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2.2. Políticas sociais e o atual estágio do capitalismo

2.2.2. Os limites da integralidade

O conceito de integralidade é concebido no bojo de questionamentos sobre a racionalidade médica, que centraliza a doença na definição de práticas de saúde, no âmbito dos valores capitalistas voltados para a produtividade, que orientaram ações de saúde cada vez mais especializadas e individualizadas. A perspectiva da integralidade adotada no Sistema Único de Saúde no Brasil visa alterar as relações médico-paciente-serviços, permitindo que as necessidades de saúde sejam percebidas nas suas feições sócio-culturais. Estabelece assim a continuidade entre as ações de prevenção e de cura, e entre os vários níveis de complexidade na atenção à saúde. O conceito se refere ―a uma ação social que resulta da interação democrática entre atores no cotidiano de suas práticas na oferta do cuidado de saúde, nos diferentes níveis de atenção do sistema de saúde‖ (LUZ e PINHEIRO, 2003:17).

A integralidade é um princípio do SUS, juntamente com a universalidade e a equidade, como também é uma diretriz constitucional que se refere ao atendimento integral, com prioridade para a prevenção sem prejuízo da assistência. Contudo, o principal significado está relacionado à luta política de mudança do paradigma de saúde no Brasil. Os sentidos da integralidade apontados por Mattos (2001) estão relacionados ao movimento de medicina integral, contrário à biologização das necessidades de saúde das pessoas, à fragmentação das especialidades médicas, assim como à lógica medicamentosa e hospitalocêntrica dos sistemas privados de saúde que desconsideram as determinações sociais e a dimensão psicológica das pessoas. Assim como relaciona as demandas preventivas com as ações assistenciais.

Carvalho (2006) defende que é clara a definição sobre integralidade expressa na Constituição Federal, 1988. Assim como diz que o problema nas leis que regulamentam o SUS é o não cumprimento do ―desejado e prometido‖. O autor sitetiza:

A CF enuncia a integralidade da intervenção das ações e serviços de saúde. O Art. 198 diz: ―As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (...) atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo das assistenciais‖. No Art. 200, descrevem-se as ações de saúde, como vigilância sanitária, meio ambiente, saneamento, saúde do trabalhador etc. A Lei 8.080/90, que regulamenta o SUS, vai um pouquinho mais longe e profundo em seu Art. 7, II, quando diz que o SUS deve seguir as diretrizes acima e os seguintes princípios: ―Integralidade da assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema‖. No Art. 6, garante inclusão no campo de atuação do SUS: ―Assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica‖. A dimensão do que fazer da saúde, a abrangência da integralidade da ação está também no Art. 3, genericamente, quando declara os objetivos e, entre eles, coloca as ações de ―assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas‖ (CARVALHO, 2006:443).

Autores como Camargo Jr. (2004) analisam que o discurso sobre integralidade é originalmente propagado por organismos internacionais, ligado às propostas de atenção básica e promoção da saúde. E que essa noção surge de um vazio, da expressão da insatisfação com as práticas médicas que transformam serviços de saúde em mercadorias. Mas ressalta que a implementação da idéia de integralidade é permeada de limites relacionados à formação profissional, aos modelos biomédicos, fragmentados e hierarquizados, aos modelos que definem o que é um problema de saúde, e ao uso indiscriminado da tecnologia para a prevenção. Mas reafirma que a integralidade foi um ideal perseguido na formulação do SUS pelo seu sentido prático para mudanças sobre os processos de saúde- doença.

Carvalho (2006:16) também informa que a dimensão da integralidade também não é única, que ―o tudo tem duas dimensões: vertical e horizontal‖. A primeira dimensão, vertical, se refere ao ser humano, único e indivisível. A segunda dimensão, horizontal, se refere à ação de saúde em todos os níveis e em todos os aspectos bio-psico-social. Segundo o autor, ―incluindo órgãos e sistemas de maneira integrada e não-dicotomizada‖. Essa dimensão também se refere à promoção, proteção e recuperação da saúde, desde o nível ―primário ao quaternário‖.

A integralidade é um conceito considerado um marco na política pública de saúde pelo caráter inovador que encerrou em relação à concepção tradicional de saúde/doença, eminentemente concebida numa perspectiva medicalizante e hospitalocêntrica. Carvalho (2006) explica que a integralidade é ―o tudo‖, enquanto que a universalidade é ―o para todos‖ ambos os conceitos são fundamentais para efetivar o SUS. Contudo, o autor analisa que o ―para-todos é menos ameaçado do que o tudo”.

O tudo sofre ataque dos dois lados: de quem quer restringi-lo sob vários

aspectos e de quem quer turbiná-lo ao ponto do inexeqüível. Quando o Movimento da Reforma Sanitária pensou o sistema de saúde baseado na própria experiência e em sistemas de outros países, imaginou uma integralidade regulada. Nela se faria só o tudo que tivesse base científica devidamente evidenciada e que seguisse o padrão ético. Hoje, vemos vencer a busca de uma assistência à saúde turbinada pelos interesses econômico-financeiros, decidindo o que se vai fazer no SUS sem critério nem científico, nem ético. Há turbinagem em procedimentos, medicamentos, exames diagnósticos e terapias. Os governos conseguem a cada dia trincar e truncar o conceito da integralidade. Ora usam conceitos restritivos desvinculando o financiamento de atividades-fim das atividades- meio em saúde, sendo que aquelas dependem destas; ora consideram ações de saúde os condicionantes e determinantes da saúde como bolsa- família, bolsa-alimentação, saneamento (CARVALHO, 2006:445).

