• Nenhum resultado encontrado

1.1. Aids – determinações sociais

1.1.2. Aids: marcas de sexismo e racismo

1.1.2.1. O nó: classismo, racismo e sexismo

Esse ítem tem como objetivo explicar conceitos e tensões políticas nos usos dos conceitos. Desta forma, procuramos posicionar a tese inicialmente explicitando que os conceitos de gênero, classe, ―raças8‖, sexualidade são aqui entendidos não

como formas de opressão separadas e cumulativas, mas que, pelo contrário, gênero é construído dentro e através das diferenças de ―raças‖, classe, vivência da sexualidade e vice-versa (LOVELL, 1996).

O debate sobre gênero tem um marco na Década da Mulher, instituída pela Organização das Nações Unidas - ONU (1975-1985), na qual o papel da mulher passa a ser considerado relevante para o desenvolvimento social e econômico nos países do chamado Terceiro Mundo.

Quartim de Moraes (2003/2004:95), resumidamente, informa que o que hoje chamamos de ´estudos de gênero` foi antecedido nos anos 1970-80, no Brasil, pelos ´estudos sobre as mulheres` enfocando políticas e contestações de e sobre as mulheres, com influência de correntes socialistas e marxistas do feminismo Europeu e de feministas de esquerda que atuavam na resistência à ditadura militar brasileira.

Nos anos 1990, gênero passa a ser central para o campo ético e teórico feminista, ao ampliar o debate com enfoque nas relações sociais. Para muitas autoras dos estudos de gênero, adotar essa perspectiva também foi a possibilidade de novos olhares sobre as disputas políticas no feminismo.

Contudo, as tendências recentes dos estudos de gênero apontam os riscos e limites dessa abordagem que não é muito precisa: geralmente, sistema de gênero é usado muitas vezes como sinônimo de patriarcado. Contudo, há vários textos nos quais as distinções entre os dois usos são devidas mais a um posicionamento

8

De acordo com as linhas teóricas que afirmam que raça é um conceito construído socialmente, e que só existe uma raça que é a humana. Nesta tese, será usada a expressão racismo ou ―raças‖ que é referente às desigualdades provenientes do uso social da expressão raça para definir a inferioridade e superiorioridade de grupos populacionais. Os grupos discriminados e marginalizados pelo racismo são identificados pela cor da pele ou traços fenotípicos (COSTA, 2002).

político que se deseja afirmar do que a uma necessidade imposta por esclarecimento teórico. É possível fazer a seguinte analogia: o sistema é patriarcal e as relações que o estruturam e dinamizam são de dominação de gênero, assim como o sistema é capitalista e as relações que o estruturam e dinamizam são de classe.

Mary Castro (2000:100) analisa que o conceito de gênero ―sugere que, se as relações sociais são várias e se autocondicionam, então tanto classe como gênero, de per si, seriam referências insuficientes para darem conta do real, inclusive o real imaginado (ideologias)‖. Para essa autora, gênero seria um estruturante da totalidade social, evocando a formulação marxista de que a sociedade não consiste de indivíduos, mas da totalidade de suas relações.

Desta forma, afirma Castro (2000), gênero permitiria sair da dicotomia produção e reprodução. Joan Scott (1992) vai além quando afirma que a recorrente repetição ´classe, raça e gênero` sugere uma paridade entre os três termos que não existe. A autora explica,

Enquanto a categoria de ―classe‖ está baseada na complexa teoria de Marx (e seus desenvolvimentos posteriores) sobre a determinação econômica e a mudança histórica, as categorias de ―raça‖ e ―gênero‖ não veiculam tais associações. Não há unanimidade entre os(as) que utilizam os conceitos de classe. Alguns(mas) pesquisadores(as) utilizam as noções de Weber, outros(as) utilizam a classe como uma fórmula heurística temporária. Além disso, [...] quando mencionamos a ―classe‖, trabalhamos com ou contra uma série de definições que, no caso do marxismo, implica uma idéia de causalidade econômica e uma visão do caminho pelo qual a história avançou dialeticamente. Não existe esse tipo de clareza ou coerência nem para a categoria de ―raça‖, nem para a de ―gênero‖. No caso de ―gênero‖, o seu uso comporta um elenco tanto de posições teóricas, quanto de simples referências descritivas às relações entre os sexos (SCOTT, 1992:12).

