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3. PROCESSOS PSICOSSOCIAIS DA IDENTIDADE DOS

3.1 A CRISE IDENTITÁRIA DOS FIÉIS ANTES DA CONVERSÃO

3.1.2 O núcleo da construção de valores

Nas entrevistas, identificamos que o núcleo identitário subjacente à crise individual é a família. Num primeiro momento, na pesquisa de campo; depois, a configuração da unidade da tensão – a família. Se as pessoas foram até à IURD em momento de crise, de angústia, de desamparo, nada mais sensato e compreensível do que perceber que a família não foi capaz de corresponder a essas necessidades individuais.

O princípio básico, segundo Erikson (1968), para uma maturidade pessoal, para o desenvolvimento de um senso de identidade, é a confiança básica construída na relação com o grupo socializador – num primeiro momento, esse grupo é a família. Faz- se, então, a pergunta: quem dá as garantias básicas para a família?

Carvalho (2002) aponta que as expectativas em relação à família estão no imaginário coletivo, ainda impregnadas de idealizações, das quais a chamada família nuclear é um dos símbolos. Ana responsabiliza de forma indireta sua família pela vida que levava. Ela diz que seu pai bebia muito, às vezes queria bater na mãe e nos filhos.

Essa situação, afirma Ana, a levou a aprender a viver na rua, como uma forma de não enfrentar a realidade existente em casa. Ali, aprendeu a ser “independente” e, como ela mesma diz, a distanciar-se da família e a não ter apego pelas pessoas.

Esse é um sentimento que mais tarde Ana tem dificuldade de lidar. Existe o conflito com a família que ela constituiu a partir de suas próprias experiências, da assimilação do que é certo ou errado e do que ela pode fazer de fato, e a não- correspondência ao modelo tradicional de família. Essa situação provoca grande culpa em Ana.

A maior expectativa social é de que a família produza cuidados, proteção, aprendizado dos afetos, construção de identidade (saber quem é, a que grupo pertence) e vínculos relacionais de pertencimento, capazes de promover melhor qualidade de vida a seus membros e efetiva inclusão social na comunidade e na sociedade em que vivem, diz Carvalho (2002). Essa é a concepção de família construída socialmente.

No entanto, essas expectativas são potencialidades e não garantias. A família vive num dado contexto que pode ser fortalecedor ou esfacelador de suas possibilidades e potencialidades.

Não se pode deixar de analisar a própria situação do rebelde, quando um dos sujeitos da pesquisa fala sobre suas atitudes de agressão, de líder do fã clube do Pink Floyd. Em um primeiro momento, pode-se considerar o comportamento de Antonio apenas como o rebelde sem causa. Mais adiante, percebe-se o quanto de angústia ele apresentava na luta para manter o controle da situação. Porém, como ele mesmo diz:

Eu me sentia perdido naquilo tudo. Era revoltado com o sistema, percebia a desigualdade, mas não sabia explicar porque as coisas existiam, não sabia como o sistema funcionava. Eu era explosivo e chegava mesmo a quebrar as coisas, quebrava cadeiras... Meu pai entendia de política, de muitas coisas, mas ele não tinha sensibilidade para conversar comigo... Minha mãe trabalhava muito, os pais nunca sabem o que está acontecendo realmente na vida dos filhos (outubro de 2008).

Nesse relato, percebemos as dificuldades de um pai e de uma mãe que trabalham tentando alcançar algumas concepções ideais da sociedade, que querem dar conta financeiramente de sustentar a família. Expõe a situação da própria mulher em seu papel de mulher trabalhadora, mãe, esposa, e a dificuldade em lidar com os modelos tradicionais de mulher, mãe.

Expõe a fragilidade da família na sociedade capitalista de maneira geral. Expõe a própria sensação de abandono e desamparo por parte do filho que não compreende a ausência dos pais “É preciso que se evite a naturalização da família”, diz Carvalho (2002), deve-se compreendê-la como grupo social cujos movimentos de organização mantêm estreita relação com o contexto sociocultural.

