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3. AS ANÁLISES

3.7. Não sei porque os tetéus (1974)

1 Não sei porquê os tetéus gritam tanto esta noite... 2 Não serão talvez nem mesmo os tetéus.

3 Porém minha alma está tão cheia de delírios 4 Que faz um susto enorme dentro do meu ser. 5 Estás imóvel.

6 És feito uma praia...

7 Talvez esteja dormindo, não sei. 8 Mas eu vibro cheínho de delírios,

9 Os tetéus gritam tanto em meus ouvidos, 10 Acorda! ergue ao menos o braço dos seios! 11 Apaga o grito dos tetéus!

3.7.1. Análise poética

v. Poema VII Estrutura Rítmica Estrutura Métrica Estrofe Ictos Células Métricas

1 Não sei porquê os tetéus

gritam tanto esta noite 2 - 4 - 6 - 7 - 9 - 11 -13

-/ -/ -/ /- /-- /-

Quadra jâmbico + dátilo +

troqueu 2 Não serão talvez nem

mesmo os tetéus 3 - 5 - 7 - 10

--/ -/ -/ --/ anapesto + jâmbico

3 Porém minha alma está tão

cheia de delírios 2 - 4 - 6 - 8 - 12

-/ -/ -/ -/- --/- jâmbico + anfíbraco +

péon terceiro 4 Que faz um susto enorme

dentro do meu ser 2 - 4 - 6 - 8 - 12

-/ -/- /- /-- -/ jâmbico + anfíbraco + troqueu + dátilo 5 Estás imóvel 2 - 4 -/ -/- Terceto jâmbico + anfíbraco

6 És feito uma praia 2 - 5 -/-- /-

péon segundo + troqueu 7 Talvez estejas dormindo,

não sei 2 - 4 - 7 - 10

-/ -/- -/- -/ jâmbico + anfíbraco 8 Mas eu vibro cheínho de

delírios 3 - 6 - 10

--/- -/- --/-

Quadra péon terceiro + anfíbraco

9 Os tetéus gritam tanto em

meus ouvidos 3 – 4 – 6 – 8 – 10

--/ /- /- /- /- anapesto + troqueu 10 2 - 4 - 6 - 9 - 12 -/- /- /- -/- -/-

Acorda! ergue ao menos o

braço dos seios anfíbraco + troqueu 11 Apaga o grito dos tetéus 2 - 4 - 8

-/- /- --/ anfíbraco + troqueu +

anapesto Quadro 19 – Organograma do poema Não sei porquê os tetéus

O sétimo poema do ciclo difere de todos os outros anteriores, tanto no caráter do eu poético quanto nos aspectos imagéticos que ele exprime. Formado por duas quadras e um terceto, há uma aliteração com a consoante oclusiva dental surda [t] e a consoante vibrante alveolar sonora [r]. Ambas consoantes conferem ao poema certa dureza na sonoridade, ao mesmo tempo em que soa determinante, objetivo. Há um ostinato na parte do piano que reforça essas características, como será apresentado na análise musical.

As métricas principais são o jâmbico e o troqueu, ou seja, fraco/forte e forte/fraco (tabela 19), o que dá uma pulsação naturalmente binária, concordando assim com a escrita musical (/). Observo também que todos inícios dos versos deste poema são anacrústicos o que corresponde com a escrita musical, ou seja, as frases na linha do canto sempre se iniciam com um tempo fraco. No pequeno trecho a seguir podemos observar os v. 5 e 6.

Figura 50 – Anacruse no início dos v. 5 e 6; c. 20-22 na canção Não sei porquê os tetéus...

A prosódia é inteiramente de acordo com a métrica poética, ainda que em algumas passagens Guarnieri não faça elisões, como por exemplo no v. 1, c. 06 e 09:

gri-tam tan-to es-ta noi-te ([ɐ̃:ɐ̃]) em vez de gri-tam tan-toes-

ta noi-te ([ɐ̃ɐ̃.]), ou ainda nem mes-mo os te-téus

([ẽɪ’]), em vez de nem mes-moos te téus, ([ẽɪ’]) como exemplificados na fig. 50. Também é o caso do c. 40:

pela métrica a palavra tetéus143 é um ditongo e na canção o compositor trata como um hiato. Curiosamente, esta palavra aparece quatro vezes no texto e apenas na última ele dá este tratamento.

3.7.2. Análise musical

Fluxograma musical

Canção Forma Dinâmica Tempo Centricidade Tessitura vocal VII

A – c.01-16 B – 16-25 C – 26-41

p/mf/f



= 66

Com alegria Fá Dó3-Sol4

Quadro 20 – Fluxograma da canção Não sei porque os tetéus...

