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Raquel Carvalheira (com Gustavo Monzeli)

Entrámos na Igreja de São Domingos, no centro de Lisboa, sem um foco de observação definido. Ao longo da cerca de uma hora que aí estivemos, cin co personagens foram constantes e mereceram especial atenção. Dois deles trabalham na igreja, a apressada e aparentemente sisuda senhora das limpezas, que varria e lavava os diversos altares que compõem a igreja, sobretudo com santos e santas, e um rapaz entre os 23 e 25 anos, que vende velas num pequeno espaço à entrada da igreja. As outras três personagens são dois homens e uma mulher de origem africana. É através deles que construímos esta narrativa; falaremos deles, acompanhando os seus movimentos, já que eles estiveram sempre presentes nos nossos. Um dos homens e a mulher aparentavam ter trinta anos; o outro seria um pouco mais velho. Não os

29 conhecemos, mas damos-lhes nomes para que sejam mais fáceis de identificar. O homem mais velho será o António, o homem mais novo João e a mulher será a Júlia.

A observação e escrita foram discutidas pelos dois, atentos às movimentações das pessoas neste espaço circunscrito, e por isso, este é de alguma forma um texto a duas vozes.

Se as personagens que referimos foram recorrentes ao longo do tempo da nossa observação, elas circularam entre outras, anónimas. Uma igreja no centro de Lisboa atrai turistas, sobretudo famílias e casais de várias idades, que andam descontraidamente pelos corredores laterais do templo, observando as imagens dos santos, os locais das velas, olhando sempre para o altar central e para cima, talvez na expectativa de ver um teto tecnicamente trabalhado. Os crentes, por outro lado, são maioritariamente pessoas idosas, homens e mulheres, e concentram-se na parte dianteira ou traseira das longas filas de cadeiras que compõem a nave central. Expressam a sua religiosidade através da oração em genuflexão, da recitação do terço ou ainda do sinal da cruz, e comentámos o ar de sofrimento dos seus rostos e a preocupação expressa nas suas corporalidades. O silêncio contrasta com o exterior é acompanhado de uma suave música sacra.

Alguns lugares afiguram-se particularmente importantes na expressão da devoção. Entre as imagens, a Virgem Maria, que se encontra na parte inferior esquerda da igreja, perto da porta, merecia um dos mais extensos suportes de velas, inclusive electrónicas, e a maior concentração de pessoas. Este local parecia ser passagem obrigatória de oração. Outro local, na nave direita da igreja, perto do altar, contém uma Pietà, uma imagem da Virgem das Dores com o seu filho descido da cruz, já morto e no seu colo, e uma tumba de vidro com uma imagem de cristo em tamanho natural com as chagas bem visíveis. As imagens pareceram-nos mórbidas. Como a imagem da Virgem Maria, este altar parece atrair particularmente a devoção dos crentes e tem ao lado um grande suporte para velas. Uma caixa de esmolas encontra - se perto, com o descritivo “Almas”, remetendo imediatamente para uma espécie de economia do etéreo.

Uma pequena imagem de Cristo com um manto vermelho mereceu a nossa particular atenção. Várias pessoas tocam o pé direito desta imagem, ou ainda a base dourada que o sustenta, e parecem fazer uma prece. Quando nos aproximámos da

30 imagem vimos que pequenos ex-votos, placas em metal, estão coladas no altar de madeira que sustenta a imagem. Expressam agradecimento pela graça de Jesus.

Voltemos agora às nossas personagens. No início do nosso roteiro decidimos falar com o rapaz que vende as velas, para perguntar se existiam missas e a que horas. Foi este o momento em que observámos pela primeira vez a entrada de António, João e Júlia na igreja. Falavam com o rapaz das velas algo que não entendemos e a mulher comprou uma ou outra vela, que colocou no altar da Virgem Maria. Assim que saíram dali, comprámos uma vela e perguntámos sobre as missas. Sentámo-nos ao pé da imagem da Virgem Maria, guardada por outras duas pequenas imagens dos pastorinhos, Francisco e Jacinta Marto, e observámos ex-votos de mármore que expressam algum tipo de agradecimento, colocados na base do altar. Um deles dizia “Eterna gratidão” e tinha umas iniciais. Movemo-nos depois para um conjunto de cadeiras que se encontram entre a nave esquerda e o altar, onde vimos João, o rapaz mais jovem, e Júlia sentados a rezar. O homem mais velho, António, não está com eles. É nesse momento que notamos pela primeira vez que uma mulher toca na base da imagem de Jesus Cristo, o tal coberto por um manto vermelho. E é aí que decidimos observar de perto essa imagem, até então, uma entre tantas e que percebemos que é recorrentemente tocada e não apenas orada de distante como as outras imagens.

Um certo roteiro da devoção pareceu-nos claro. A entrada pela igreja, a passagem e realização de uma oração em frente à imagem da Virgem Maria, o seguimento pelo corredor lateral, onde se olha para o Santo António, São Francisco de Assis e Santa Clara de Assis. Depois a transição para a nave esquerda, com a imagem do Sagrado Coração de Jesus. A genuflexão e a realização do sinal da cruz em frente ao altar. O caminho leva à nave direita, com a Pietà e a imagem de Jesus com o manto vermelho. As pessoas seguem depois pelo corredor lateral direito, já prestando pouca atenção à sucessão de imagens de santos, Santa Justa e Santa Rufina, São Domingos e Nossa Senhora do Rosário, e saem pela porta que é também de entrada. O rapaz das velas apressa-se a atravessar uma porta lateral à direita do altar, que deixa aberta, e é aqui que as nossas personagens, António, João e Júlia voltam a chamar-nos a atenção. Sentam-se perto de nós e falam com o rapaz das velas. Aí esperam um pouco. O rapaz das velas entra no altar e parece preparar o espaço para a realização da missa: coloca o cálice e a taça das hóstias no altar, testa o microfone de um púlpito.

31 António, João e Júlia dirigem-se então para umas cadeiras, perto do lugar que pensámos ser o confessionário e de que tínhamos falado poucos minutos antes. António desaparece. João e Júlia sentam-se. O padre surge então, envergando uma longa túnica branca e uma estola roxa, e dirige-se para o confessionário. Aí ouve primeiro João e depois Júlia. Logo que terminam perdemos de vista as nossas personagens. À saída, perguntamos ao rapaz das velas, que entretanto voltou para a entrada, se existe um panfleto com a história da igreja. Aponta para um placard. Perguntamos se vai haver missa, já que assistimos à preparação do altar. Diz-nos que às 17.30 há a Reconciliação, ou seja, a recitação do terço.

06. Martim Moniz

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