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A PAISAG EM DESLIZANTE DA REDE

Dê um Google de im agens na palavra “peixe” e vej a o que acontece. Vai-se m aterializar à sua frente um m ar de peixes, um oceano de peixes, um universo de peixes. Da últim a vez que o autor deste livro realizou esse exercício, hoj e, 14 de setem bro de 2010, às 8h47, o m ais fam oso m ecanism o de busca da internet encontrou aproxim adam ente 527 m il resultados em 0,16 segundo, e os dispôs ordeiram ente de dezoito em dezoito (três fileiras, com seis im agens cada), organizados ao longo de pouco m ais de 29 m il páginas, ou por aí. Não é possível afirm ar ao certo porque o autor não teve paciência para ir além da página 39. Já era peixe dem ais! Peixes fotografados, peixes ilustrados, peixes anim ados; peixes pescados, peixes cozidos, peixes fossilizados; peixes dentro d’água, peixes fora d’água, peixes voando no céu; film e cham ado peixe, gente cham ada peixe, peixe para dar e vender.

A situação narrada é nada m enos do que adm irável. Quem tem m ais de trinta anos ainda deve se lem brar de um tem po em que a busca de im agens era um processo bem m ais trabalhoso. Era preciso recorrer a bancos de im agens, revistas ou até livros. Livros, quem diria! Coisa m ais antiga. Quem tem m ais de quarenta, se lem brará de um tem po em que im agens não podiam ser digitalizadas e transm itidas com o arquivos eletrônicos. Nos idos históricos antiquíssim os de 1990, passar um a im agem para um am igo ou colega significava fazer um a cópia por m eio de revelação fotográfica ou fotocópia e entregar em m ãos, pessoalm ente, ou então enviar pelo correio. Correio? O que é isso, vovô? Está rindo, j ovem leitor? Espere só vinte anos, e vej a se a piada ainda tem graça.

A situação é adm irável, m as é preocupante tam bém . Optou-se por narrá-la em linguagem coloquial – com o a gente fala –, porém , em pregando expressões que são im precisas e potencialm ente enganadoras. Por “dar um Google”, entende-se que o autor recorreu ao m ecanism o de busca fornecido pela em presa Google, um a das m ais poderosas a atuar na world wide web, sistem a de docum entos em hiperm ídia interligados e executados na internet, que opera com o principal interface de navegação nesta rede virtual para a m aioria dos usuários. O tal m ecanism o de buscas foi instado a procurar im agens que correspondessem à descrição textual “peixe”, e encontrou m ais de 500 m il em pouco m ais de um décim o de segundo. Quando se disse que ele dispôs os resultados “ordeiram ente” em “páginas”, quer dizer que lhes im pôs um a diagram ação em fileiras e colunas, divididas por grupos de dezoito. Não estam os falando nem de páginas, no sentido literal de folhas finas que são viradas, nem de

qualquer ordenam ento de significado. As im agens de peixes referenciadas – na verdade, elas não se m aterializam em m om ento algum , a não ser que se m ande im prim i-las – não vêm agrupadas por nenhum a ponderação racional, ordem conceitual ou critério inteligível ao usuário com um . O buscador j unta um as com outras de acordo com critérios derivados puram ente de sua estrutura inform acional, ou sej a: parâm etros lógicos de linguagem de program ação. Ficou m ais claro assim ? Para dizer a verdade, não.

Quanto m ais se tenta explicitar o funcionam ento do m undo virtual, m enos inteligível ele parece ficar. Im agine o exercício de explicar o exem plo acim a para um viaj ante de um tem po distante, antes da existência de com putadores, televisores ou m esm o de fotografias – digam os, por exem plo, o poeta e filósofo inglês Sam uel Tay lor Coleridge (1772-1834), citado em epígrafe a este capítulo. Aj uda bastante o fato de Coleridge ter sido um pensador brilhante, capaz de com preender conceitos que fundiriam a cabeça de m uita gente. Lidos e digeridos os parágrafos anteriores, nosso poeta tenta tom ar pé da situação:

[Coleridge] Então, quer dizer que vou à procura de quadros que representam peixes neste espaço im aginário cham ado “rede de alcance m undial”?

[Nós] Não são bem quadros, nem gravuras. São im agens desprovidas de suporte físico. O espaço virtual perm ite a visualização de obj etos sem substância, im agem pura, desde que sej am utilizados os aparelhos necessários para acessá-lo.

[Coleridge] Ah, sim , im agens puras, com o em nossas m entes! Então, o espaço virtual é um a espécie de im aginação coletiva. Mesm o assim , vou precisar usar um engenho para navegar nesse espaço?

