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1.1. Aids – determinações sociais

1.1.3. Vulnerabilidade das mulheres para a infecção

infecção do HIV e Aids

Dados da UNAIDS (2008) informam que diante de situações de pobreza e desigualdades de poder, as mulheres estão mais expostas a viver violência sexual e doméstica, sendo esta apontada como geradora de grande vulnerabilidade para a infecção das mulheres com o HIV. Tais condições constituem limites para que as mulheres procurem ajuda e tenham acesso a serviços de saúde especializados.

No Brasil, o Plano Nacional de Combate à Feminização da Aids (2007:) aponta também que a violência – e mesmo o medo de sofrer violência – impede que muitas mulheres e meninas tomem conhecimento de/ou informem seu status de soropositividade para HIV, ou mesmo procurem serviços de saúde especializados. Pesquisas internacionais demonstram que a violência baseada nas desigualdades de gênero afasta as mulheres de serviços educativos/preventivos e de aconselhamento em saúde que poderiam orientá-las para a prevenção e para uma vida saudável com HIV/ Aids.

É possível observar na história de Josefa a tensão e a violência em um casamento permeado pelas desigualdades das relações de gênero:

O meu marido ficou comigo, mas a nossa relação era muito difícil e acabamos por não dormir juntos. Durante os oito anos em que ficamos juntos apenas dois eram anos felizes. Ele bebia cada vez mais e ficava agressivo, tanto fisicamente como verbalmente. Eu o enfrentava. Eu não era de correr. [...]. Mas se esta situação não acabasse, iria ter uma tragédia. Portanto, tinha que me separar dele. [...] Foi meu marido que me infectou.[...] A separação não era fácil porque ele não quis sair da casa. Por que é que não me separei dele antes? Tinha vontade, mesmo antes que sabia que era positiva, mas tinha vergonha. Pensei que ia sofrer de discriminação porque a gente iria separar depois de um período tão curto.

Também tinha medo da minha família que não achava a separação uma boa coisa. Mas insisti. Eu vivia com ele tanto tempo porque tinha medo da comunidade dizer ―por que ela desistiu tão rápido?‖ [...] Sem sexo ele ficava muito mais violento. A minha família ficava preocupada. As vizinhas não acreditavam que não dormíamos juntos, porque achavam impossível uma mulher viver tanto tempo com um homem sem fazer sexo e sem ele reagir. Normalmente, quando uma coisa destas acontece, os homens ficam muito mais violentos. Elas começam a dizer: ―você tem outro homem.‖ Os amigos gozavam dele. Foi muito difícil separar dele.[...] (HEAD & ROCHA, 2011:21)

Na última década, o aumento do número de casos de Aids em mulheres, e entre mulheres pobres, permitiu observar que desigualdades de classe, gênero e raça, incidem sobre a sexualidade e modos de vida. Tais interações estão implicadas no avanço da epidemia no Brasil. Como afirma Werneck (2003), a discussão das desigualdades que atingem as mulheres negras no Brasil comumente aponta para a presença de uma tríplice discriminação: o fato de ser mulher, de ser negra e de ser pobre.

O pesquisador Francisco Inácio Bastos (2001) reconhece agravantes na situação das mulheres negras no âmbito da saúde, em geral, e da saúde reprodutiva, em particular, e ressalta outras vulnerabilidades sociais.

A população negra brasileira está mais sujeita às conseqüências adversas da violência estrutural, mais presentes nas comunidades mais pobres e/ou faveladas, com conseqüências negativas sobre a continuidade de projetos de prevenção nessas comunidades (BASTOS, 2001:15).

Nesse contexto, as respostas até então elaboradas para coibir o avanço da Aids parecem limitadas. A pesquisadora Werneck (2003) chama a atenção para o fato de que, embora o Brasil tenha um dos melhores programas de prevenção e tratamento de HIV/Aids do mundo, ―este nível de excelência — que, diga-se de passagem, foi em grande parte construído pelas organizações não governamentais — não tem sido suficiente para impedir a feminização da epidemia; e mais, a feminização negrófila, ou seja, sua chegada às mulheres negras‖ (WERNECK, 2003:13).

