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3.1 NARCOCULTURA: A ASCENSÃO AO REINO DO CAPITAL

3.1.4 Narcocultura e Linguagem

A narcocultura é feita também da linguagem que surgiu nos territórios de exclusão. O parlache nasceu com os sicários nas comunas e se instalou na fala popular jovens com os jovens colombianos (RINCÓN, 2013). De acordo com Suárez (2009), essa linguagem também expressa a simultaneidade de moralidades. Podemos perceber a ocorrência de uma dupla moral quando incide a apropriação dessa linguagem:

Esa incorporación de términos del “parlache” dentro del habla cotidiana del colombiano señala cómo los valores del narcotráfico, fundamentados en otra visión de la muerte, la amistad, la familia y el código de trabajo, se fueron haciendo normales. Además, pone de manifiesto la convivencia del individuo con los valores de la legalidad y la ilegalidad, seña indeleble de una perenne doble moral (SUÁREZ, 2009, p. 192).

O parlache, segundo Rincón (2013) é caracterizado por expressões para nomear o dinheiro, as armas, as drogas, a sexualidade, o tédio e principalmente, cunhar significados sobre a morte. Essa “produção cultural da diferença” exerce um fascínio enorme sobre escritores e diretores de cinema por conta da sua estética que gira em torno da morte e valores do capital. Para Juana Suárez (2009, p. 219), o emprego do parlache pela indústria cultural acontece de forma negativa já que é essa linguagem violenta é apropriada apenas para “facilitar un performance de la marginalidad”, essa mesma marginalidade e violência que é sempre combatida e criminalizada, se tratando então de uma “dupla moral”.

Rincón (2013) relembra que, no caso colombiano, os sicários viraram símbolo de adoração, e a literatura que trata do tema passou a ser denominada

sicaresca. De acordo com o autor (2013, p. 15), o sicário “es el joven que vive de

matar por encargo, quien vive poco pero a gran velocidad y con mucha adrenalina, quien mata y se juega la vida para dejar con algo a la cucha (la mamá)”. Dois

exemplos do fascínio por sicários são romances colombianos que posteriormente foram adaptados para o audiovisual: Rosario Tijeras (1999) de Jorge Franco que ganhou adaptações para a televisão e cinema, e La Virgen de los sicarios (1994) de Fernando Vallejo, que foi adaptado para o cinema. La Virgen ainda explora a fundo a questão da linguagem do narco.

La Virgen de los sicarios retrata a Colômbia do início dos anos 1990, época

auge da guerra entre e contra os cartéis, que tinha como figura central o chefe do cartel de Medellín, Pablo Escobar. Estão presentes na narrativa os personagens próprios desse contexto: os sicários. Após 30 anos de ausência, o narrador, um gramático aposentado retorna a sua cidade natal, Medellín, e se depara com uma cidade violenta, tomada pelo narcotráfico. Neste contexto, os jovens sicários, devotos da Virgem María Auxiliadora, pedem benção a Virgem antes de cometerem assassinatos. Apaixonado por um desses jovens, o narrador vai redescobrindo a realidade de Medellín enquanto passeia e visita igrejas e, eventualmente, testemunha os assassinatos cometidos por seu amante e guia. Na obra, estão presentes as questões da inversão da moral religiosa, a banalização da morte e da vida e a ambiguidade moral. O sicário Alexis, assim como os outros sicários devotos da Virgem, usa sempre três escapulários:

[...] e ficou nu com os três escapulários, que são os que os sicários usam: um no pescoço, outro no antebraço, outro no tornozelo, e são: para que lhes dêem o negócio, para que sua pontaria não falhe e para que os paguem. Isso, segundo os sociólogos, que andam pesquisando. Eu não pergunto (VALLEJO, 2006, p. 16).

Como mencionado anteriormente, a Virgem Maria é a protetora dos narcotraficantes, e podemos dizer que é vista também como uma figura materna entre família e religião, pois, como já foi dito, assim como a mãe, ela ama, protege e perdoa. Rincón (2013, p. 13) cita Guadi Calvo26 e explica que os sicários levam no corpo “escapulários en los lugares sensibles [...]: el corazón que siente, el brazo que dispara, el pie que corre y se apoya en la moto”, mas que também fazem uso de “outras magias”, para fortalecer o corpo e alma: rezar “a la virgen para que el trabajo (el envío de droga o el matar a alguien) salga bien” e o fazem justificando sua ação: dar um bom futuro às mães.

26

CALVO, Guadi. La Sicaresca como una de las bellas artes. Carátula, revista cultural centroamericana. n. 17, Nicaragua, abr./mai. 2007.

