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CAPÍTULO 1 – EDUCAÇÃO PARA ALÉM DOS MUROS ESCOLARES

1.3 O MUSEU E O CURRÍCULO

Para Sacristán e Gómez (2000), o currículo é um conceito bastante elástico, pois não há uma concepção única dele, sendo a imprecisão e a polissemia de significados características que traduzem as diferentes interpretações da realidade do ensino. O significado dado a ele depende tanto dos fins de escolarização quanto da interpretação dada a esses mesmos fins. No entanto, essas diferentes concepções têm como ponto de intercessão o enfrentamento dado aos problemas escolares em suas diferentes etapas: a pretensão, a implementação e a concretude.

O currículo significa coisas diversas para pessoas e para correntes de pensamento diferentes. Mas se pode entrever uma certa linha diretriz importante para destacar aqui: a evolução do tratamento dos problemas curriculares conduz ao dilatamento dos significados que compreende para moldar o que se pretende na educação (projeto), como organizá-lo dentro da escola (organização, desenvolvimento), mas também para refletir melhor os fenômenos curriculares tal como ocorrem realmente no ensino (prática) que se realiza nas condições concretas (p. 127).

Em meio a essa amplitude de significados, Sacristán e Gómez (2000) consideram que a concepção mais difundida é a de um “[...] programa-resumo de conteúdos de ensino” (p. 147). Uma visão restrita que se limita a uma prescrição de conteúdos e objetivos sem a menor relação com o sentido que as ideias e práticas culturais ocupam na configuração curricular.

A partir de uma proposição política, Moreira e Silva (2002) indicam que o currículo não é um elemento neutro utilizado unicamente para a transmissão de conhecimento, mas é temporal, está inscrito em um determinado momento histórico e cultural e intervém sobre valores, constrói identidades.

O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares. O currículo não é um elemento transcendente e atemporal - ele tem uma história, vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação (p. 7-8).

A característica temporal do currículo é revelada nas transformações que esse vem sofrendo ao longo da história da educação, na qual foi sempre o elemento capaz de legitimar o conhecimento seguindo tendências, objetivos e interesses diferentes. Contra uma concepção

neutra de currículo, Santos e Casali (2009) defendem a relevância de não o desvincular do contexto histórico e social, ressaltando que “Um currículo não surge do nada, mas de uma necessidade social e, principalmente, de uma necessidade econômica e cultural” (p. 228-229). Nessa perspectiva, construí-lo implica pensar em: “[...] para quem, para quê e como, tendo como parâmetro a visão de mundo, de sociedade e de educação em que se acredita” (p. 227).

Portanto, entende-se que o currículo não é um elemento estático, devendo estar em constante transformação, adaptando-se às necessidades da escola, dos professores e dos alunos, sendo assim, uma construção social “[...] que se desenvolve em ato no âmbito da interação dialógica entre escola, vida, conhecimento e cultura e produz percursos diversificados” (ALMEIDA E VALENTE, 2011, p. 14).

Estudos sobre o currículo, a partir das décadas de 1960 e 1970, destacam a existência de três níveis desse elemento: formal, real e oculto (SANTOS E CASALI, 2009). De acordo com Libâneo e Oliveira (2003, apud PLATT e ABRAHÃO, 2013), esses podem ser conceituados da seguinte forma:

O currículo formal, ou oficial é aquele estabelecido pelos sistemas de ensino, expresso em diretrizes curriculares, nos objetivos e nos conteúdos das áreas ou disciplinas de estudo. […] O currículo real é aquele que, de fato, acontece na sala de aula, em decorrência de um projeto pedagógico e dos planos de ensino. É tanto o que sai das ideias e da prática dos professores, da percepção e do uso que eles fazem do currículo formal, como o que fica na percepção dos alunos. […] O currículo oculto refere-se àquelas influências que afetam a aprendizagem dos alunos e o trabalho dos professores e são provenientes da experiência cultural, dos valores e dos significados trazidos de seu meio social de origem e vivenciados no ambiente escolar – ou seja, das práticas e das e experiências compartilhadas em sala e aula. É chamado de oculto porque não se manifesta claramente, não é prescrito, não aparece no planejamento, embora constitua importante fator de aprendizagem (p. 177).

O currículo escolar se desenvolve na congruência desses três tipos, estando em constante mutação de acordo com as mudanças apresentadas pela sociedade nos variados momentos da história. Portanto, constitui um percurso que vai desde o que está prescrito em Projetos Políticos Pedagógicos das instituições e nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), passando pelo currículo oculto, o qual se refere às influências dos diversos valores dos atores envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, até o momento da efetivação em sala de aula, na prática do dia a dia.