No tocante à questão racial, as mulheres que vivem com Aids enfrentam a perversa associação entre as desigualdades de classe e as dimensões relacionadas

à autoestima, ao preconceito no serviço de saúde, às desigualdade nas relações interraciais. Tais pontos são selenciados nas estratégias nacionais para o enfrentamento da Aids.

A vulnerabilidade das mulheres à infecção do HIV, em que pesem determinações biológicas9, expõe um importante fator que é a combinação de sexismo e racismo. Em situações de desigualdade as negociações para prevenção tornam-se mais difíceis.

[...] aliados a situações freqüentemente vivenciadas pelas mulheres, como o sexo não consensual, as relações sexuais desprotegidas por falta de poder de negociação do preservativo e os comportamentos de risco adotados por seus parceiros, contribuem para aumentar a vulnerabilidade das mulheres ao HIV (VILLELA & SANEMATSU, 2003:20).

No contexto da Aids, o conceito de vulnerabilidade se aproxima do conceito de saúde presente nas políticas nacionais. Foi formulado em 1992, pelo cientista Jonathan Mann. Contrariamente às noções de ―grupos de risco‖ ou de ―risco individual‖ e ―comportamento de risco‖, concebidos pela epidemiologia, a ideia de vulnerabilidade buscava complexificar o entendimento sobre a epidemia da Aids (AYRES, 2002).

A noção de vulnerabilidade, formulada no contexto da Aids, estabelecia uma relação entre ética, política e direitos como campos fundamentais para coibir o crescimento da epidemia. Sua aplicação conectava três dimensões: social, referente às condições de vida, numa perspectiva de direitos humanos; programática, relativa à efetivação de políticas, individual, relacionada a comportamentos individuais no meio social (MANN at al, 1993).

A ideia formulada sobre vulnerabilidade orienta muitos programas mundiais, apesar de se considerar internacionalmente ―diversas epidemias‖. Ao analisar os impactos da feminização da epidemia sob a ótica das relações de gênero-classe- racismo e sexualidade, observa-se que nessa combinação de fatores os impactos sobre as mulheres são semelhantes em várias partes do mundo.

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Alguns fatores biológicos são a maior área de exposição de mucosa com fragilidade para microfissuras no ato da penetração; as mulheres recebem maior quantidade de fluidos na relação heterossexual do que os homens recebem das mulheres (VILLELA & SANEMATSU, 2003).

Nos Estados Unidos as mulheres negras têm 13 vezes mais riscos de se infectarem do que mulheres brancas e nove vezes mais do que mulheres latinas, consideradas mestiças. Susser (2009) revela um estudo intitulado Left Behind: Black

America, A Neglected Priority in the Global Aids Edidemic, realizado em 2008, em

que a Aids é a principal causa de morte de mulheres entre os 25 e 35 anos de idade. A autora aponta possíveis razões relacionadas ao estigma de cor e à subordinação de gênero combinadas com inadequadas estruturas das respostas governamentais.

No continente africano, inicialmente, a epidemia cresceu silenciosa, sem serem investigados os sinais de sua proliferação. Nos anos 1980, os casos entre homens e mulheres eram equânimes, explicados pelas evidências de que a epidemia surge na África Central, anterior a 1975. A epidemia no continente passa a ter importância depois que afeta os Estados Unidos e o oeste da Europa. Só então a epidemia é percebida na África, o que não significou observar suas determinações e investir esforços de controlar a epidemia precocemente no continente (SUSSER, 2009).

Desta forma, pesquisadoras/es atribuem que estudos sobre a Aids, tanto no mapeamento da epidemia, como no significado da mortalidade, são permeados pelo enfoque ocidental, branco, de classe média, masculina, gay. Da mesma maneira, a perspectiva da agenda do movimento feminista é heteronormativa, adultocêntrica e focada na reprodução. O que pode explicar o distanciamento de pesquisas e ausência de respostas condizentes com as necessidades das mulheres e da população negra (PARKER, 2002; SUSSER, 2009; ROCHA, 2011).

