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3.2 NARCOCULTURA E SEUS PONTOS DE CONTATO

3.2.1 Realismo Mágico: Estranho Demais Para Acreditar?

3.2.1.1 Realismo maravilhoso

Pode-se notar que tanto o uso do conceito de realismo mágico quanto do real maravilhoso para designar as novas narrativas latino-americanas aconteceram devido justamente ao fato para o qual Carpentier (2009, p. 12) chama atenção: as histórias acontecidas aqui se tornam maravilhosas ou mágicas de um modo impossível de acontecer na Europa, e como o próprio autor escreveu: “mas o que é a história da América toda senão uma crônica do real maravilhoso?”.

Maravilhoso este que melhor descreve a realidade opressiva e descomunal da América Latina, segundo pesquisadoras como Figueiredo (2013b) e também Chiampi (2008) que adotaram esse conceito cultural para esse realismo em contexto latino-americano. Trata-se, então, de uma vertente da ficção latino-americana que, segundo Figueiredo (2013b, p. 17), se constituiu como uma afirmação identitária do subcontinente, além de “uma revisão crítica da modernidade ocidental”. Levando em consideração o maravilhoso como um conceito cultural que nos remete aos primeiros viajantes que passaram pelo Continente, Rodríguez Monegal (2008, p. 11) expõe que “o maravilhoso é um conceito literário europeu; que foram os descobridores e conquistadores, os que o aplicaram primeiro à América para documentar sua estranheza de forasteiros diante de uma realidade exótica”.

Chiampi (2008) elucida o “porquê histórico” da preferência pela adoção do termo realismo maravilhoso em detrimento de realismo mágico, já que este é de uso corrente na crítica latino-americana. A autora chama atenção para o dilema da

nomeação encarado pelo conquistador ao se deparar com a realidade complexa e

estranha do Novo Mundo que o levou a evocar o maravilhoso para a solução daquilo que fugia a racionalidade europeia. Esta acepção coloca o fazer poético em comparação com o poder de criação da palavra presente nas cosmogonias de vários povos antigos, entre eles as mesoamericanas. A criação verbal parece ser inerente à magia que remete ao realismo mágico. Porém, Chiampi (2008) indica que quando ocorre a “incorporação de mitos, tradições ou situações de conteúdo mágico, torna- se desnecessário recorrer ao termo magia, de outro âmbito cultural, para qualificar o elenco de motivos que as culturas nativas provêm à literatura de ficção”.

“Un problema muy serio que nuestra realidad desmesurada plantea a la literatura, es el de la insuficiencia de las palabras”, escreveu García Márquez (1979, p. 6). A criação verbal está ligada à necessidade literária em construir um referencial de tudo que jaz inominado na América Latina, assim como lembra Chiampi (2008, p. 46) ao citar Carpentier33 (1967, p. 37): “[...] nosotros, novelistas latino-americanos, tenemos que nombrarlo todo – todo lo que nos define, envuelve y circunda: todo lo que opera con energía de contexto – para situarlo en lo universal”. Figueiredo (2013b, p. 16) aclara a ideia de Carpentier: para a autora, desde uma perspectiva interna, o maravilhoso é o meio para a redescoberta da América, porém “caberia aos escritores latino-americanos a missão de revelar esse novo mundo, forjando uma nova linguagem, apta para expressá-lo, capaz de dar conta dos insólitos acontecimentos que pontuam a nossa história cotidiana”. Dessa forma, “sería necesario crear todo un sistema de palabras nuevas para el tamaño de nuestra realidad” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1979, p. 6).

Em leitura análoga, o fenômeno da narcocultura equipara-se a essa perspectiva histórica de legitimação do maravilhoso como “identificador da cultura americana” (CHIAMPI, 2008, p. 50). Visto que, uma vez entendida como uma linguagem, a narcocultura emerge para dar conta de uma realidade descomunal que transborda os limites do acreditável, tamanha a sua violência, desigualdade e exclusão social. Neste sentido, Bragança (2015, p. 183) se baseia nas ideias da pesquisadora Margarita Jácome (2009, p. 23)34, e aponta que:

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CARPERTIER, Alejo. Problemática de la actual novela latinoamericana. Tientos y diferencias, Montevidéu, Arca: 1967.

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JÁCOME, Margarita. La novela sicaresca. Testimonio, sensacionalismo y ficción. Medellín: Fondo Editorial EAFIT, 2009.

