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3. AS ANÁLISES

3.2. Não sei se estou vivo (1968)

1. Não sei se estou vivo... 2. Estou morto.

3. Um vento morno que sou eu 4. Faz auras pernambucanas. 5. Rola rola132 sob as nuvens 6. O aroma das mangas. 7. Se escutam grilos, 8. Cricrido contínuo 9. Saindo dos vidros.

10. Eu me inundo de vossas riquezas! 11. Não sou mais eu!133

12. Que indiferença enorme...

3.2.1. Análise do poema

v. Poema Estrutura Rítmica Estrutura Métrica Estrofe 1 Não sei se estou vivo 2 - 5

-/ --/-

Dístico jâmbico + péon terceiro

2 Estou morto 2 - 3 -/ /-

jâmbico + troqueu 3 Um vento morno que sou eu 2 - 4 - 8 -/- /- --/

Septilha anfíbraco + troqueu +

anapesto 4 Faz auras pernambucanas 2 - 4 – 7 -/ -/ --/

jâmbico + anapesto 5 Rola rola sob as nuvens 1 - 3 – 7 /- /- --/-

troqueu + péon terceiro 6 O aroma das mangas 2 – 5 -/- -/-

anfíbraco

7 Se escutam grilos 2 - 4 -/- /-

anfíbraco + troqueu

8 Cricrido contínuo 2 - 5 -/- -/-

132 Nesta canção, Guarnieri difere do poema original, repetindo duas vezes a mais a palavra ‘rola’:

“Rola, rola, rola, rola sob as nuvens” (v. 5), além de separar com vírgulas.

anfíbraco 9 Saindo dos vidros. 2 - 5

-/- -/- anfíbraco 10 Eu me inundo de vossas riquezas 1 - 3 - 6 - 9 /- /- -/- -/- Dístico troqueu + anfíbraco

11 Não sou mais eu 2 - 4 -/ -/

jâmbico

12 Que indiferença enorme 4 - 6 ---/ -/- Monóstico péon quarto + anfíbraco

Quadro 7 – Organograma do poema Não sei se estou vivo...

Este poema é estruturado por quatro estrofes sendo dois dísticos, uma septilha134 e um monóstico. A rima é consonante e misturada nas duas primeiras estrofes. O poeta vale-se da uma aliteração com a consoante /r/ nas sílabas /gri/ e /cri/ /dro/ (v. 7 ‘grilo’, v. 8 ‘cricrido’, v. 9 ‘vidros’), uma onomatopeia135 para acentuar o barulho dos grilos, além do [m] e [n], cuja nasalização colabora com o efeito de murmúrio em todo o poema. Martins (2004) chama a atenção para a consoante /s/ que remete ao sussurro. (MARTINS, 2004, p. 110).

A métrica dominante é novamente o anfíbraco. Diferente da canção I, Guarnieri manteve a métrica poética em quase toda a canção, separando as vogais apenas em dois versos (fig. 14 e 15): oa-ro-ma ([ɐ]) para o a-ro-ma ([ɐ]) e Quein-di-fe-ren-ça ([ĩ.ẽá]) para Que-in-di-fe-ren-ça ([.ĩ.ẽá]). Há um deslocamento de prosódia no c. 17, v. 5 com a palavra ‘rola’, conforme a figura 13:

134 Estrofe de sete versos.

135 Entre 1929 e 1937, Mário de Andrade empenhara-se na escrita do Dicionário Musical Brasileiro, e,

paralelo a isso, sabe-se pelas cartas que o polígrafo mantinha um manuscrito intitulado Zoofonia. A ideia inicial era juntar estes dois trabalhos, e relacionar o som dos pássaros à questão musical. Interrompido entre os anos em que esteve à frente do Departamento de Cultura do Estado e seu posterior exílio no Rio de Janeiro, o projeto sobre o som dos animais nunca chegou a ser finalizado, tendo sido provavelmente coligido na série inacabada, O banquete. O som de pássaro aparecerá novamente na canção VII, Não sei porque os tetéus.

Figura 13 – Deslocamento da prosódia na canção Não sei si estou vivo... c. 17-18, v. 17

Figura 14 – Não elisão entre vogais na canção Não sei si estou vivo... c. 19-20, v. 6

Figura 15 – Parte declamada e separação entre as vogais na canção Não sei si estou vivo... c. 43, v. 12

No último verso da canção a escrita é para ser falada, e não cantada. Como será visto adiante, as hastes indicam a altura da entonação, ou seja, ao mesmo tempo que é livre, o compositor indica a inflexão que o cantor deve recitar.

3.2.2. Análise musical

Fluxograma musical

Canção Forma Dinâmica Tempo Centricidade Tessitura vocal II seção única pp/p/mf



= 72

Dengoso Mi/Si Dó#3-Sol4 Quadro 8 – Fluxograma da canção Não sei se estou vivo...