A integralidade é considerada por vários autores do Movimento de Reforma Sanitária como um princípio ético, civilizatório e que expressa a correlação de forças da conjuntura brasileira. Nessa perspectiva, é resultante de disputas por hegemonia numa relação dialética entre sociedade civil e Estado, refletida também em vozes discordantes dentro do mesmo movimento. Salientando que muitos intelectuais orgânicos da formulação do SUS tornaram-se gestores das políticas públicas dos governos subsequentes nas mais variadas matizes políticas. Observam-se as diferentes posições, a exemplo da entrevista do sanitarista Goulart a Revista Radis (2006),

[...] a integralidade tem sido ―confundida‖ com universalidade e considerada ―sinônimo‖ de se oferecer tudo a todos. ―Sejamos realistas: nenhum sistema mundial de saúde oferece benefícios de tal ordem‖. [...] essa dimensão dependerá dos recursos. ―Isto não é regra neoliberal, o FMI ou de equipe econômica; é questão aritmética‖. O problema da exclusão, [...] merece tratamento diferenciado e, para isso, talvez seja preciso romper com o tudo para todos, substituindo-o por mais para quem precisa mais (RADIS, 2006:6).

Para Sarah Escorel (2006) na mesma revista citada diz que o problema não está no projeto do SUS, mas nos governos que não efetivam as políticas sociais,

Estamos na direção certa e o norte são os princípios e as diretrizes do sistema, que não estão implementados integralmente, em sua totalidade, em sua radicalidade, [...] a realidade não é satisfatória, não porque a legislação esteja com pontos equivocados, mas porque sua implementação ficou incompleta. Daí o SUS pra valer, não meio SUS — ah, agora vamos privatizar, cobrar de quem pode, nos concentrar na parcela pobre... — não! Somos até radicalmente contrários à proposta do governo de fazer plano de seguro-saúde para o funcionalismo (RADIS, 2006:8).

Mattos (2001), analisando a construção da Integralidade, que é considerada um ideal de uma sociedade mais justa e solidária, ressalta que em 1987, antes da promulgação do SUS na Constituição brasileira, o Banco Mundial publicou um texto, como ressalta o autor, ―provocativo‖ desaconselhando que países em desenvolvimento adotassem direitos sociais com serviços gratuitos para todos, dizendo que essa abordagem geralmente não funciona.

O contraste entre o avanço da perspectiva de direitos universais com serviços públicos, adotados nos anos de 1990 pelo SUS e a perspectiva de enxugamento do Estado realizada pelas Instituições Financeiras Multilaterais (IFM) e outros acordos econômicos, podem explicar os limites da efetivação do SUS (MATTOS, 2001).

Marcado por contradições e disputas, o SUS é implantado considerando recomendações do projeto sanitarista, particularmente, enfocando a Atenção Básica que é considerada a garantidora da integralidade. Entretanto, no modelo de gestão adotado nos anos 1990/ 2000, através das NOBS e NOAS, a Atenção Básica passa a ser responsabilidade dos municípios através das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) e PSF, e se distancia dos preceitos fundantes e passa a ser focalizada no mínimo do atendimento básico. Não expressando a porta de entrada no sistema que garante a saúde em todos os níveis de atenção (MERHY, 1999).

Pesquisa realizada em 2004, intitulada Relações de Gênero no Programa Saúde da Família do Recife, analisa que prioritariamente os PSFs concentravam ações de prevenção e acompanhamento de gravidezes. A pesquisa também analisa que as visitas domiciliares são referidas por alguns/mas entrevistados/as como

invasão do Estado no interior das famílias. Também revela a recusa do atendimento por equipes do PSF, em caso das mulheres que estavam sendo violentadas e a discriminação dos usuários gays, lésbicas, etc, por algumas equipes do PSF. Destaca que as equipes entrevistadas demonstram julgamento moral sobre o comportamento de adolescentes e mulheres, com condutas disciplinadoras e autoritárias (SCHRAIBER, 2004).

A pesquisa citada traz luzes para analisarmos porque a Aids demorou a ser abordada no PSF. Revela as dificuldades das equipes de saúde para lidar com sexualidade e HIV/Aids. Outra explicação é que a Aids, que é considerada um problema de média e alta complexidade, demorou a ser incorporada como um problema da atenção básica. Analisando os documentos do Ministério da Saúde observa-se também que a referência para testagem, diagnóstico e tratamento foi formulada através de serviços especializados, a exemplo do caso da testagem que precisa de equipe treinada para o aconselhamento no pré-teste e pós-teste. Contudo, a prevenção - fornecimento de preservativo e ações educativas, deveriam constar nas ações do PSF, o que não foi constatado na pesquisa. Uma explicação pode ser porque estava sendo realizada em grande medida pelas organizações não governamentais, por pressão destas e como condicionalidade dos projetos do Ministério da Saúde e Banco Mundial.

O princípio de integralidade do SUS, não foi implantado conforme a proposta original do movimento de reforma sanitária, assim como também não foi realizada a proposta de saúde integral das mulheres. Constata-se nos documentos do Ministério da Saúde, nas décadas de 1990 e 2000 que as políticas para saúde das mulheres continuavam sendo implementadas dissociadas das políticas de controle da Aids, que também não se conectavam com a políticas de ação básica no Programa de Saúde da Família (PSF).