Ampliando a definição do já citado termo, Casali (2013) descreve-o como um processo formativo que envolve aspectos objetivos e subjetivos, pessoas diferentes em um

lócus que identifica como prática social, na qual transcorrem interações entre os sujeitos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. Trata-se de

Um percurso e experiência de formação que se faz numa prática social de ensino- aprendizagem, de ensino e pesquisa, que implica todos os sujeitos vinculados direta ou indiretamente à instituição educacional, que inclui vivências subjetivas e sociais, conhecimentos e atividades, em que se manejam conteúdos e processos disciplinares e interdisciplinares, em realizações teóricas e práticas, explícitas e implícitas, didáticas e organizacionais, sistêmicas e subjetivas, cognitivas, emocionais e comportamentais, endógenas e exógenas, éticas e estéticas, instituídas e instituintes, conservadoras e inovadoras, interativas, integradas, em ambiente de inovações tecnológicas, que tem como objetivo (e se faz por meio de) a construção da autonomia dos sujeitos implicados, no mundo das suas subjetividades, diferenças, culturas, trabalho e cidadania. (p. 2)

Nessa definição pode ser encontrada a amplitude que o currículo pode abarcar. Sendo “Um percurso e experiência de formação que se faz numa prática social de ensino- aprendizagem, de ensino e pesquisa”, pode ser descrito como um caminho a ser trilhado, não estando atrelado apenas a um conjunto de disciplinas a serem cursadas pelo estudante, englobando todas as experiências pelas quais ele passa para efetivar o momento da aprendizagem. Também se foca a importância do ensino e da pesquisa como fatores fundamentais na construção do aprendizado do estudante. Sobre esse assunto, Moreira (1993) ressalta que “Se aprender envolve aquisição de um acervo comum de significados, apropriação ativa, renovação e criação de significados, ensinar, a nosso ver, aproxima-se de pesquisar e de construir conhecimentos” (p. 50). Portanto, o ensino e a pesquisa são componentes ativos e importantes no currículo das escolas para a completude da formação que é dada aos estudantes.

Ainda sobre o mesmo termo em estudo, de acordo com Casali, o currículo “[...] implica todos os sujeitos vinculados direta ou indiretamente à instituição educacional [...]”, nesse contexto, verifica-se que ele não contempla apenas as pessoas e atividades que se encontram no interior das instituições escolares, englobando, também, instituições de educação não formal, como é o caso dos museus (foco principal desta tese), que têm potencial para contribuir com o processo educacional escolar.

Casali ainda destaca características advindas do currículo oculto, ao descrever que o currículo “[...] inclui vivências subjetivas e sociais, conhecimentos e atividades”. Nesse trecho, pode-se verificar que o citado termo não está preso às determinações advindas do currículo prescrito. Sobre esse assunto, Sacristán e Gómez (2000) destacam que “O que importa não é o que se diz que se faz, mas o que verdadeiramente se faz; o significado real do

currículo não é o plano ordenado, seqüenciado, [...] mas a prática real que determina a experiência de aprendizagem dos mesmos” (p. 133).

Apesar da existência de diversas conceituações a respeito do termo em questão, Sacristán e Gómez (2000) consideram que em qualquer uma delas deve ser levado em consideração quatro itens, a saber:

Primeiro: o estudo do currículo deve servir para oferecer uma visão da cultura que

se dá nas escolas, em sua dimensão oculta e manifesta, levando em conta as condições em que se desenvolve.

Segundo: trata-se de um projeto que só pode ser entendido como um processo

historicamente condicionado, pertencente a uma sociedade, selecionado de acordo com as forças dominantes nela, mas não apenas com capacidade de reproduzir, mas também de incidir nessa mesma sociedade.

Terceiro: o currículo é um campo no qual interagem idéias e práticas

reciprocamente.

Quarto: como projeto cultural elaborado, condiciona a profissionalização do docente

e é preciso vê-lo como uma pauta com diferente grau de flexibilidade para que os professores/as intervenham nele. (p. 148)

De acordo com os aspectos destacados acima, pelo autor, considera-se que o currículo é um projeto cultural elaborado que permite criar sujeitos que sejam agentes transformadores da sociedade, ressaltando a importância da cultura tanto na formação discente quanto na profissionalização docente. Ademais, o autor destaca a importância do professor como agente de transformação do currículo, pois constitui um dos elementos claros do cenário no qual transcorre a concretização da prática social.

Destacando a importância da visão de cultura no currículo, Santos e Casali (2009) defendem que currículo e cultura são elementos inseparáveis. Para esses autores, tanto a teoria educacional tradicional quanto a teoria crítica veem nesse “[...] uma forma institucionalizada de transmitir a cultura de uma sociedade. Sem esquecer que, nesse caso, há um envolvimento político, pois o currículo, como a educação, está ligado à política cultural” (p. 209-210).

Como pode ser observado, também os autores Sacristán e Gómez (2000), Moreira e Silva (2002) e Almeida e Valente (2011) concordam que o currículo é uma práxis, que somente pode ser compreendida como um processo que está condicionado aos aspectos social, cultural, histórico e prático.

