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Tiago Pires Marques (com Sónia Miceli)

O Largo do Intendente encontra-se dividido em dois espaços sensivelmente da mesma dimensão por uma palco em construção. Chamarei Zona A ao mais próximo do Martim Moniz e Zona B à metade oposta. Tem um corredor de circulação na sua retaguarda, a Rua dos Anjos, e comunica com a Av. Almirante Reis por duas ruas perpendiculares. Forma por isso um recinto relativamente protegido.

Chegámos ao Largo do Intendente pela Rua dos Anjos, e sentámo-nos na esplanada de um café no ângulo da Zona B com uma saída para a Av. Almirante Reis. Foi o nosso primeiro ponto de observação.

Na entrada da Rua dos Anjos, há duas mulheres. Usam saia e calções muito curtos e camisas justas, estão muito pintadas, mas é sobretudo pela atitude que as identifico como prostitutas. Movem-se com gestualidade expansiva, requebros de ancas, fazem sobressair as suas formas corporais, riem-se e olham à volta. Junto delas há 3 homens, com quem conversam animadamente. Um deles abraça uma das mulheres pelas costas, em atitude de alguma intimidade erótica mas numa postura que não é usual ver num casal num espaço público, mas também não exactamente a de um cliente, ou do chulo. Qual é a sua relação? O que permite esse modo peculiar de proximidade física?

A apresentação e atitude corporal destas mulheres contrastam fortemente com a da mulher-polícia parada junto ao café onde estamos. A farda, o boné e os óculos escuros apagam as suas formas, impedem que seja reconhecida e que se saiba para onde está olhar. Apoia as mãos no cinto, por vezes acaricia o coldre. A sua atitude sugere-me masculinidade. Mas tal como as prostitutas, o seu modo de presença é a espera e uma aparente inactividade. As prostitutas marcam o lugar como marginal, mas a presença da polícia, numa atitude que poderia dizer simétrica da das prostitutas, assinala a ordem e o Estado. Há uma indiferença mútua entre ambos. Uma estranha convivência entre marginalidade e autoridade.

Da mesa observamos alguma movimentação na Rua dos Anjos. Há uma porta aberta, por onde havíamos passado sem perceber de que tipo de lugar se tratava (um café? Uma garagem? Público ou privado? Mais tarde veremos que é um bar). Em

40 frente da porta há mesas de plástico onde se senta um grupo de homens, jovens e de meia-idade. Não consomem nem mantêm conversa. Também eles me sugerem atitude de espera e aparente inactividade.

Chegam dois polícias, homens, que também manifestam indiferença em relação ao que se passa à entrada da Rua dos Anjos. Observam e conversam sobre uma mota.

O café onde estamos liga-se ao processo de reabilitação simbólica do espaço (um certo tipo de emburguesamento que se joga na apropriação de espaços populares ou marginais). A oferta, a decoração, a apresentação e modo de falar das mulheres que fazem o serviço assim o sugerem, tal como a clientela: não é claramente um café de bairro nem se inscreve na lógica que atribuo aos bares e cafés que vimos ao passar na Rua dos Anjos.

Na zona A, o nosso ponto de observação é um banco no meio do Largo . Aí observo 4 mulheres sentadas no chão, à porta de edifícios não utilizados. Uma delas está rodeada de sacos de plástico e totalmente coberta com roupas velhas. Identifico esta mulher como sem-abrigo e, num primeiro momento, também as outras três me parecem sem-abrigo, já que estão sentadas de forma idêntica. Duas são de pele escura, a outra é branca. Pouco depois, dou-me conta de que são também prostitutas, excepto talvez a mulher rodeada de sacos de plástico. Contrariamente às mulheres da Zona B, estas estão alheadas umas das outras e as duas mulheres de pele mais escura aparentam mal-estar. Mais tarde, uma delas, talvez sentindo-se observada, levanta-se e sai do nosso campo de visão, indo colocar-se na Rua dos Anjos.

Vários homens vindos do lado da Avenida passam muito junto destas quatro mulheres e observam-nas rapidamente sem pararem. Estes homens fazem razias.

Sentados num banco a alguma distância do nosso, um grupo de 9 homens de origem africana conversam animadamente, indiferentes às mulheres, como se as vissem todos os dias. A sua atenção é mais cativada por duas crianças que ali brincam.

Nesta zona do Largo, vêem-se barracas fechadas para venda de bebidas à noite, nas alturas de actividade no palco. Há alguns gradeamentos. Também deste lado do Largo, os lugares, objectos e atitudes sugerem uma situação de espera. O Largo não vive só à noite, há ainda alguns lugares de comércio de bairro, mas orienta -se para a vida nocturna e para receber quem vem de fora em busca de algo que ali, e só ali, se

41 oferece. Mostra-o também a situação de abandono em que estão alguns elementos decorativos da praça (uma fonte), contrastando com o investimento nas actividades de diversão.

Deslocamo-nos para a saída da zona A pela Rua dos Anjos, mas aí a degradação urbana (estrada não alcatroada, prédios em ruína), a maior densidade de bares sugerindo actividades de tráfico de droga e alguma violência verbal fazem-nos recuar.

Em suma: trata-se de um espaço investido por várias lógicas, observáveis desde logo em aspectos urbanísticos, nas escolhas de prioridade de intervenções de reabilitação e pela presença de um novo tipo de comércio. A valorização urbana e simbólica convive com zonas de degradação urbana e marginalidade. A Zona B está mais valorizada que a Zona A.

Os modos de sociabilidade, ou de isolamento, das prostitutas observadas, a proximidade entre a polícia na Zona B e as prostitutas, a aparente intimidade amigável entre as mulheres e o grupo masculino, e o meu próprio erro interpretativo tomando as mulheres da zona A como sem-abrigo, sugerem alguma hierarquia entre as

prostitutas – talvez determinada pela sua situação no bairro, maior ou menor familiaridade com os moradores, situação legal, recursos financeiros, protecção. O território do Largo surge pois como segmentado e a intervenção em curso criou possivelmente novas condicionantes territoriais com impacto nas actividades que aí já se exerciam. A actividade da prostituição adaptou-se a essa segmentação utilizando as novas coordenadas territoriais para se organizar e manifestar uma lógica que lhe é interna.

08. Andanças

Transições

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