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Susana Durão (com Carla Almeida)

O lugar da Quinta do Cabrinha é um conjunto de dois blocos de prédios habitacionais, com uma média de 5 pisos, situado junto ao lado norte da barulhenta e movimentada Avenida de Ceuta. Esta é um canal de entrada e saída de pessoas, veículos e bens na cidade de Lisboa. Quem olha para o conjunto habitacional do lado de fora, vê apenas um continuum de prédios num bloco. Do lado de dentro, entramos num pátio para onde todos os pisos e as suas varandas se viram, o que convida, quando não pressiona, à convivência mútua.

Quando chegadas a este lugar, por volta das 15h00, julgamos encontrar um bairro residencial sem gente. Mas somos imediatamente surpreendidas pelo movimento intenso de transeuntes: idosas com sacos de compras, crianças de bicicletas, casais de meia-idade e jovens namorados com cortes e cores de cabelo sugestivos, a fazer lembrar os ídolos do futebol. A super-presença do elemento futebolístico no bairro é dada pela vestimenta do senhor Gabriel, o simpático octogenário com quem entabulamos conversa, do lado de fora, antes de penetrar na área residencial.

Sentado sobre um lenço branco que tapa um sujo degrau da escadaria que dá acesso ao piso zero dos prédios, o senhor Gabriel assiste à ‘Operação Stop’ da Polícia, do lado oposto das oito faixas de rodagem. É como se fosse um espectáculo de ‘caça à multa’, como diz, numa altura do ano em que os PSPs saem à rua para fiscalizar as condições de circulação automóvel. Bem-posto, Gabriel enverga uma camisa de um intenso vermelho. Na lapela do blazer preto tem uns três pins do Benfica futebol clube. E do lado de dentro do espaço habitacional, um dos principais locais de atração, o clube desportivo do santo António de Lisboa, tem exposto imagens do dito santo e símbolos do Benfica.

Somos enredadas nas memórias antigas de Gabriel, bigodinho ao estilo galego, impecavelmente barbeado, ainda a cheirar ao fresco do after-shave. Ouvimo-lo falar dos seus amores, mulheres e filhos; ouvimos-lhe a vida e a morte do filho. Chora-o e

48 rapidamente se recompõe enquanto vai comentando quem passa: ‘Este [um homem de 50 anos] era um dos meus melhores jogadores quando os treinava na bola, velhos tempos do futebol amador…; Aquela que ali vai põe os cornos ao marido, tem um quiosque em Alcântara, não a viu rir-se para mim?; esta que aqui passou é uma vizinha minha…’ Quando nos despedimos, para o deixar, fica a conversar com uma mulher que parece querer dar início a uma discussão à qual não assistimos.

Em pouco mais de meia hora de conversa, Gabriel está longe de imaginar que nos oferece o mote para pensar vários temas associados a esta urbanização, no caso com 14 anos de idade, nascida em 1998 para alojar a população pobre que vivia nas designadas ‘barracas’ do então demolido bairro do Casal Ventoso.

1/ Descreve-nos como viver em lugares e bairros é ao mesmo tempo uma história de vida de casas, famílias e ocupações que se criam e recriam. Os entrecruzamentos deste homem com a cidade são-nos narrados através de casas e elos familiares. Gabriel nasceu e cresceu na Bela Flor, em Campolide, onde trabalhou numa pedreira, desde os 7 anos de idade, para todos os dias poder comer. Quando casou, ainda jovem, viveu na tal casa nos Olivais Sul. Entretanto, diz que fez um filho a uma mulher do Casal Ventoso de Baixo. A pedido da ‘casada’ e da filha de ambos, convenceu a mãe do filho a levá-lo para ser criado na casa dos Olivais Sul, com essa a quem o miúdo passou a chamar mãe. Entretanto, nunca deixou de manter ligações físicas e quotidianas com esta parte da cidade que atravessava também por causa do trabalho, motorista de uma empresa que o levava frequentemente a conhecer as pessoas e as ligações dali.

Lá atrás, a sua preocupação era garantir uma estratégia de acesso futuro a um apartamento, quando se começou a falar na demolição do Casal Ventoso. Gabriel conta que residia parte do dia com a mulher na casa dos Olivais Sul. Ali dormia, levantando-se de madrugada para chegar à casa do Vale do Casal onde preparava o café da manhã e lavava a cara numa pia improvisada com água que ia buscar algures no vale. Talvez isso faça com que hoje o que mais valoriza no seu T1, pelo qual paga uma renda de 58 euros (retirados da sua pensão de 450 euros) seja o WC. Nunca antes tivera uma casa de banho. Conseguimos visualizar o apartamento que nos descreve: arrumado, apetrechado de azulejos à entrada e bem limpo no conjunto, essa casa que

49 hoje partilha com uma outra mulher. ‘Já não estou na mulher há muitos anos’, diz da primeira.

2/ Gabriel mostra os cartões das associações e entre eles está aquela que o fez, em tempos, aceder aos serviços sociais e de saúde. Trata-se da principal associação do bairro, a IPSS Alkantara. Mais tarde, em conversa breve com a técnica Selma, do Gabinete de Inserção Profissional, e com o Dr. Filipe que, por sorte, nos recebe no Alkantara, que dirige, ficamos a perceber que esta associação foi instalada alguns meses antes do alojamento. Ou seja, este lugar, o conjunto das urbanizações que se interconectam, foram criados para ter uma ‘tecnologia social’ que permita aos habitantes sustentarem-se de algum modo. A intervenção ‘social’ é co-constitutiva do espaço.

