença. Pierucci (1999) afirma que a partir dos anos setenta questiona-se intensamente se os seres humanos são diferentes de fato e de direito, o denominado “direito à diferença”, o direito à diferença cultural, o direito de ser, sendo diferente.

Essa temática da diferença transforma-se em um direito, não só o direito dos diferentes a serem iguais, mas o direito de afirmar a diferença. Não são polos contrários, mas há mudança de perspectiva e também uma questão de articulá-los.

Santos (2006, p. 445-447) afirma que é necessário uma ressignificação dos direitos humanos fundamentais a partir desta visão. Para ele a construção dos direitos humanos foi elaborada sob a ótica do “localismo globalizado”, matriz hegemônica específica da modernidade, presente no expansionismo europeu (portadores da civilização e das luzes). E para a ressignificação dos direitos humanos, numa perspectiva que não nega as suas raízes, a sua história, é necessário um processo de reconceitualização. Esse processo supõe algumas direções:

a) A superação do debate universalismo e relativismo cultural: afirmar que todas as culturas ou grupos culturais têm valores e ideias, elementos fundamentais que aspiram a comunicar a outros e universalizar, mas o universalismo é incorreto, como cultura que predomine e queira se impor a todos. Relativismo cultural: todas as culturas são relativas, nenhuma é absoluta, nenhuma é completa, mas é necessário propor diálogos interculturais sobre pontos convergentes, ainda que expressas a partir de diversos universos culturais. Negar tanto o universalismo absoluto quanto o relativismo absoluto.

b) Todas as culturas possuem concepções da dignidade humana: nem todos os grupos culturais conhecem ou usam a expressão

segundo lugar, universal, em terceiro é fundamental, em quarto, abstrato e quinto são direitos que têm prioridade sobre os outros tipos de direitos. 111 Deslocar não tem a conotação de negar a igualdade.

direitos humanos, mas não significa afirmar que não tenham uma ideia de dignidade humana, de vida digna.

c) Todas as culturas são incompletas e problemáticas na sua concepção de dignidade humana.

d) Nenhuma cultura é monolítica, todas as culturas comportam versões diferentes da dignidade humana (umas mais amplas, outras mais abertas, outras mais fechadas). Os grupos culturais não são homogêneos e padronizados.

e) Todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os grupos sociais entre dois princípios competitivos de pertença hierárquica: princípio da igualdade e princípio da diferença. Essa premissa está no ponto central da ressignificação dos direitos humanos fundamentais na contemporaneidade.

A questão é como trabalhar a igualdade na diferença. Santos (2006, p. 462) afirma que “temos o direito a ser iguais, sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”.

Destaca-se, especificamente, que o Direito, para se tornar um aporte com visibilidade ao tratar destas temáticas, necessita quebrar com os conceitos modernos que se fecham em torno de si próprios e focam a sua atuação somente na resolução dos problemas. Um destes pontos trata de reconhecer quem é o outro nesta sociedade marcada pela diversidade de culturas e identidades.

A respeito do multiculturalismo no Brasil, há que se considerar que o país possui grande extensão territorial, composto de etnias variadas. Para se compreender a situação das minorias no país, é necessário frisar que a ideologia racial de caráter assimilacionista ainda é muito presente e está pautada pelo chamado ‘mito da democracia’. Conforme essa ideologia – mito da democracia - “as minorias são vistas como estado transitório, verdadeiro degrau temporário para um passo ideal e subsequente que seria o da sua plena assimilação à sociedade brasileira, compondo uma única identidade. Esta deve ser, segundo a ideologia oficial, uma só, unívoca e inequívoca, não se admitindo o cultivo de identidades étnicas e parciais” (LIMA, 1998, p. 17).

O conceito de minoria aqui é no sentido sociológico, segundo o qual a minoria quantitativa é representada por um grupo que está alijado da plena participação nas esferas sociopolíticas e econômicas da sociedade dominadas pelo grupo majoritário. Os indígenas representam uma parcela pequena da população que lutam pela sobrevivência e o direito a terra.

O multiculturalismo, em que o Estado reconhece, protege e que tem como meta transformar todos os direitos como individuais está fadado ao desaparecimento, não há como sobreviver partindo desse pressuposto. Na história da construção de Estado contemporâneo e do direito sempre esteve pautado pelo individualismo jurídico “criou-se a ficção de que cada um deles era pessoa, chamada de jurídica ou moral, individual” (SOUZA FILHO, 2003, p. 73). Essa era a direção também em relação aos diferentes povos, criou-se a ficção que cada povo indígena seria uma individualidade com direitos protegidos, transformando os direitos coletivos dos povos em direitos individuais.

Percebe-se que a concepção sempre foi de um direito individualista, contratual, modelo que não serve, não é adequado aos povos indígenas da América Latina. Os Estados dos países latino- americanos sempre direcionaram o direito na direção de separação do indígena de seu povo, assimilando-o à ‘sociedade nacional’ de uma maneira tão eloquente que ele deixaria de ser povo diferenciado. Dessa forma, “para o sistema a assimilação se daria por meio do trabalho, mas nunca pode entender que a ideia de trabalho gerador de propriedade não tem relação com as culturas indígenas” (SOUZA FILHO, 2003, p. 74).

Devido ao fato dos povos indígenas, por meio de incessantes lutas, buscarem o reconhecimento como ente coletivo, o sistema acabou incluindo tais direitos. Ao admitir os direitos coletivos dos povos indígenas, abre-se um novo caminho que permite se considerarem multiculturais e pluriétnicos e introduzirem-se em outros segmentos sociais.