Na visão de Almeida (2011) o currículo é “um espaço intencionalmente construído para gerar ocasiões de aprendizagem. Ele organiza a vida do aluno e do professor, de tal maneira que naqueles espaços e naqueles tempos ele tenha contato com os desafios da vida” (p. 1). Se o citado termo, como descrito por Almeida (2011), contempla o espaço e o tempo de

uma determinada sociedade, pode-se deduzir desta maneira que o museu é uma instituição importante para a fortalecimento das aprendizagens e vivências curriculares, pois ele é o lócus em que uma determinada cultura é representada, como instituição rica de símbolos e ícones que retomam a história de um povo em seus espaços e tempos. Além de congregar um acervo cultural que permite a professores e alunos manterem um diálogo com os conteúdos escolares que aprendem na escola, há de se considerar também que no museu há uma riqueza de linguagens – pintura, escultura, fotografias etc –, mas que se apresentam numa perspectiva mais orgânica em relação ao ambiente escolar. Essa possibilidade de comunicar e/ou aprender fazendo o uso de diferentes linguagens é uma especificidade do espaço museal ao qual a escola pode se aliar.

Mas qual a relação existente entre o museu e a escola? Na escola dispomos de um currículo, diga-se o elemento centralizador no qual a escola organiza as atividades e os conhecimentos que são necessários para a formação dos alunos, em geral apoiados em programas com bases nacionais. A relação entre o que se aprende dentro ou fora da escola é recriada por um currículo que dá sentido ao vivido e ao pensado – e à cultura que o produz. Assim, o museu – enquanto espaço de aprendizagem – mantém relação com a escola através desse currículo. E é esse que poderá designar no percurso escolar a marca de uma determinada cultura quando faz as suas escolhas determinando o que, como e porque se aprende determinado conhecimento.

O acesso a ambientes de difusão do conhecimento permite o aprofundamento das temáticas desenvolvidas na sala de aula. O museu, enquanto espaço estético de interação audiovisual e tátil, possibilita a observação, a contemplação e o contato com objetos culturais que fazem parte da identidade de um, ou de vários povos. Como salienta Sacristan (2000), “O currículo vem a ser um conjunto temático abordável interdisciplinarmente, que serve de núcleo de aproximação para outros muitos conhecimentos e contribuições sobre a educação.” (p. 29). De acordo com essa descrição, é possível perceber que a interdisciplinaridade já é uma realidade no discurso de estudiosos da área de currículo.

A interdisciplinaridade é um conceito que tem se tornado importante nos ambientes escolares e apresenta-se como uma forma de fazer com que as visitas aos museus tenham um propósito educativo e possam fazer parte de um objetivo maior da instituição escolar. Dessa forma, pode englobar as disciplinas presentes no currículo da escola, fazendo a relação entre o que o estudante aprende na sala de aula e a mostra do museu. De acordo com Luck (1994), a interdisciplinaridade é descrita como:

[...] o processo que envolve a integração e engajamento de educadores, num trabalho conjunto, de interação das disciplinas do currículo escolar entre si e com a realidade, de modo a superar a fragmentação do ensino, objetivando a formação integral dos alunos, a fim de que possam exercer criticamente a cidadania, mediante uma visão global de mundo a serem capazes de enfrentar os problemas complexos, amplos e globais da realidade atual (p. 64).

Libâneo (2002) destaca que essa interação entre as disciplinas não significa fundi-las, criando uma disciplina global, mas sim “[...] estabelecer conexões, convergências, pontes, relações de complementaridade, entre as disciplinas, em função de um projeto formativo dos alunos” (p. 39). Essas ações têm como propósito evitar a fragmentação do conhecimento, através de um maior diálogo entre as disciplinas presentes no currículo.

O museu, embora não seja um espaço educacional sistematizado como a escola, na qual os conhecimentos sejam organizados sob a forma de disciplina, é uma instituição por excelência interdisciplinar, pois possibilita aprendizagens e vivências com conceitos das mais diversas áreas de conhecimento. Tanto as relações de complementaridade entre os conhecimentos, citadas por Libâneo (2002), quanto as interações entre as disciplinas e a realidade, apontadas por Luck (1994), são aspectos que podem ser veiculados na prática escolar através de um projeto que contemple o museu como um espaço dialógico de aprendizagem.

Por fim, é por meio do currículo que é possível estabelecer um relacionamento entre a experiência escolar e os elementos que são exteriores à escola, permitindo que a cultura a ser mediada aos alunos não fique restrita aos conhecimentos e práticas desenvolvidas no contexto da sala de aula, mas se amplie à medida que sejam explorados os ambientes de educação não formal, no nosso caso de estudo, os museus.

Dentro da proposta de discussão do museu enquanto espaço de aprendizagem, a seguir tratar-se-á das origens e das definições inerentes a essa instituição milenar.

CAPÍTULO 2 – MUSEU: DO GABINETE DE CURIOSIDADES AO ESPAÇO