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A MULTIPLICIDADE DE SIG NIFICADOS

Em 1991, o designer Philippe Starck proj etou um curioso obj eto para integrar um cenário de film e do diretor Wim Wenders. Posteriorm ente, o referido artefato passou a ser com ercializado sob o nom e W. W. Stool, produzido pela Vitra, conhecida em presa suíça de m obiliário. Trata-se de um a peça fundida em alum ínio, com cerca de 97 cm de altura e 53 cm de diâm etro na base. Apesar de ser identificada em nom e com o um a banqueta (stool, em inglês), o site do fabricante é bastante franco ao categorizá-la com o “obj eto escultural” e afirm ar que: “trata-se de um a escultura que pode ser usada com o um a banqueta ou um suporte para o usuário que prefira perm anecer em pé, m ais que um a peça

de m obiliário com propósito puram ente funcional”.{30} Opa, peraí! Com o assim , um a escultura que pode ser usada com o banqueta? Sintom aticam ente, a m elindrosa e am bígua palavra “funcional” aparece para indicar que o assunto não está sendo discutido com o devido rigor.

O artefato em questão é um a banqueta, um a escultura, am bas as coisas ou nenhum a das duas? A pergunta é boa. Sua resposta é a chave para entender a relação entre form a e significado nos obj etos m ateriais. Qual o significado da W. W. Stool? Será apenas um obj eto de decoração e prestígio destinado aos

consum idores de alto poder aquisitivo e fina com preensão da teia de referências culturais em torno dele? Será um a m ercadoria fetiche, no sentido usual que se atribui a esse term o? Um a espécie de escultura abstrata, pós-m oderna, pós- design? Se for esse o caso, com o devem os interpretar o fato incôm odo de que é possível se sentar sobre ele? Apesar de seu pequeno porte e aparente instabilidade, a W. W. Stool serve sim para sentar, com o tam bém para se apoiar, am arrar o sapato ou pendurar um a bolsa. Pode ser tratada com o escultura, então? Som ente um a pessoa totalm ente desprovida de referências culturais e de bons m odos usaria um a escultura para qualquer um a das quatro funções citadas. Quem duvida disso, que vá ao Louvre e experim ente sentar na base da Vitória de Samotrácia!

Ao analisar a banqueta de Starck, o sociólogo Henri-Pierre Jeudy afirm a que: “a função de tal obj eto é a possibilidade de não ser utilizado”.{31} Que ideia fascinante! Um obj eto aparentem ente utilitário, que prevê em seu proj eto o potencial de não ser utilizado. Trata-se de um m odo de proj etar bem diferente do que estam os habituados. Parece que o propósito m ais interessante da W. W. Stool é m esm o de subverter ideias preconcebidas sobre o próprio design. Sua abertura m últipla para um a série de usos e significados obriga-nos a repensar seriam ente a noção desgastada de “função”. Perm eiam a cultura do design ditam es funcionalistas com o: “um a cadeira é para sentar”. E quando não o é? E quando uso a cadeira para em pilhar livros no assento ou pendurar roupas no encosto? Será que estou violando sua função? E quando os garçons do bar, im pacientes com os últim os boêm ios, que continuam firm es e fortes às três horas da m anhã, colocam as cadeiras viradas de cabeça para baixo sobre as m esas? Nesse m om ento, a cadeira não é para sentar: ela é um signo com unicando que está na hora de ir em bora, antes de ser expulso. Seria m ais exato afirm ar que as cadeiras são para sentar, de m odo geral, m as que elas podem servir para m uitos outros propósitos e que, em alguns casos, sentar-se sobre elas é a possibilidade m enos im portante ou interessante.

E se um a cadeira é para sentar, será o inverso verdadeiro? Se alguém senta sobre um a m esa, ela se torna cadeira? A pergunta pode parecer descabida, m as ela encerra questões epistem ológicas im portantes sobre a relação entre artefato, significado e usuário. A correspondência estrita entre um a form a e determ inado uso (por exem plo, cadeira = sentar) acaba por bitolar o pensam ento. Ao pensar a ação de sentar com o experiência e não com o artefato específico, o proj etista se liberta de estruturas preexistentes e ganha a possibilidade de criar soluções realm ente inovadoras. Se a tarefa é proj etar um a cadeira, é im possível escapar da m orfologia: encosto, assento, pernas. Se a tarefa é proj etar um a situação de sentar, o leque se am plia para incluir pufes, banquetas, bancos, sofás, espreguiçadeiras, alm ofadas, futons e até m esas, sem nem entrar nos híbridos possíveis. Trata-se de um a nova dim ensão do pensam ento proj etivo, m aleável,

m uito m ais adequada para o m undo com plexo em que vivem os.