[Nós] Não, exatam ente. O engenho é sim plesm ente um sistem a de cálculo de relações entre parâm etros. A navegação tam pouco é física. Ela consiste na visualização de dados dispostos de acordo com um a estrutura invisível que perm ite o fluxo ilim itado entre as partes. Essas partes são os conteúdos visíveis – ou sej a, basicam ente com binações de texto e im agem – organizados em “páginas”, a quantidade que pode ser visualizada em um só golpe de vista, ou pouco m ais. Estas são agrupadas, por sua vez, em sítios, a reunião de m últiplas páginas sob um a única denom inação.

[Coleridge] É um pouco com o um livro: as páginas sendo as folhas, e o sítio sendo a encadernação. Essa rede não deixa de ser um a enorm e biblioteca! Toda grande biblioteca precisa ter um a organização, um sistem a de classificação. E quem controla essa estrutura invisível, por trás de tudo? Quem é o bibliotecário?

[Nós] Ninguém , e todos ao m esm o tem po. A estrutura são as relações entre as partes, e está em constante processo de m utação. É um sistem a quase sem substância, cuj a form a é dada por seus participantes. Cham am os

isso de espaço virtual, pois ninguém o ocupa de m odo atual, im ediato e presente.

[Coleridge] Isso é fantástico, e assustador! Um m undo de som bras e fantasm as, porém visível a todos. Conte-m e m ais sobre esses conteúdos visíveis. Quer dizer que o engenho im aginou 500 m il peixes diferentes em m enos de um segundo! E o que ele concluiu após o estudo de todos esses peixes?

[Nós] Bem , ele não concluiu nada. Ele não estuda, nem analisa. A bem da verdade, as im agens encontradas não têm m aior relação entre si. Muitas nem são de peixes, no senso estrito. Apenas apresentam algum a ligação com a palavra.

[Coleridge] Mas, então, trata-se de um a balbúrdia de inform ações sem sentido, com o se afundássem os dentro de um im enso sonho sem fim ?

[Nós] Pode-se dizer que sim . Mas as inform ações levam a outras inform ações… há inter-relações possíveis. Form am -se conexões e com unidades. No fundo, cabe ao internauta dar sentido à navegação.

[Coleridge] Entendi [cético, pausa e pondera]. Um a vez que se viaj a nesse fantástico espaço im aginário sem fim , com o é voltar para a experiência com um ? Sente-se alívio, decepção, prazer, saudade?

[Nós] Ainda não tem os m uita certeza. Parece que, quanto m ais o fazem os, m enos nítida fica a distinção entre a vivência virtual e a presencial. Um a im pacta e m odifica a outra. Alguns acreditam até que as duas vão se fundir. Há um debate se o virtual poderá ser plenam ente vivido, um dia, ou não. Ou, ao contrário, se j á estam os im ersos nele, sem nos darm os conta, por estarm os presos ainda a conceitos ultrapassados de realidade.

[Coleridge] Esse assunto, eu conheço um pouco. Não é m uito diferente de um a discussão da qual participei, anos atrás, sobre a distinção entre ficção e verdade. Nunca aceitei o apego à noção de verdade, com o se fosse um ídolo. Verdade é um a crença, e a descrença nela é a dúvida. O obj etivo da fé poética é provocar, de bom grado e por um m om ento, a suspensão da descrença em prol das som bras da im aginação.{41}

Com essas palavras enigm áticas, nosso Coleridge estala os dados e volta para o século XIX, seguro de que a vida era bem m ais sim ples num a época em que as redes eram usadas para caçar borboletas, ao invés de transm itir inform ações.

Hoj e, para o m al e para o bem , não conseguim os m ais escapar da onipresença da rede virtual que apelidam os de internet. Mesm o quem não tem acesso direto a ela – o que é a m aioria dos habitantes do planeta – é governado por instituições e agências que operam por m eio dela, os quais são cada vez m ais regidos por sua lógica e regras peculiares. Tanto a rede é um fato da contem poraneidade que, poucas décadas após sua criação, quase ninguém

consegue m ais im aginar com o seria o m undo sem ela. Tam pouco é preciso detalhar de qual rede estam os falando, quando se diz “a rede”. Em bora, tecnicam ente, a internet sej a um conglom erado de redes, das quais a www representa apenas um a parte, são os docum entos suportados por essa porção, interligados por m eio de hyperlinks, que constituem , na prática, a experiência com um de navegação.{42} Do ponto de vista do design, portanto, faz-se urgente com preender m elhor as bases epistem ológicas que dão sustento à visualidade da rede. Se, para seus usuários, ela é antes de tudo um im enso conj unto de interfaces prioritariam ente visuais, com pete investigar suas origens.