Esta canção, composta em 1974 (juntamente com Estou com medo... e Lá

Longe no sul...) é a mais rítmica de todo ciclo, com ostinatos que marcam as seções.

Nas seções A e B há um motivo de acompanhamento caracterizado por intervalos de terça e quinta se alternando na linha da m.d. (fig. 51) que se apresenta como um ostinato. A seção C apresenta um outro motivo de acompanhamento com uma rítmica bem característica (fig. 52) que cria um novo ostinato em ambas mãos do piano caracterizado, ainda, pela alternância de nonas menores, quintas diminutas, sétimas e acordes de quartas sobrepostas.

Figura 51 – Motivo de acompanhamento característico das seções A e B na canção Não sei porquê

os tetéus...

143 Tetéu é um pássaro também conhecido como Quero-quero, típico das Américas do Sul e Central.

Ave símbolo do Rio Grande do Sul, ela é envolta em lendas e cantigas populares. A palavra tetéu é também a onomatopeia para seu canto.

Figura 52 – Motivo de acompanhamento característico da seção C na canção Não sei porquê os

tetéus...

Conforme afirmei anteriormente, as seções foram divididas de acordo com a textura pianística. Embora as seções A e B tenham rítmicas semelhantes, a seção B se diferencia da sua anterior pelas abruptas interrupções no ostinato do piano e a ausência do ostinato quando a linha do canto surge, a partir do c. 20. Essas interrupções rítmicas estão associadas ao texto poético. Na seção C, há uma mudança na rítmica do piano mais evidente.

Do ponto de vista da linha do canto, a primeira seção é formada por três frases, a segunda por apenas uma e, finalmente, a terceira por três, conforme apresentadas a seguir:

Frase 1

Frase 2

Frase 1

Figura 54 – Frase da seção B da canção Não sei porquê os tetéus... – c. 20-25

Frase 1

Frase 2

Frase 3

Figura 55 – Frases da seção C da canção Não sei porquê os tetéus...– c. 28-32; 32-38; 39-41.

A canção tem sua centricidade em Fá. É possível notar, ainda, nas frases das figuras 53 e 55 notas da escala de fá menor entremeadas por meio de alterações cromáticas e a sua finalização em fá.

Em relação a dinâmica, as frases da linha do canto invariavelmente estão escritas em mf, com exceção do c. 33 no qual, na nota mais aguda da canção, surge um f. O piano por sua vez, começa em f e decresce para a entrada do canto. O f reaparece nos c. 20 e 36, dois momentos de ruptura de ambos ostinatos, tanto da seção B quanto da seção C.

3.7.3. Relação texto-música e aspectos interpretativos

O sétimo poema, ao contrário da calma do anterior, é enérgico e sugere certa impaciência do eu poético. Os gritos que são atribuídos ao barulho dos pássaros podem representar os pensamentos confusos e agastadiços do personagem: “Não serão talvez nem mesmo os tetéus/Porém minha alma está tão cheia de delírios/Que faz um susto enorme dentro do meu ser” (v. 2-4). Há uma interrupção no v. 5 “Estás imóvel”. Musicalmente há uma suspensão inesperada e o poeta descreve a negra que, parada tal qual uma praia, ignora uma vez mais os anseios do amante. Souza (2009) associa novamente o corpo da negra como aquela que representa a natureza: “identificada com a terra – “és feito uma praia”, a amada imóvel parece dormir com a mão sobre os seios, como as donas do Romantismo que, adormecidas, possibilitavam a realização sublimada do desejo interdito do eu lírico” (SOUZA, 2009, p. 117).

O piano, embora soe dissonante em relação à linha do canto, assume uma

persona. Entendo que o ostinato na seção A se assemelha ao “grito dos tetéus” (v.

11). A onomatopeia do pássaro é repetitiva e ligeiramente estridente, da mesma maneira que o compositor faz com os intervalos na m.d. Na seção B, o piano faz interferências bruscas deixando a voz, cuja linha neste ponto soa como recitativo, em maior evidência. Por fim, o ostinato da seção C cria um ambiente espectral, mesmo quando a linha do canto atinge a nota mais aguda (Sol4) com a palavra ‘acorda’ (v. 10; c. 33).

Observo, como já comentei anteriormente, que todas as frases da linha do canto iniciam-se com uma anacruse (fig. 53-55). A anacruse neste contexto pode remeter ao pássaro – Tetéu – representando assim o impulso para o voo. Sugiro na interpretação que se relacione o piano representando o amante/poeta e a linha do canto simbolizando a negra/natureza.