Recapitulem os o caso da W. W. Stool: com aparência m ais de escultura do que de banqueta tradicional, ela serve, entre outras coisas, para se sentar. Serve ainda com o ponto de apoio para pessoas conversando em pé, com o cabide para pendurar um a bolsa ou casaco, com o obj eto de decoração. Serve, antes de tudo, com o signo visual, carregado de inform ações com plexas sobre sua origem , autoria e razão de existência. Noves fora os urros de protesto de quaisquer velhos dinossauros funcionalistas que ainda possam rondar a Terra depois do degelo do m odernism o, ela é um obj eto de design m uito bem concebido e elegante ao extrem o. Ninguém com pra um a W. W. Stool por engano ou falta de

entendim ento; ela não traz prej uízos ao usuário (a não ser de natureza pecuniária, possivelm ente, m as paga quem quer e pode); e dificilm ente um a será encontrada no lixão da sua cidade. Em sum a, ela cum pre um a série de propósitos, e abre-se enigm aticam ente para outros que nem im aginam os ainda. Ela reconhece que o futuro é incerto e trabalha com o princípio da indeterm inação. Ela se faz aquilo que o usuário desej a e, assim , aum enta sua probabilidade de sobrevida.

Em seu ensaio de 1988, “Design: obstáculo para a rem oção de obstáculos?”, Vilém Flusser analisa a problem ática talvez m ais essencial do design nos dias de hoj e. Com o atividade voltada para a solução de problem as por m eio de proj etos, o design tem exercido historicam ente a tarefa de criar obj etos de uso. Os artefatos gerados possuem duas dim ensões: sua configuração m aterial e sua capacidade de m ediar relações – ou sej a, grosso m odo, a dim ensão form al e a inform acional. A falha trágica do design é que todas as form as são efêm eras, em m aior ou m enor grau. À m edida que os obj etos viram dej etos, aquele proj eto que ontem operava com o solução, hoj e se apresenta com o obstáculo e problem a. Ao sobreviverem além da finalidade para a qual foram pensados, os obj etos acabam resistindo aos seus proj etos. Tornam -se ruínas. Posto esse dilem a, Flusser form ula nos seguintes term os a pergunta essencial que se coloca para o proj etista: “posso configurar m eus proj etos de m odo que os aspectos com unicativo, intersubj etivo e dialógico sej am m ais enfatizados do que o aspecto obj etivo, obj etal, problem ático?”.{32} O obj etivo de exercitar esse tipo de pensam ento seria o de proj etar de m odo m ais aberto, ou sej a, de gerar proj etos resistentes ao seu engessam ento form al e eventual obsolescência.

Estam os acostum ados a ouvir preceitos de m etodologia de proj eto com o: “defina o problem a antes de definir o design”. Se toda solução gera, por sua vez, novos obstáculos, com o se faz possível definir de antem ão problem as que ainda não surgiram ? Serão os designers do futuro obrigados a consultar videntes e praticar rituais divinatórios? Não é o que se pretende, de m odo algum . Nem existe a pretensão aqui de sugerir m etodologias de proj eto, tarefa que fica distante dos propósitos do presente livro. O que se propõe é um a com preensão m ais aprofundada da natureza dos artefatos, levando em consideração os fatores

que condicionam o processo de significação.

Sabem os que os obj etos carregam significados. Isso é claro. A pergunta é: como significam ? De que m aneiras as características form ais dos obj etos determ inam , ou não, o sentido inform acional que transm item ? Por que dois ou m ais obj etos que têm o m esm o propósito ou servem para a m esm a finalidade são capazes de suscitar sentidos diferentes? Talvez o exem plo m ais gritante disso sej am as fontes tipográficas. Se todas as letras Q se referem aos m esm os som e m orfem a, qual a necessidade de criar m ilhares e m ilhares de fontes e fam ílias tipográficas? Por que um Q em Garam ond é diferente de um Q em Verdana? Se com preenderm os bem os m otivos por trás dessa e de outras escolhas form ais, poderem os dim ensionar m elhor as im plicações decorrentes delas. Em outras palavras, adquirirem os certa capacidade de antever os obstáculos que serão gerados por nossas soluções.

O assunto é com plexo, e precisa ser atacado por partes. Voltem os à questão da expressividade das form as ou sem ântica do produto, aquilo que foi apontado anteriorm ente com o “fala” dos obj etos. Ao com parar vários exem plares de um a m esm a classe de artefatos, percebe-se de im ediato que existem sem elhanças e diferenças entre eles. Com o exem plo, tom em os um a série de garrafas de água m ineral. Não é difícil perceber as características que as distinguem , um as das outras. Um a é de vidro; as outras, de plástico. Um a garrafa é m aior, outra m enor, outras m édias. Possuem configurações distintas, padrões diferentes de acabam ento, tam pas em cores e form atos diversos, grande disparidade na diagram ação dos rótulos. É a partir de tais com parações que podem os j ulgar, do ponto de vista da propriedade intelectual, se um a form a é sim ilar à outra, se existe ou não cópia indevida daquilo que a legislação denom ina um “desenho industrial”, ou sej a, nos term os da lei brasileira: “a form a plástica ornam ental de um obj eto ou o conj unto de linhas e cores que possa ser aplicável a um produto, proporcionando resultado visual novo e original na sua configuração externa e que possa servir de tipo de fabricação industrial” (Lei 9.276/ 96, Art. 95o).