A im portância de falar da rede é evidente, m as o m odo de fazê-lo sem cair na conversa fiada ou na futurologia é um desafio. A internet é a m aior e m ais surrada m etáfora do m undo contem porâneo. Tornou-se lugar-com um pensar as coisas com o redes: as cidades, as com unidades, os corpos, as m entes. Tudo são redes, segundo aqueles que se arvoram a profetas do óbvio ululante. Não há grande novidade nisso, pois as m etáforas sem pre existiram , assim com o os repetidores de lugares-com uns. Cem anos atrás, tudo era com parado a um a m áquina (por exem plo, em analogias com o “o corpo é a m áquina hum ana”); trezentos anos atrás, tudo era com parado a um corpo (“a nação é o corpo político”); e assim por diante, desde que o prim eiro escritor descobriu na Mesopotâm ia que as m etáforas eram um a boa m aneira de envolver o leitor e inj etar vitalidade no relato. Que tudo são redes é fácil de dizer, m as o que querem os dizer com isso?

As redes tornaram -se m etáfora tão poderosa, entre outros m otivos, porque há diversos tipos delas, caracterizados por propriedades m últiplas e até contraditórias. Com o todo grande tropo discursivo, a palavra “rede” quer dizer m uitas coisas. Um a rede pode apoiar – com o é o caso das redes de dorm ir ou das redes de segurança usadas por equilibristas. Um a rede pode prender – com o é o caso das redes de pesca ou das redes de cabelo. Um a rede pode im pedir a passagem para dentro ou para fora – caso das redes de proteção para crianças ou das redes contra m osquitos. Um a rede pode perm itir a passagem ao m esm o tem po que dem arca um lim ite – com o as redes de basquete ou de vôlei. Todos esses exem plos são de redes concretas, fisicam ente palpáveis, e todas com partilham do princípio característico de reter algum as coisas e deixar passar outras. Esse tipo de rede é referido, geralm ente, em língua inglesa (o idiom a dom inante da internet) pela palavra “net”.

Existe outra grande classe de redes que não costum am ser m anipuladas fisicam ente. São redes no sentido figurado de ligarem nódulos dispersos por vetores determ inados. A rede telefônica, a rede elétrica, a rede de esgotos são exem plos. Em inglês, tais redes costum am ser descritas pela palavra “network”, que poderia ser traduzida com excessiva literalidade com o “trabalho de rede” (em sua origem , era isso), m as que evoluiu ao longo dos séculos para se referir a

qualquer sistem a com plexo de partes interligadas (nos casos acim a, “system” aparece com um ente com o sinônim o de “network”). Em especial, é usual em inglês em pregar “network” quando se trata de um a rede em que pontos fixos e densos (estações) são relacionados por vias de condução ou canais de transm issão (linhas) – com o nas redes ferroviárias. Quando redes dessa espécie tornam -se m uito com plexas, com o cruzam ento repetido de ram ificações e m últiplas direções de tráfego, costum am os descrevê-las, em português, com o “m alhas” (por exem plo, a m alha viária). O uso correspondente, em inglês, em bora m ais raro, é possível: por exem plo, quando se fala em electricity grid para se referir à rede de eletricidade de um a cidade ou país. Nas redes do tipo network, as energias e os m ovim entos fluem entre as partes ligadas por ela. Daí, o sentido figurado de um a rede de contatos pessoais que dá origem ao term o “networking”, tam bém usado no Brasil.

Nem a palavra “net” nem a “network” foram capazes de dar conta da tarefa de descrever esse novo fenôm eno batizado de Internet (com I m aiúsculo) no final dos anos 1980.{43} A nova rede passou a ser percebida com o um a entidade, senão física, pelo m enos m oral e conceitual – tão coisa quanto qualquer entidade governam ental (com o um m inistério) ou transnacional (a ONU, por exem plo), apesar da falta de um quartel-general reconhecido ou m esm o um sim ples endereço postal. Recorreu-se ao neologism o para descrever algo que nunca antes existira: um a rede capaz de j untar todas as outras redes – de início, todas as outras redes de com unicação entre com putadores – e passível de vir a ser percebida com o “a rede”, tout court, o que ocorreu m uito rapidam ente. Na esteira desse processo, surgiu a www, introduzindo m ais um a variedade de rede na discussão: a web, ou “teia” em inglês. Um a teia não é um a rede, m as tem o poder de enredar. Teia de aranha, por exem plo. Tanto em português quanto em inglês, a origem rem ota das palavras “teia” e “web” está ligada ao tear e ao tecido.{44} É do tecido da www que vam os tratar, adiante, m as não sem antes fazer um a digressão a respeito da história das redes.