De forma sintética, a partir de Castro (2000) e Garretas (1994), apontaremos os principais conceitos que informam as diferentes abordagens sobre gênero:

 Gênero como distinto de sexo, e em polaridade entre a natureza, associada às mulheres, e a cultura, associada aos homens. Nessa abordagem a reprodução e a sexualidade se constroem culturalmente, e a ação das mulheres faz parte dos processos de mudanças sociais. Essa oposição natureza/cultura implica na subordinação das mulheres pelos homens.

 Gênero como elemento constituinte da organização social, cuja classe e hierarquias sociais são subjacentes. Ou seja, homens e mulheres ocupam posições distintas, a partir de um sistema simbólico que define atitudes, valores e comportamentos sociais. O predomínio do masculino sobre o feminino encontra suas raízes na ordem patriarcal, que impõe poder e autoridade dos homens, perpetuando a subordinação das mulheres. Nesse enfoque, mesmo que as mulheres tenham bastante poder e influência, estes nunca estão culturalmente legitimados.

 Gênero definido como identidade feminina e masculina desde o momento do nascimento; seus conteúdos identitários são transmitidos através da socialização. Nesse enfoque, há estudos que procuram explicar as diferentes identidades pelo biológico, pelas diferenças hormonais entre os dois sexos.

 Gênero como substituto de ―mulheres‖ utilizado para explicar que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens. Homens-mulheres não são percebidos como esferas separadas, os dois sexos são relacionados. Mas é igualmente utilizado para designar as relações sociais entre os sexos e que homens e mulheres têm papéis próprios na construção social.

Analisando o conceito de gênero, e concordando com Castro (2000), no capitalismo contemporâneo gênero é uma concepção que foi congelada ou, poder- se-ia dizer, capturada, minimizando o sentido político feminista às relações de poder subjacentes às relações sociais.

[...] reduzido a termo de posição, e, como tal, é peça chave no investimento das agências internacionais de apoio a um sistema de organizações não governamentais que lidariam com direitos das mulheres, sem subverter, ao contrário, o edifício de relações sociais que se realizam no capitalismo e seus motores como hierarquia, competição e apropriação privada em proveito de alguns (CASTRO, 2000:101).

Castro, (2000:101) analisa que a partir do final dos anos 1990 e iniciando os anos 2000, gênero passa a ser orientação de políticas transversais ou áreas específicas em governos da maioria dos países signatários das Conferências das Nações Unidas. Nessa perspectiva surgiram abordagens e ferramentas para diagnosticar as desigualdades ou iniqüidades de gênero e formular respostas de

impactos nacionais, ou seja, a abordagem de gênero passa a ser um conceito central para a definição de estratégias e políticas relacionadas à condição feminina.

Assumimos como conceito orientador da tese a formulação de Scott (1992): gênero é uma categoria de análise que enfoca as relações sociais de poder, que extrapola a relação entre homens e mulheres. Assim, a abordagem de gênero amplia a explicação sobre as desigualdades entre as mulheres e os homens. As disputas relacionadas à abordagem de gênero politizaram um campo de atuação do feminismo, no qual as mulheres passaram à condição de sujeitos políticos, a partir da diversidade de pertencimentos sociais, políticos, econômicos e de suas correspondentes demandas específicas.

Em relação à questão racial, Sérgio Costa (2002) conceitua que as ―raças‖ são uma construção social que trata das identidades sociais no campo da cultura simbólica. O autor afirma que raça não tem, no âmbito do campo dos estudos raciais no Brasil, um estatuto biológico, ou seja, as raças não são um fato do mundo físico, elas existem, contudo, de modo pleno, no mundo social. Por decorrência, o racismo é entendido como uma forma bastante específica de 'naturalizar' a vida social, isto é, de explicar diferenças pessoais, sociais e culturais a partir de diferenças tomadas como naturais.

Para Werneck & Lopes (2004), o racismo opera, basicamente, por meio de duas lógicas: a desigualdade que inferioriza e a diferenciação.

Na primeira, ele inscreve os grupos racializados na teia das relações sociais, concedendo-lhes um lugar de inferioridade, desvalorização e menosprezo social. Na segunda, os grupos racializados são percebidos como uma ameaça que deve ser afastada, não lhes sendo admitido qualquer lugar no sistema social. Corresponde a um desejo de rejeição, de exclusão, de distanciamento e, nas situações extremas, de expulsão ou destruição, [...] nesse caso, o outro é considerado poluente, como um corpo estranho, ameaçador da homogeneidade social e dos valores identitários do nós (WERNECK & LOPES, 2004:12).