O avanço das políticas de enfrentamento da Aids, que conseguiu frear o crescimento da epidemia na população de classe média e gay, em muitas partes do mundo, pode ter dificultado os critérios de diagnóstico para as mulheres, limitando o acesso a tratamento. Nessa direção, pesquisadoras e ativistas feministas e mulheres que vivem com HIV/ Aids em todo mundo lutam para que avancem pesquisas sobre as vulnerabilidades para o adoecimento e morte das mulheres. Exigem desde pesquisas sobre insumos preventivos controláveis pelas mulheres até sobre os sintomas da infecção entre estas.

É emblemático o silêncio acerca das mulheres lésbicas e Aids. É consenso entre pesquisadores que a transmissão do HIV/Aids é baixa entre lésbicas. Contudo, é sabido que sexo entre mulheres ainda é tratado com muito preconceito pela medicina e, portanto, estes dados podem estar relacionados a uma falta de conhecimento sobre as formas de risco e prevenção do HIV/Aids nesse segmento.

Por exemplo, pesquisa realizada no início dos anos 2000 com lésbicas norte- americanas notifica números consideráveis de casais lésbicas sorodiscordantes. Estudos na África do Sul apresentado pela instituição Triangle Project, em 2009, informa que as mulheres lésbicas negras estão mais expostas a sofrer estupro e se infectar pelo HIV do que mulheres brancas sulafricanas.

A sexualidade tem sido um dos espaços de extremo controle sobre as relações entre homens e mulheres, que adquire uma dimensão bem maior quando dirigido a relações entre pessoas do mesmo sexo, principalmente, entre lésbicas. Esse controle é exercido de diversas maneiras: desde a punição através da agressão direta à invisibilidade e dessexualização da relação amorosa entre mulheres.

Segundo informações da UNAIDS (2002), 98% da contaminação entre mulheres que fazem sexo com mulheres (MSM) decorrem do uso de drogas injetáveis e de sexo com homens sem proteção. No Brasil, temos notificados, do inicio da epidemia até 2003, 429 casos de lésbicas infectadas por HIV (ROCHA & DANTAS, 2003).

Desigualdades de gênero também podem ser observadas em relação ao uso das terapias antirretrovirais no âmbito da ciência e da produção industrial. Quando surgiram, as drogas antirretrovirais inicialmente eram testadas com os homens e, até hoje, muitos medicamentos têm dosagens usadas indistintamente para mulheres e homens (SUSSER, 2009 MSM).

As mulheres ativistas e cientistas interpretam que esses acontecimentos podem estar relacionados à lenta percepção da epidemia entre mulheres. Na suposição inicial, as mulheres não eram infectadas. Por sua vez, as mulheres não

estão orientando suas reinvidicações nessa direção e, rotineiramente, estão excluídas das pesquisas de controle da epidemia (SUSSER, 2009).

A adesão ao tratamento também é analisada por ativistas como um espaço revelador de desigualdades. Manter o tratamento é um desafio, pois significa tomar uma quantidade significativa de comprimidos ao longo do dia. Algumas drogas devem ser tomadas com líquidos ou comidas específicas, ou ser preservadas em geladeiras, o que sofre limitações em situação de pobreza. Manter essa rotina, muitas vezes requer privacidade. Isto se torna tanto mais difícil se no local do trabalho - em empresas ou no trabalho doméstico - não se sabe da condição do empregado.

Além de que, os efeitos colaterais, como a lipodistrofia10 que altera a distribuição de gordura no corpo, afeta a autoestima e, particularmente, impacta a autoimagem das mulheres, que são bombardeadas todos os dias pela ideia consumista do corpo esculpido como modelos publicitários. Os medicamentos também trazem efeitos colaterais como aumento de colesterol, diabetes, osteoporose, distúrbios hormonais e vasculares, dramáticos para as mulheres que já são susceptíveis a esses problemas de saúde mesmo sem o HIV/Aids. Esses vários fatores contribuem para que usuáros/as abandonem o tratamento.

[...] Eu nunca tive uma infecção durante estes dezesseis anos, salvo quando desisti de tomar os medicamentos. Não sei por que desisto. Acontece isso de vez em quando. Algo faz com que eu recomece outra vez. Eu volto a tomar os medicamentos quando a conta do CD4 fica baixa e a carga viral alta. Não estou tomando medicamentos neste momento. A minha carga viral está média, mas a conta do CD4 é muito baixa. Fiz um teste para ver quais os melhores medicamentos para mim (HEAD & ROCHA, 2011:22).

