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Sonia Miceli (com Tiago Marques)

O hospital é constituído por vários pavilhões situados num recinto, que inclui pequenos jardins e outros edifícios, como o da Informed, ligados ao hospital, mas que parecem não lhe pertencer directamente. Dirigimo-nos para o café e, após ter pedido algo para beber, sentamo-nos na esplanada. Começo a observar as pessoas que acabam de almoçar ou que tomam café com o propósito de distinguir os pacientes dos que não o são – médicos, auxiliares, visitantes e/ou acompanhantes. Em alguns casos é relativamente fácil, devido à postura e ao aspecto da pessoa. Em outros, meno s. Por exemplo, numa mesa ao nosso lado, estão sentadas três pessoas: uma mulher de cerca de 60 anos, outra mais nova e um homem de meia-idade. Ao grupo, junta-se pouco depois um rapaz de cerca de 20 anos. Não parecem trabalhar aqui. Haverá um doente entre eles ou serão apenas visitantes? Tento ouvir a conversa, mas não consigo – não sendo falante nativa, tenho dificuldades em apanhar as conversas dos outros. O Tiago ajuda-me e compreendemos que a doente era a mulher mais nova, que ia fazer um tratamento para toxicodependentes. A conversa vertia sobre o tema da felicidade e a mulher dissera que o objectivo dela era ser feliz. Porém, o homem empenhou -se em tirar-lhe essa ideia da cabeça, dizendo: “Nunca vais ser feliz”.

Noutra mesa ao lado da nossa, há dois homens de cerca de 60 anos, que são visivelmente doentes mentais. Um tenta entabular conversa com o outro, mas não dá, pois este parece não ouvir ou não compreender; é, de facto, muito apático, não se mexe, não toma qualquer tipo de iniciativa. O outro, pelo contrário, mostra-se activo e falador. De vez em quando, troca umas palavras com duas mulheres sentadas noutra mesa – parecem se conhecer, devem trabalhar no hospital, provavelmente como auxiliares ou enfermeiras, pois pela postura não parecem médicas –, também para pedir cigarros, o que, como perceberei de seguida, é uma das actividades distintivas dos pacientes do hospital.

37 De repente, chega outro indivíduo, cuja forma de andar, roupa e olhar denunciam de imediato a sua condição de doente mental. Anda com uma mão de trás a segurar as calças – está a precisar de um cinto – e nunca a tira. Vem para a esplanada e, sem qualquer hesitação, vai para uma mesa recentemente desocupada, pega num copo que continha um resto de sumo de laranja e bebe-o de um trago. Esta acção, surpreendente para mim, não causa qualquer reacção no outro sujeito – o da mesa do lado –, que tinha estado a observar em silêncio. O homem vira-se então para aquele pedindo um cigarro. Como o outro diz que não tem, vai-se embora – sempre segurando as calças com a mesma mão.

A esplanada começa a ficar vazia: passou da hora do almoço e as pessoas já devem ter voltado para as suas actividades. Estamos a ponto de ir embora, quando chega uma senhora com uma miúda de cerca de 8 anos. Suponho que se trate de uma mãe, que acompanhe a filha a algum tratamento. No entanto, o que vejo a seguir deixa-me duvidosa: a mulher aproxima-se dos dois indivíduos que continuam sentados ao meu lado e pede um cigarro. Este gesto é, pelo que pude observar, muitíssimo frequente entre os pacientes do hospital e o facto de ela ter feito isso assim que chegou, dirigindo-se aliás só a pessoas claramente doentes (será que os conhecia?) leva-me a pensar que ela também seja. Entretanto, a miúda mantém-se calada e séria. Quando as duas abandonam a esplanada, a mulher mostra-se incerta sobre a direcção a tomar e parece ser a miúda quem conduz...

Deixamos a esplanada e começamos a andar pelo espaço do hospital. Nessas andanças, encontramos o tipo que segura as calças, na mesma postu ra, e o outro, a quem sorrio e que me responde sorrindo e acenando com a mão.

Na entrada do pavilhão "Gestão de doentes" há três pessoas sentadas em outros tantos bancos. Um deles pede cigarros aos outros, que o ignoram. Pedir cigarros responde não só ao desejo de fumar, como também à necessidade de os pacientes se entreterem, pois a procura do cigarro e o fumo ajudam-nos a ocupar o tempo, em dia longos e provavelmente pouco variados. É também uma forma de se abordar as pessoas, conhecidas ou não.

Junto ao pavilhão, um homem de meia-idade, sentado num banco, olha fixamente para uma planta seca e rega-a abundantemente com a água fresca da sua garrafa. A seguir, bebe e continua a olhar para a planta. Está muito calor.

38 Num pequeno jardim, uma rapariga arranja as unhas a uma senhora idosa. Noutro, um homem está deitado à sombra de um arbusto. Parece estar a dormir, mas, ao darmos a volta, notamos que tem os olhos abertos e olha para nós. Ter-se-á sentido observado?

Decidimos ir embora e começamos a procurar a saída: não é fácil alguém se orientar aqui! Mas quando, por fim, a encontramos, há algo que me chama a atenção: um grupo de pessoas, sete homens e uma mulher, a andar juntos, relativamente devagar. Na tentativa de descobrir para onde vão (passear? para um tratamento?), começo a (per)segui-los. Neste, como nos casos anteriores, interessa-me perceber como vivem a sua quotidianidade os doentes mentais, o que fazem no tempo livre, a sua forma de utilizar o espaço do hospital e o tipo de relações que estabelecem (ou não) entre eles e com as pessoas que trabalham lá. A relativa solidão que observei e a pouca interacção poderão prender-se não só com as suas condições de saúde, como também com os constrangimentos impostos pelo ritmo do hospital: num lugar em que os dormitórios e os refeitórios são comuns e as horas do dia pautadas por tratamentos e outras coisas que desconheço, mas imagino, a liberdade do indivíduo é limitada aos tempos livres e, nesse sentido, vagar pelo jardim poderá ser um dos poucos momentos de libertação – inclusive da companhia constante da população hospitalar.

A maioria dos membros do grupo não fala e fica a alguma distância dos outros. Dois ou três falam com a mulher que fica no meio, que aparenta a posição de quem conduz o grupo; deve ser uma auxiliar do hospital, enquanto os outros são claramente pacientes. De repente, um deles pára para espreitar dentro do contentor da reciclagem. Algo deve ter captado o seu interesse e chama a mulher para lhe mostrar. Ela e mais dois ou três também olham e trocam umas palavras. A forma como o homem se dirigiu à mulher e a reacção desta – amável e condescendente – confirma a minha suposição inicial: ela parece ser alguém em quem os outros confiam e a quem se dirigem para obter aprovação ou conselhos. O grupo prossegue o seu passeio, mas nós não podemos ir atrás deles...

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Atitudes corporais e posicionamentos num espaço em recomposição

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