As autoras citam que o movimento negro criou o conceito de Racismo Institucional que pode ser descrito como os trilhos (a estrutura, as decisões a priori) a partir dos quais os diferentes destinos e caminhos (as políticas e as ações) são desenvolvidos. Werneck & Lopes (2004) nos chamam a atenção de que ao longo de

todos os anos de vigência do regime escravista, a população negra, afro-brasileira teve que enfrentar altas taxas de mortalidade infantil, materna e de adultos; epidemias; violência; traumas físicos e psicológicos.

Ou, falando de outra forma: as mulheres negras, como sujeitos identitários e políticos, são resultado de uma articulação de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das condições adversas estabelecidas pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expropriação colonial e da modernidade racializada e racista em que vivemos (Werneck & Lopes 2004:14).

Nesse contexto, Sueli Carneiro (2003) analisa que o combate ao racismo torna-se uma prioridade política para as mulheres negras, a partir da consciência da opressão racial. Já que o racismo define desigualdades econômicas e sociais e mantém negras e negros em condições subalternas.

Essa necessidade premente de articular o racismo às questões mais amplas das mulheres encontra guarida histórica, pois a ―variável‖ racial produziu gêneros subalternizados, tanto no que toca a uma identidade feminina estigmatizada (das mulheres negras), como as masculinidades subalternizadas (dos homens negros) com prestígio inferior ao do gênero

feminino do grupo racialmente dominante (das mulheres brancas)

(CARNEIRO, 2003:32).

Nas últimas décadas, as feministas negras, assim como as feministas lésbicas e as dos países do hemisfério Sul, têm criticado sistematicamente a hegemonia do pensamento feminista formulado por mulheres brancas, de classe média, heterossexuais, europeias e norte-americanas. Acusam-nas de repetir os erros dos homens ao identificarem-se, elas mesmas, como sendo parâmetro do conjunto das mulheres. Tais críticas começam a ser reconhecidas pelas diversas correntes do feminismo:

Esta tese se referencia na posição política de Sueli Carneiro (2003), que acredita serem as questões racial e de gênero as lutas mais justas que se tem a travar no feminismo

[...] porque encerram contradições que não são transitórias, que não são conjunturais, porque dizem respeito a estigmas e preconceitos que atingem a essencialidade de um ser humano [...] Minha utopia consiste hoje em

buscar um atalho entre a negritude redutora da dimensão humana e a universalidade ocidental hegemônica que anula a diversidade (CARNEIRO, 2003:31).

No sistema das relações sociais o racismo, classismo e sexismo estão introjetados nas várias dimensões e dinâmicas da vida. Apreender essas múltiplas determinações nos leva a incluir o debate sobre sexualidade. Esta abordagem seguirá os pontos abordados por Rosalind Petchesky (2008), cuja análise aponta para alguns caminhos teóricos.

A sexualidade não é reduzida a uma parte do corpo ou a um impulso; deve ser entendida como parte integral de uma matriz de forças sociais, econômicas, culturais e relacionais; é construída mais que concedida. A autora afirma que a dualidade sexo-gênero tem sido sustentada durante anos pelos estudos sobre as mulheres e a literatura sobre a sexologia, isto é, a idéia de distinguir claramente entre ―sexo‖ como impulso biológico (genético, hormonal, anatômico, psiquico) e ―gênero‖ como conduta social e relações de poder subjacentes ao sexo.

O sexo é sempre algo político e sua politização envolve a contínua intenção de estabelecer limites entre sexo ―bom‖ e ―mal‖ baseado em ―hierarquias de valor sexual‖ na religião, na medicina, nas políticas públicas e na cultura popular. Estas hierarquias ―funcionam da mesma maneira que os sistemas ideológicos de racismo, etnocentrismo e chauvinismo religioso. Racionalizam o bem-estar dos sexualmente favorecidos e a adversidade da plebe sexual (PETCHESKY et al, 2008:8).

A autora aponta que a conduta sexual é diferente da orientação ou desejo sexual, assim como da identidade sexual. Todas essas são diferentes da conduta de gênero, da orientação ou da identidade (subjetividade de gênero). Tais conceituações sobre a sexualidade põem por terra a dualidade ―natureza e cultura‖ e o biodeterminismo sobre a sexualidade, assim como sobre gênero. Consideram as sexualidades complexas, que se transformam e se desenvolvem sempre dentro de um sistema social (PETCHESKY et al, 2008).

Esse campo político-conceitual põe luzes para as análises subsequentes. O avanço da epidemia da Aids em mulheres e na população das regiões mais pobres

no Brasil nos faz refletir sobre os significados da vulnerabilidade das mulheres a partir das relações sociais determinadas pelo racismo, classismo e sexismo.