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4. H IERARQUIA DAS F ONTES

5.2. N ATUREZA J URÍDICA

“A admissão do jus cogens e, portanto, de um Direito imperativo superior às demais fontes formais do Direito Internacional representa mais um fator de crise no voluntarismo e, ao mesmo tempo, um robustecimento da fundamentação do Direito Internacional no direito natural”79.

“A teoria do jus cogens, tal como aplicada pela Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, é francamente hostil à idéia do consentimento como base necessária do direito internacional. Ali se pretende que, qual no domínio centralizado e hierárquico de uma ordem jurídica interna, regras imperativas — geradas por voto majoritário ou consenso de assembléias, ou deduzidas em cenário ainda menos representativo do interesse geral — frustrem a liberdade convencional dos países não aquiescentes, numa época em que o

Collected Courses of The Hague Academy of International Law. Tomo 172. Vol. III. The Hague: Martinus Nijhoff, 1982. p. 231.

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esquema de poder reinante na cena internacional desaconselha o Estado, cioso de sua individualidade e de seus interesses, de arriscar parte expressiva dos atributos da soberania num jogo cujas regras ainda se encontram em processo de formação”80.

Miaja de la Muela81, analisando a natureza jurídica do Direito Internacional imperativo, aponta freqüente confusão entre a norma de jus cogens e a insuscetibilidade de derrogação. Se as regras de Direito Internacional são criadas pela vontade expressa, tácita ou presumida dos Estados, uma manifestação de vontade contrária pode derrogar cada uma dessas normas, sempre que emane dos mesmos sujeitos de Direito das Gentes que contribuíram para a sua formação. Tal raciocínio é exato no que pertine à derrogabilidade da norma jurídica internacional. Entretanto, derrogação não se confunde com o exercício de uma autorização, concedida pela própria norma, para que os seus destinatários subtraiam-se à sua força vinculante. Essa possibilidade de subtração constitui, precisamente, o caráter dispositivo da norma jurídica. Para o mestre espanhol, portanto, a essência do jus cogens não está na inderrogabilidade da norma, mas na impossibilidade de os seus sujeitos furtarem-se, sob qualquer fundamento, ao seu império e aplicabilidade. Para Miaja de la Muela, a norma em si mesma, seja imperativa ou dispositiva, é sempre derrogável, desde que a derrogação seja operada pelos mesmos sujeitos de direito que a criaram.

Coimbra: Almedina, 1993. p. 285. 80

REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 121.

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Citado por ROBLEDO, Antonio Gómez. Le Ius Cogens International: sa Genèse, sa Nature, ses Fonctions. Recuéil des Cours. Collected Courses of The Hague Academy of International Law. Tomo 172, vol. III. The Hague: Martinus Nijhoff, 1982. p. 90.

Antonio Gómez Robledo82, comentando os artigos 53 e 64 da Convenção de Viena, aduz que o jus cogens, como instituto de lege lata, tem seus efeitos jurídicos orientados exclusivamente à contratação internacional, limitando a vontade dos Estados na celebração de tratados, que não poderiam contrariar normas peremptórias de Direito Internacional. Afirma o jurista mexicano que apenas uma especulação de lege ferenda poderia, algum dia, estender a aplicação do jus cogens aos atos unilaterais dos Estados.

Rolando Quadri83 insere o jus cogens nos “princípios primários” de Direito das Gentes, situados acima das obrigações estabelecidas por tratados e costumes internacionais. As normas imperativas, para esse autor, fariam parte de uma “compreensão psicológica do corpo coletivo”, a qual expressaria uma vontade capaz de ser imposta aos membros da coletividade.

J. Sinclair84 é da opinião de que a comunidade jurídica internacional não está ainda suficientemente organizada. A partir dessa premissa, afirma que o crescimento e desenvolvimento do jus cogens no Direito Internacional irá acompanhar o crescimento e desenvolvimento de uma ordem jurídica internacional como expressão do consenso da sociedade internacional como um todo.

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ROBLEDO, Antonio Gómez. Le Ius Cogens International: sa Genèse, sa Nature, ses Fonctions. Recuéil des Cours. Collected Courses of The Hague Academy of International Law. Tomo 172, vol. III. The Hague: Martinus Nijhoff, 1982. p. 92.

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Citado por ALEXIDZE, Levan. Legal Nature of Jus Cogens in Contemporary International Law. Recuéil des Cours. Collected Courses of The Hague Academy of International Law. Tomo 172. Vol. III. The Hague: Martinus Nijhoff, 1982. p. 243.

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Citado por ALEXIDZE, Levan. Legal Nature of Jus Cogens in Contemporary International Law. Recuéil des Cours. Collected Courses of The Hague Academy of International Law. Tomo 172. Vol. III. The Hague: Martinus Nijhoff, 1982. p. 244.

