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Márcio Sá (com Joana Vasconcelos)

A praça do Martim Moniz, situada a menos de um quilómetro da baixa lisboeta, antes frequentada sobretudo por alguns moradores da Mouraria — membros de comunidades imigrantes diversas (africanos, indianos, chineses, entre outros) — e por elementos de franjas pobres e socialmente estigmatizadas da população p ortuguesa (toxicodependentes, alcoólicos, prostitutas), foi urbanisticamente reabilitada há cerca de mês e meio. O investimento económico e simbólico feito na praça visa, através de um programa municipal que atribuiu a exploração comercial de parte do loca l a uma empresa privada, dinamizar um espaço urbano antes estagnado ou irrelevante para a maioria da população da cidade e dos turistas, transformando, nos planos urbanísticos e no imaginário sociocultural da cidade, a anterior fraqueza daquela praça (como gueto étnico e frequentado por pessoas de franjas desfavorecidas da população portuguesa) numa nova força, de multiculturalidade cosmopolita e fluidez de fruição turística.

Esta transformação da fraqueza em força, sob os auspícios do município, está de certo modo visualmente inscrita na própria praça, materializada nas muralhas ali presentes que dividem o espaço em duas grandes áreas. Uma, a área do “mercado da

32 fusão”, dispõe de esplanadas e quiosques onde se vendem bens alimentares e bebidas de origem “exótica” ou dita alternativa (sushi, comida indiana, chinesa, africana, e refeições à base de produtos de agricultura biológica) a preços bastante superiores aos dos cafés ou restaurantes envolventes nas ruas da Mouraria ou na Av. Almirante Reis, ostentando nomes que vincam a trademark do cosmopolitismo alternativo, como “Casa da Preta” ou “Família Latina”. Esta área de consumo é pontuada, aqui e ali, por bancos estreitos não pertencentes a nenhum quiosque onde o não -consumidor “à paisana” pode ficar e ouvir a volta ao mundo em 80 minutos que o DJ do "mercado da fusão", do alto do seu púlpito tecnológico, partilha com clientes (maioritariamente jovens e europeus, tanto portugueses como turistas) e não clientes, num roteiro que vai de Frank Sinatra a Seu Jorge, passando por rap norte-americano, drum’n’bass, bossa nova, música contemporânea de capitais africanas e fado em toada pop. A outra área, do outro lado da muralha, próxima do Hotel Mundial, não apresenta qualquer proposta comercial e os seus muros, definindo a cintura da praça, podem ser ocupados sem constrangimentos monetários por qualquer pessoa. Ali, uma profusão labiríntica de repuxos de água movimenta a paisagem visual de quem se senta e assiste aos ziguezagues infantis e de turistas acalorados que se refrescam, entre cliques e flashes de máquinas que agora objectivam, com poses e sorrisos para a posteridade, um espaço que antes constituía um soluço urbanístico e cultural no percurso turístico. A transformação da praça implica também uma transmutação de muralhas: da policial ou social, face a quem a frequentava, para salvaguardar quem ali passasse, para a videovigilância destinada a proteger quem ali vem, investe e consome, com câmaras incorporadas nos candeeiros e bem anunciadas em placas.

Textualmente registadas, há também pistas sugestivas de uma tensão histórica e social de reivindicação de um espaço. Nas muralhas que dividem a praça, encontra - se uma placa inscrita com a explicação do seu nome: Martim Moniz, fidalgo e capitão do exército de Afonso Henriques, cuja acção foi decisiva na batalha de Ourique em 1147 para a transformação de Al-Ushbuna em Lisboa e que, "trespassado pelas lanças mouriscas, morreu por Lisboa cristã". Por outro lado, e no outro extremo da praça, na parede do metro que dá para a esplanada, lê-se, escrito a spray: “ESTA PRAÇA AOS IMIGRANTES”.

33 Lidas no momento actual, ambas as inscrições deixam um rasto de ironia em quem as lê e observa a área envolvente. Alguém que morreu por uma Lisboa cristã, recordado oficialmente num local que se converteu historicamente no epicentro da concentração de imigrantes de origens diversas e religiões múltiplas, que ali vivem e permanentemente cruzam a praça entre os dois centros comerciais — o da Mouraria e o do Martim Moniz —, trazendo e levando produtos para venda e falando em múltiplos idiomas; por outro lado, o registo, por parte de um indivíduo ou grupo anónimo, da preocupação suscitada pelos planos do município de uma suspeita operação de higienização da cidade — a de empurrar quem lá mora para outros espaços menos visíveis, por ser este demasiado central e potencialmente turístico para, economicamente, permanecer “praça baldia”, utilizando precisamente a multiculturalidade, a diversidade e a diferença como instrumento de lavagem do espaço, percorrido simbolicamente em toda a sua extensão por repuxos que, agora reactivados, dinamizam fluxos culturais que ali se materializam e propõem.

Mas estas ironias — a de evocar Martim Moniz morrendo por uma Lisboa cristã e a de reivindicar a pertença aos imigrantes de uma praça que era o centro de um gueto étnico, socioeconómico e cultural antes estigmatizado e agora promocionalmente multicultural — coloca também a questão da unicidade e linearidade de intenção e resultado, e da precariedade de ambos, bem como da solidez ou esboroamento da distinção entre estratégia e táctica de Michel de Certeau, relativamente às formas como as pessoas se apropriam dos espaços, distintas das projectadas e/ou temidas por diferentes quadrantes sociais, económicos e políticos. Vinga necessariamente o projecto daquele que é tido à partida como mais forte, da instituição ou do poder com controlo espacial? E qual a homogeneidade do forte e do fraco? A pertença da praça aos imigrantes, reivindicada porque "ameaçada", implica atentar em como este novo espaço é também habitado e apropriado pelos moradores de comunidades imigrantes que ali se encontram — mais no espaço de não consumo, a beber iogurtes ou cervejas comprados no supermercado, uns sentados apenas, outros a passear de um lado para o outro, um grupo de mulheres indianas à conversa em círculo no recato da sombra e da ocultação do arvoredo que filtra as olhadelas ocasionais para os seus filhos que correm por entre os repuxos de água. Mas eles ressurgem também como empregados nos quiosques, alguns como donos, outros a

34 falar com clientes sobre negócios noutros espaços, alguns a interagir com os turistas (jovens de origem africana num flirt com duas norte-americanas), outros a vigiar quem utiliza a casa de banho e a trancá-la depois de o cliente, ou de alguém com ar limpinho que pediu para lá ir, sair. (Eu passei o teste.)

Há novos ocupantes da praça que são também elementos de comunidades imigrantes, há continuidade mas também mudança de funções e propósitos de quem já lá ia, há uma habituação gradual ao novo espaço e uma mútua constituição do mesmo por aqueles que agora lá vão e os que já lá estavam. Será que a pertença da praça aos imigrantes, simbolicamente projectada através do multiculturalismo promovido e transaccionado, mas física e economicamente distinta, com outras funções ou ocupando outros espaços, constitui uma margem mais agradável hoje do que o centro da marginalidade que eles antes ocupavam? E mais agradável para quem? Quem são os mouros e quem são os cristãos, hoje? Quais as novas coordenadas das muralhas?

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