Para os propósitos da presente discussão, m ais interessante do que as diferenças é o que elas têm em com um . Salta aos olhos o fato de que todas as garrafas representadas na fotografia são transparentes, feitas de m aterial incolor. Não se trata de um acaso, m as daquilo que podem os entender com o um a característica form al significativa. Em se tratando de garrafas d’água, fica evidente a ligação conceitual entre a transparência da em balagem e a ideia de pureza. Por experiência, associam os água lím pida à água lim pa. Motivado por um a associação tão forte e essencial, era de esperar que todas as garrafas d’água fossem transparentes, sem pre. Talvez surpreenda reparar que nem sem pre o são. Que m otivo levaria um fabricante a produzir um a garrafa d’água verm elha ou roxa? Será que a em presa quer confundir seus consum idores, induzindo-os a trocar a água por refrigerantes de sabor cerej a ou uva? É claro que não! A explicação por essa curiosa violação da gram ática form al reside nos esquem as de exposição com ercial, ou display, que regem a lógica dos pontos de venda. Em m eio a tantas garrafas de todos os tipos que convivem apertadas sobre um a prateleira de superm ercado ou dentro de um a geladeira de m ercadinho, o olhar

do consum idor precisa localizar rapidam ente aquilo que procura. Se um a em balagem cria um diferencial com relação a suas concorrentes, acaba por se destacar. Da prim eira vez que o consum idor for procurar água m ineral gasosa e deparar com a garrafa verm elha, ele poderá até se atrapalhar e deixar de reconhecer o produto bem à sua frente. Já a partir da segunda vez, só terá olhos para ela.

Esse pequeno exem plo, por m ais banal que sej a, toca em questões profundas. O que determ ina com o um artefato vai ser visto em relação a outros sim ilares? São iguais todas as m áquinas de lavar roupas apenas porque se parecem entre si? Por que, em qualquer m om ento dado, diversos produtos pertencentes a um a m esm a classe costum am se parecer m uito, m esm o que sej am distintos em m atéria de desem penho ou qualidade? Por que o design a serviço do com ércio opera, tão frequentem ente, com soluções próxim as, dentro de um a faixa estreita de variações? Não é incom um , afinal, encontrar produtos concorrentes em em balagens quase idênticas, às vezes flertando com os lim ites da cópia, às vezes irrom pendo a fronteira para o plágio. Por que existem tendências estilísticas que m arcam cada época? Do extrem o oposto dessa equação, por que o design a serviço do com ércio investe tanto esforço para diferenciar produtos m ais ou m enos sim ilares? Será m esm o necessária ou proveitosa a grande variedade de em balagens de Coca-Cola, sendo lim itadas as variações possíveis de sabor e teor do xarope doce gaseificado? Para entender a lógica daquilo que os especialistas cham am de “padrão de m ercado”, sua evolução e quebras de paradigm a, é preciso com preender que form a e significado coexistem em relação fluida. Todo vez que um significado se cristaliza em algum a form a (“enunciado”, ou “significante”), isso im pacta a totalidade do universo de form as existentes (“repertório”) e, por conseguinte, altera a com plexa teia de significados da qual originou o enunciado.

Ao considerarm os que cada significado só existe dentro de um sistem a m aior, faz-se possível com preender que significado form al é m ais processo do que coisa. Melhor falar, então, em “significação”, ou sej a: o processo m ediante o qual significados vão sendo acrescentados, subtraídos e transform ados em relação ao conj unto total das form as significativas. Quando o assunto são artefatos – e não palavras ou im agens, com o na m aior parte dos m odelos sem ióticos –, a análise da significação ganha um a dim ensão ainda m ais esquiva. Na m aterialidade, é colapsada a distinção sutil entre o que constitui o obj eto e o que em ana dele, a qual se coloca historicam ente em diversas áreas do pensam ento hum ano por contraposições variadas com o coisa em si × fenôm eno; form a × conteúdo; representante × representação; significante × significado. Supostam ente, a com pacta concretude das coisas poderia torná-las resistentes à reflexão; e prevalece a tendência, na sociedade ocidental, a tratar o com um dos obj etos m ateriais de duas m aneiras: ou com o dados brutos (ciência), ou com o

acidentes e sim ulacros (m etafísica). Não é verdade, contudo, que os artefatos sej am im perm eáveis ao escrutínio analítico. As form as falam , sim , se apenas souberm os ouvir suas vozes.