Gabriel diz que frequentava o posto de saúde do Alkantara até ao dia em que se recusaram tirar duas fotocópias para o bar Águias, o qual dirigia. Sintetiza o conflito com uma exclamação: ‘Eu disse-lhes, os senhores pensam que isto é vosso; mas isto não é vosso; não é de ninguém!’ Este apontamento levanta uma questão importante: Em espaços desta natureza, de quem é o quê, e a que colectivos pertence o pouco que ali está: aos moradores, à Câmara Municipal, à Gebalis (empresa de gestão), ao Governo, às Associações; a quem e a quê? Essa parece ser uma tensão permanente, algo que, afinal, parece também ser co-constitutivo do lugar de realojamento ‘social’.

3/ Gabriel, ali sentado nas escadas públicas, demonstra que essa aparente fixidez dos dias e dos quotidianos, naquele pedaço de betão, é para alguns mas não para todos os que ali vivem (674 pessoas, dispostas em 248 fogos, dizem as estatísticas do lugar). É verdade que tudo no espaço indica que se passa muito tempo no bairro: as cadeiras dispostas em frente ao bar Clube Desportivo do Santo António de Lisboa, um sofá na rua, os matraquilhos, a jogatana das cartas às mesas; o improvisado campo de futebol com jovens e o parque infantil com crianças a brincar; a capela; o p osto da polícia à entrada do lugar; o pobre mas recheado minimercado... Dir-se-ia que a mobilidade se reserva sobretudo a quem tem uma ocupação ou aos jovens que conseguem um carro ou uma motorizada. Mas é também verdade que nos interstícios do que ouvimos e vemos reconhecemos sinais claros de uma intensa circulação de pessoas, de dinheiro, de parentes e conhecidos, entre os residentes desses blocos edificados que constituíram em tempos a população do Casal Ventoso – e que hoje se

50 distribui pelos bairros da Quinta do Cabrinha, Quinta do Loureiro, Ceuta-Sul, outros blocos e prédios na Maria Pia, a caminho de Campo de Ourique e do Vale Flor (em Campolide).

E o que pontua a circulação? O pequeno tráfico de drogas a retalho, os próprios espaços associativos, que têm aqui uma sede para muitos residentes a viver nesses diversos eixos de blocos edificados, não necessariamente próximos ou de fácil acesso público. Ou seja, talvez se possa dizer que existe uma circulação entre os aglomerados edificados, como se fossem um bairro, o bairro que foram, mas que é hoje numa outra geografia. Se urbanisticamente não existe o bairro Casal Ventoso, um fluxo de bairro entre os diferentes aglomerados urbanos parece manter-se, quer para que as pessoas tenham acesso a serviços sociais, quer porque esta população se mantém numa relação que é simultaneamente histórica e actualizada nessas circulações.

Ficamos a saber, pelas palavras de Gabriel, que, por exemplo, uma instituição importante no bairro, uma das formas da circulação, é um tipo de jogo, um sistema de lotaria alternativo ao da Santa Casa da Misericórdia, mas com o mesmo tipo de modelo (usando as terminações dessa lotaria). Este loto parece incluir uma larga população, esta população que alimenta assim uma certa circulação de dinheiro e que, por sua vez, pode servir tanto para quebrar umas famílias como para assistir a outras. Talvez isto responda à dúvida que iniciou a nossa conversa com o psicólogo Filipe. Este indagava: ‘Como sobrevive esta gente daqui?’ Estaria o técnico a tentar provocar a nossa curiosidade ou é possível que não soubesse mesmo de algo que nós em poucas horas e com um pouco de imaginação etnográfica vislumbrámos?

Termino com um certo paradoxo destes lugares: estes aglomerados de prédios e pessoas parecem ser criados a partir da ideia de uma durabilidade urbana que (re)faça história. Está impresso algum sentido de continuidade temporal, onde se estima que as ‘tecnologias’ da governação favoreçam o existir social em moldes diferentes do bairro anterior. Talvez as nossas breves observações de campo nos permitam afirmar que a ideia de bairro é mantida pelo acesso à residência e a uma mobilidade e circulação por entre os vários aglomerados edificados de pessoas que resultam dessa história e penetram nela. Esse ‘social’ parece não interagir de forma linear com políticas de intervenção, estas baseadas na temporalidade efémera dos projetos, intervenções segmentadas em ‘grupos alvo’ (sobretudo crianças e idosos, os

51 que mais inspiram a pena e motivam os atores do ‘bem’). Vemos vários projetos anunciados, de portas fechadas, sem recursos financeiros para poder continuar, dizem-nos; verificamos que os que perduram não sabem o que os da porta ao lado estão a projetar. Num lugar tão densamente povoado, espanta a mensagem de um dos cartazes da associação Alkantara, com a imagem de uma idosa: ‘Esteja atento, não deixe o seu vizinho morrer sozinho’. Pairam no ar indícios de que muito não se pode dizer e o que se diz pode suscitar mal-entendidos.

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