Em seu livro Aquí América Latina, Josefina Ludmer (2010, p. 135) aponta que a cidade de Medellín, e aqui se aplica no caso da obra de Vallejo, se trata da “ficción de un territorio que se puede desterritorializar, abandonar y destruir”. Ou seja, a literatura não é mais um espaço de identificação nacional, mas uma forma de territorialização na qual se estabelecem subjetividades, identidades e também, outras políticas. Entre essas “outras políticas” estão agora, por exemplo, a da linguagem. Encontramos, no romance de Vallejo, tal política de construção identitária que possui uma estética que gira em torno da morte e valores do capital:

Não fala espanhol, fala gíria ou seu jargão. No jargão das comunas, ou gíria comunheira, que é formado essencialmente por um velho fundo da língua local de Antioquia, que foi a que falei enquanto vivi (como Cristo, o aramaico), mais uma ou outra sobrevivência do malevo antigo do bairro de Guayaquil, já demolido, que falavam seus açougueiros, já mortos; e enfim, por uma série de vocábulos e construções novas, feias, para designar certos conceitos velhos: matar, morrer, o morto, o revólver, a polícia... (VALLEJO, 2006, p. 22).

Como vimos, o fascínio que a narcocultura proporciona à sociedade faz com que suas narrativas sejam produzidas pelos letrados alheios ao mundo do narcotráfico. Dessa forma, La Virgen de los sicarios acaba por se combinar com um olhar etnográfico: ao longo da narrativa são comuns as interrupções do narrador para explicar aos leitores, também supostamente alheios ao mundo das comunas, do que se tratam as gírias e outros termos utilizados pelos jovens sicários, como no trecho a seguir:

“Seja o que for. O que eu queria mesmo era matar esse babaca.” “Eu o mato para você”, disse Alexis com a aquela sua complacência sempre atenta a meus menores caprichos. “Deixa que da próxima vez puxo o ferro.” O ferro é o revólver. No início, achei que era uma faca, mas não, é um revólver. Ah, e transcrevi mal as amadas palavras do meu menino. Ele não disse: “Eu o mato para você, disse: “Eu apago ele para você”. Eles não conjugam o verbo matar: empregam seus sinônimos (VALLEJO, 2006, p. 24, grifo da autora).

O narrador se converte em uma espécie de tradutor do submundo do narcotráfico à chamada cultura letrada. Não é à toa que o narrador é um gramático e literato. Tanto é assim, que ao longo da narrativa recorre tanto à reflexão linguística quanto à literária para suas críticas sociais. Assim, a narcocultura também “habita el lenguaje y se hace lenguaje”, como sublinha Rincón (2013, p. 14). O pesquisador (2013, p. 14) cita Alonso Salázar (1990) que enfatiza que o parlache é “Un leguaje

trastocado”. O autor (2013, p. 15) expõe que Salázar defende a ideia de que se trata “un lenguaje al mismo tiempo lúdico y profano, brotado desde los territorios de la exclusión”. Sobre as comunas, o território de exclusão do qual provém os sicários, Bragança (2015) expõe que:

Organicamente vinculados a este espaço de segregação, os sicarios exercem seu ofício de morte no qual associam os bens de consumo (as roupas de marca, a hierarquia letal das armas na qual a submetralhadora Mini Uzi é objeto de fetiche, o apreço pelas motos envenenadas) a rituais religiosos ressignificados pela ética do narcotráfico. Dessa forma, acabam por impor um estilo de vida e uma estética ligada à ostentação e a um empoderamento pelo mercado de consumo, aliado a padrões presentes na cultura popular e na indústria cultural (BRAGANÇA, 2015, p. 182).

Isto posto, Rincón (2013, p. 15) explica que esta linguagem é “toda una construcción postmoderna que toma de la culturas mediáticas sus símbolos y referencias”. Ou seja, se trata então de mais um exemplo de como a mídia e a narcocultura fazem trocas ou se retroalimentam.

Dessa forma, não é necessário fazer parte do mundo das drogas para se sentir parte da narcocultura: vivemos numa sociedade que celebra essa forma cultural e a exalta como prática popular por meio da indústria cultural que produz e inventa uma estética narco à qual até mesmo o próprio narcotraficante quer se inserir com fins de pertencimento à sua própria forma cultural. A América Latina se organiza, assim, também por meio deste estilo de vida e visão de mundo. Ou seja, habitamos culturas que possuem os mesmos valores da forma do narcotráfico, nas quais tudo vale se for para obter dinheiro, sucesso e benefício próprio, independente de outros determinantes sociais. Neste sentido, o narco constitui a melhor forma de integração regional na medida em que os conflitos sociais não são solucionados pelas vias institucionais e democráticas.