G. Scharzenberger85, baseado na presunção de que não existe um “direito internacional geral” (ao qual se refere como “direito costumeiro”) que não possa ser modificado por tratados, nega totalmente a existência do jus cogens internacional. O autor admite que os Estados possam criar, por tratado, um “jus cogens consensual”. As normas assim instituídas, no entanto, não são normas peremptórias propriamente ditas.

Gennady M. Danilenko86 revela que, tendo-se por pressuposto o direito natural, não há dificuldade em postular-se a existência de princípios superiores, vinculatórios de todos os sujeitos de direito, independentemente de suas vontades. Em contrapartida, o surgimento de normas de jus cogens na ordem jurídica positiva envolveria processos legislativos capazes de impor normas peremptórias a todos os membros de uma comunidade em particular. Os processos tradicionais de criação de normas internacionais, todavia, parecem ser inconciliáveis com a idéia de jus cogens. O antagonismo entre jus cogens e a natureza consensual da formação do Direito Internacional poderia ser resolvido de duas maneiras. A primeira admitiria que o conceito usual de jus cogens, importado, de maneira geral, dos sistemas legais domésticos, não poderia ser transposto para o sistema jurídico internacional, de modo que as normas internacionais de jus cogens só seriam obrigatórias para os sujeitos de direito que as tenham aceitado e reconhecido. A segunda possibilidade envolveria a introdução no sistema jurídico internacional de um novo processo de produção normativa, que não requeresse o consentimento dos Estados para a emergênciade normas peremptórias. Essa última alternativa, arremata Danilenko, acarretaria uma mudança fundamental nos princípios constitucionais da ordem jurídica internacional a respeito da produção legislativa, o que não

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Citado por ALEXIDZE, Levan. Legal Nature of Jus Cogens in Contemporary International Law. Recuéil des Cours. Collected Courses of The Hague Academy of International Law. Tomo 172. Vol. III. The Hague: Martinus Nijhoff, 1982. p. 244.

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sói ter acontecido nem mesmo após a positivação do conceito de jus cogens na Convenção de Viena.

Levan Alexidze87 explica que, quando uma regra é reconhecida, por todos, ou quase todos Estados, como legalmente vinculante, há a emergência de uma vontade coordenada da comunidade jurídica internacional. A partir daí, essa vontade comum, constituída sobre o consentimento dos Estados, deve ser considerada a base da obrigação de determinada norma de direito internacional geral. A vontade comum e coordenada da comunidade internacional não se trata de algo acima da vontade dos Estados, ou um fenômeno misterioso que não pode ser compreendido (Triepel), ou uma compreensão legal espontânea (R. Ago), ou uma compreensão psicológica do corpo coletivo (Quadri). Trata-se, ao revés, do consentimento comum dos Estados e, conseqüentemente, da vontade comum de moldar as relações jurídicas internacionais. Os Estados participantes da formação dessa vontade não podem, sem conseqüências adversas, quebrar o padrão de conduta por ela estabelecido. O jurista russo adverte, todavia, que a vontade estatal, no que tange à ordem jurídica internacional, não é ilimitada. Apesar de a maioria das normas internacionais vincularem os Estados apenas com o seu consentimento, o Direito Internacional contemporâneo contém regras cuja força normativa é absoluta e que, por isso, alcançam todo e qualquer membro da comunidade jurídica internacional, independentemente de terem sido reconhecidas pelos Estados já existentes, ou de virem a sê-lo pelos Estados novos (aos quais sequer é oportunizado tal reconhecimento)88.

Publishers, 1993. p. 218-219. 87

ALEXIDZE, Levan. Legal Nature of Jus Cogens in Contemporary International Law. Recuéil des Cours. Collected Courses of The Hague Academy of International Law. Tomo 172. Vol. III. The Hague: Martinus Nijhoff, 1982. p. 246.

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Levan Alexidze faz menção, também, a novos governos que cheguem ao poder num Estado já existente. Entendemos desnecessária essa ressalva, tendo em vista que, se as normas em comento vinculam os Estados independentemente de consentimento, pouco importa que eventual concordância (que poderia nem existir) tenha

Alexidze equivoca-se, entretanto, ao afirmar que mesmo as normas de imperatividade absoluta dependem de “reconhecimento geral”, o qual deveria ser muito próximo da universalidade89. Com efeito, ao justificar a imperatividade das normas, o autor aduz ser necessária a vontade comum e coordenada de todos, ou quase todos os Estados, baseada no consentimento da expressiva maioria dos membros da comunidade jurídica internacional. Tal raciocínio, no entanto, denota um conceito voluntarista a respeito do fundamento do jus cogens, o que é de todo inaceitável. Se o Direito Internacional como um todo não repousa sua obrigatoriedade na vontade estatal, ainda que coletivamente considerada, com maior razão não podem as normas de jus cogens ser fundadas na vontade dos Estados. A justificativa da obrigatoriedade do Direito Internacional e, em especial, de suas normas peremptórias, é, como visto, o direito natural.