Ao se cobrar da família essa garantia de confiança básica aos seus membros, às vezes nos esquecemos que as pessoas que as compõem fazem parte de uma mesma sociedade conflitiva, com as mesmas relações simbólicas, as mesmas relações com os meios de produção.

São esses conflitos, essas incapacidades de lidar com o que se consegue ser e o que a sociedade espera que a pessoa seja que desorienta as pessoas. É a incapacidade de lidar com a frustração, o sentimento de incompetência que é despejado todos os dias de forma implícita por todos os meios de comunicação e em todas as relações sociais.

Ora, os papéis sociais já estão definidos e ai de quem ousar desafiá-los, seja de forma consciente ou inconsciente. Seja por saber que se quer uma sociedade diferente ou por não se ter outra opção de ser, a não ser a rebeldia inconseqüente, mas que também promove mudanças ao afetar o grupo maior.

A busca por orientação religiosa aparece como um retorno à socialização primária: desejo de ser cuidado, o desamparo, a dificuldade de lidar com a tensão da culpa. A socialização primária dos indivíduos (GIDDENS, 2005; ERIKSON, 1986) é responsabilidade da família; no momento de conversão à Igreja Universal a pessoa vivencia o que Giddens chama de socialização secundária, assumida pela Igreja.

É de se questionar que tipo de relação, que tipo de subjetivação, vai sendo formada dentro dessas instituições. O que Ana poderia estar sentindo era o desamparo, tanto em relação à família quanto em relação às instituições sociais, como, por exemplo, à própria Igreja.

O que se observa nos cultos da IURD é que sua grande platéia é composta por endividados, desempregados, subempregados, doentes do espírito e do corpo, são deprimidos, alcoolistas, por pessoas que brigaram na família. Para Gomes (1996, p. 226), esse é um movimento social que mais parece uma procissão de extemporâneos à modernidade, porque dela são excluídos.

E, uma vez excluídos do mercado de trabalho e com a falta de apoio social, de rede de amparo com as quais os indivíduos e famílias possam contar, torna-se muito difícil o seu reingresso no sistema.

Temos, portanto, a relação axiomática da angústia, da perda da identidade, o contexto social da globalização com suas exigências.25 Uma grande mobilização de indivíduos deslocados, desgarrados, desencaixados e ao mesmo tempo presos a valores ainda tradicionais.

25 Globalização e suas exigências. De acordo com Giddens (2005, p. 68-69), a globalização está

fundamentalmente mudando a natureza de nossas experiências cotidianas. Como as sociedades nas quais vivemos passa por profundas transformações, as instituições estabelecidas que outrora as sustentavam perderam seu lugar. Isso está forçando uma redefinição de aspectos íntimos e pessoais de nossas vidas, tais como a família, os papéis de gênero, a sexualidade, a identidade pessoal, as nossas interações com outros e nossas relações com o trabalho. O modo como pensamos nós mesmos e nossas ligações com outras pessoas está sendo profundamente alterado pela globalização. A globalização está forçando as pessoas a viver de um modo mais aberto e reflexivo.

A religião aparece nesse contexto como a conexão do indivíduo com a sociedade, teoria apresentada por Durkheim (2000). Parece existir um campo propício para o crescimento do pentecostalismo, do qual seu grande expoente é a Igreja Universal do Reino de Deus.

Nesse sentido, estamos falando da relação de uma sociedade com um sagrado26, que está cheio de significados para quem crê e que revela o ethos27 cultural, que é imediatista. É neste contexto de insegurança, de vulnerabilidade, que esses mesmos indivíduos vão construindo suas famílias. Ainda que na falta de condições adequadas de socialização dos membros dessa família em direção à auto-afirmação, à confiança básica, defendida por Erickson (1966).