Composta em 1968, esta é a quarta canção segundo a ordem de composição indicada na tabela 1. No entanto, o compositor manteve o mesmo padrão rítmico da primeira canção, prezando assim pela unidade do ciclo.

A canção Não sei se estou vivo... tem uma única seção. Embora no c. 21 a m.d. repete a melodia do c. 1, acreditamos que não é possível classificar este c. como divisor de seção, pois a melodia do canto é contínua e sem repetições. Neste caso, entendemos a estrutura de maneira divergente da de Martins (2004) que em sua análise classificou esta canção como tendo duas seções: 1-24 e 25 a 43 (MARTINS, 2004, p. 111).

Logo nos primeiros compassos (c. 1-4, fig. 16), a canção inicia com o piano com uma melodia em graus conjuntos na m.d. enquanto na m.e. a célula rítmica recorrente cria um ostinato em quase toda canção – exceto os c. 24 e 36. Formada por uma introdução, uma única seção e Coda, a dinâmica piano está em quase toda extensão.

Figura 16 – Graus conjuntos na m.d. e célula rítmica recorrente na m.e. – c. 01-04

No aspecto melódico, podemos dizer que a canção tem a centricidade em Mi e Si. Se observarmos as frases na linha melódica do canto, verificamos que elas iniciam e/ou terminam com uma dessas duas notas citadas, exceto na frase 2, como podemos observar na tabela a seguir:

Frase 1 c. 05-08 Si/Mi Frase 2 c. 09-14 Ré/Sol Frase 3 c. 17-21 Mi/Si Frase 4 c. 24-28 Si/Mi Frase 5 c. 31-36 Sol#/Si Frase 6 c. 40-41 Si/Mi

Quadro 9 – Frases na linha melódica do canto

No piano há uma predominância dessas duas notas (Mi e Si), que, além de serem evidentes, juntam-se às notas Ré e Lá. Vejamos o primeiro acorde do c. 01, onde temos no baixo o Ré, em seguida o Lá e o Mi (fig. 16). Estas notas são recorrentes em toda canção, e na posição cordal elas formam um acorde de quartas sobrepostas: Ré-Lá-Mi-Si. Straus (2013) afirma que

notas que são expostas frequentemente, sustentadas em duração, colocadas em registro extremo, tocadas mais fortemente e acentuadas rítmica ou metricamente tendem a ter prioridade sobre notas que não têm aqueles atributos (STRAUS, 2013, p. 144).

Aqui, conjunto de notas Ré-Lá-Mi-Si podem formar um “centro referencial”, uma vez que ele é repetido ao longo de toda peça ora na m.e. ora na m.d., com figuras rítmicas e duração variadas. Para o/a cantor/a, identificar a centricidade de uma canção não tonal é um facilitador pois, além da relevância para a compreensão estrutural do todo no processo de memorização e no estudo, facilita o solfejo e consequentemente, auxilia na afinação.

Por fim, na canção Não sei se estou vivo... aparece pela primeira vez a fala rítmica no último compasso da canção (c. 43), no verso 12:

Figura 17 – Fala rítmica no final da canção Você é tão suave.. no c.43

Interessante observar que o compositor escreveu a rítmica apontando as alturas: as hastes não estão todas simetricamente colocadas, apenas indicando o ritmo do verso e sim indicando a entonação própria da fala em língua portuguesa falada no Brasil.

3.2.3. Relação texto-música e aspectos interpretativos

O texto poético mais uma vez é construído por metáforas. Se no primeiro poema o personagem descreve a Negra como uma rainha intocável, aqui a natureza é o mote para chegar à amada.

Logo após a frase ‘Estou morto’ (v. 2) o eu poético se coloca como o vento morno que vagueia sobre as nuvens (v. 4 e 5) e se mistura ao odor do ar: ‘O aroma das mangas’ (v. 6) ao mesmo tempo que indica ao leitor a localização geográfica, sugerindo o estado de Pernambuco136. O cromatismo na mão direita do piano (c. 10 e 11) comenta o vento cantado no v. 3 ‘um vento morno que sou eu’ (c. 9 e 10). Andrade usa a onomatopeia para representar o som dos insetos ‘cricrido’ (v. 8): o piano por sua vez marca o ritmo com o ostinato, sempre constante, na m.e. Nesta sequência de metáforas podemos dizer que Mário de Andrade se apropria do espaço real para construir sua persona. Na interpretação de Grillo (2016), o eu poético vagarosamente mistura-se aos aromas e sons dos insetos para então entregar-se ao objeto amado ‘não sou mais eu’ (v. 11), interligando então ao próximo poema ‘Você é tão suave’.

136 Em 1928 Mário de Andrade empreendeu uma viagem ao Norte e Nordeste do Brasil. No estado de