O estudo realizado pelo Instituto Patrícia Galvão (2003) informa que se sabe pouco sobre as diferenças de respostas aos medicamentos entre homens e mulheres.

No entanto, há diferenças no que se refere aos níveis sanguíneos da medicação, pois em geral as mulheres têm menos gordura que os homens, o que afeta o modo como os medicamentos circulam pelo organismo.

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Bastos (2006:93) informa que ―pacientes com Aids em uso de determinadas medicações apresentam, comumente, uma redistribuição de tecido gorduroso bastante peculiar e esteticamente desagradável [...] (com depósito de gordura sob forma de ‗giba de búfalo‘, na região superior do tronco, em paralelo à perda de massa gordurosa em outras regiões como a face)‖.

Apesar disso, os medicamentos são prescritos em doses-padrão [...] calculadas a partir da massa corporal média masculina (VILLELA & SANEMATSU, 2003:16).

Tais análises também podem ser percebidas nos estudos de Susser (2009: 23), ao afirmar que são ―dramáticas‖ as diferenças do conhecimento científico nos vários continentes. Exemplifica que as doenças oportunistas são absolutamente diferentes na África Subsaariana, EUA ou Europa. A autora informa que ―o resultado dos sintomas e manifestações do HIV/Aids variam com a cultura e geografia‖.

Os efeitos colaterais dos medicamentos quando associados às desigualdades de gênero em que vivem as mulheres, apontam para grandes desafios.

Mulheres HIV positivas sofrem discriminação, abandono e violência. O mesmo acontece com mulheres cujos parceiros ficam doentes ou morrem devido a doenças oportunistas relacionadas à Aids. Elas perdem seus lares, herança, posses, meios de subsistência e mesmo suas crianças (BRASIL, 2007:8).

O Dossiê Mulheres e Aids da Rede Feminista de Saúde (2002) revela que as desigualdades econômicas e de gênero são fatores que contribuem para o crescimento da Aids entre as mulheres. No espaço do trabalho o impacto da Aids é percebido diferentemente entre mulheres e homens. As mulheres dominam o setor informal, onde os empregos não são cobertos pelo seguro social, nem por quaisquer benefícios de saúde ocupacional. Há menos mulheres do que homens cobertos pela seguridade social ou por benefícios de saúde relacionados ao trabalho. Como recai sobre as mulheres o papel de cuidadoras, é mais provável que as mulheres com Aids interrompam seus trabalhos remunerados do que os homens.

Mesmo poder aquisitivo, mesma escolaridade e independência financeira não tiram as mulheres da vulnerabilidade à infecção, por conta das desigualdades de gênero e porque, segundo Barbosa (2002), Villela (2003) e Bastos (2001), as mulheres se percebem menos expostas ao risco, talvez pela entrada tardia na dinâmica da epidemia.

Desta forma, a política de enfrentamento da Aids, que estava orientada pelo conceito de vulnerabilidade, mesmo tendo avançado em relação à concepção

original de risco associado a atitudes individuais, se manteve relacionada às causas sociais e culturais da infecção. Tal concepção aproxima-se da idéia de determinação social adotada na saúde, que se refere à ação humana como promotora de adoecimentos e de recuperação de saúde. Entretanto, não assegura uma visão de totalidade de determinação social, que analisa os processos de saúde-doença inseridos nas relações de produção capitalista, suas contradições e repercussões na construção das relações sociais.

O conceito de vulnerabilidade passa a ser utilizado para explicar as várias dimensões da epidemia, e passa a ser aplicado para evidenciar as desigualdades em que vivem as mulheres. Ao incorporar o conceito de vulnerabilidade, o movimento feminista articulou a perspectiva de gênero como uma categoria de análise sobre as relações de poder que são estruturantes, e perpassam as dimensões culturais, sociais e políticas. As relações de desigualdade de gênero passaram a ser abordadas com centralidade para a formulação de políticas públicas, e passaram a ser um marco conceitual para os trabalhos das instituições, assim como da ação educativa e política das organizações sociais.