O narcotráfico surgia, então, como argumento estruturante da narrativa literária colombiana ao final do século XX, constituindo as bases de um repertório que, ao reordenar as alegorias do realismo mágico pelo absurdo das situações de extrema violência e pela ostentação do poder, apresentava um relato que [...] “subverte vários elementos narrativos dos gêneros testemunho e documental” (JÁCOME, 2009, p. 23 apud BRAGANÇA, 2015, p. 183).

Sob esta óptica, a violência cria seus personagens que causam tanto medo e fascinação: é o caso da figura do narcotraficante. Como exemplo, Rincón (2013, p. 205) cita a entrevista de Aileen El-Kadi35 concedida a Diana Carrillo (2011), na qual a professora menciona que o narcotraficante é encarado assim como o indígena na literatura colonial, ou seja: “como el „otro‟, el desconocido. Provocan fascinación y a la vez conforman una imagen de lo que es prohibido, del criminal que se desconoce pero que atrae al lector y al escritor”.

Além do viés histórico, Chiampi (2008, p. 48) também acredita que, se tratando de ordem lexical e poética, as vantagens do termo maravilhoso superam o mágico quando utilizado para significar a nova modalidade da narrativa realista. Do ponto de vista poético, a inclinação para o maravilhoso, segundo Chiampi (2008, p. 43) tem a ver com o “reconhecimento da prática teórica e literária de Carpentier”, ou seja, ao adaptar a noção referencial buscou-se “situar o problema no âmbito específico da investigação literária”, pois:

Maravilhoso é termo já consagrado pela Poética e pelos estudos críticos- literários em geral, e se presta à relação estrutural com outros tipos de discursos (o fantástico, o realista). Mágico, ao contrário, é termo tomado de outra série cultural e acoplá-lo a realismo implicaria ora uma teorização de ordem fenomenológica (“a atitude do narrador”), ora de ordem conteudística (a magia como tema) (CHIAMPI, 2008, p. 43).

Chiampi (2008) expõe que, lexicalmente, maravilhoso “é o „extraordinário‟, o „insólito‟, o que escapa ao curso ordinário das coisas e do humano. Maravilhoso é o que contém a maravilha, do latim mirabilia, ou seja, „coisas admiráveis‟ (belas ou execráveis, boas ou horríveis)” (CHIAMPI, 2008, p. 48). Muito embora Menton (1998) mantenha o termo realismo mágico, sua definição se assemelha com a de Chiampi (2008), em relação à concordância com as leis naturais. Isto se deve ao fato de o

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CARRILLO, Diana. La narco-guerra mexicana da auge a la narco-literatura. Borderzine.com. dez. 2011. Disponível em: <http://borderzine.com/2011/12/la-narco-guerra-mexicana-da-auge-a-la-narco-literatura/> Acesso em: 15 mar. 2019.

realismo mágico, para o autor (1998, p. 44) se tratar daquilo que é real, porém inesperado, improvável e até mesmo assombroso: “posible pero poco probable”.

Um dos sentidos do maravilhoso diz respeito à distanciação do âmbito humano, trata-se assim da natureza de fatos e objetos que “pertencem a outra esfera (não humana, não natural) e não têm explicação racional” (CHIAMPI, 2008, p. 48). Entretanto, existe o sentindo que mantém em sua essência algo do humano, assim, se trata de um “grau exagerado ou inabitual do humano” e também “uma dimensão de beleza de força ou riqueza, em suma, de perfeição, que pode ser

mirada pelos homens” (CHIAMPI, 2008, p. 48). Nessa perspectiva, a narcocultura é

uma linguagem inventada pela própria realidade para dar conta de uma violência tão extremada que transborda a compreensão. Uma representação de uma realidade difícil de ser concebida pelas vias da razão, uma realidade que excede o mais ávido surrealismo, onde o insolitamente injusto e o absurdamente violento se expressam cotidianamente na vida da população. Em relação ao maravilhoso, Figueiredo (2013b) expõe que:

O “maravilhoso” foi interpretado como elemento identificador da cultura latino-americana, como traço característico que a distinguia do mundo europeu. Resgatava-se, assim, a visão que os conquistadores tiveram da América quando aqui chegaram, no século XVI: nas cartas dos viajantes, a imaginação preenchia as lacunas deixadas por tudo aquilo que escapava ao mundo já codificado pelo “saber ocidental”, os relatos testemunhais se deixavam invadir pela fábula, que conferia ao novo, ao diferente, o estatuto de maravilha. Por esse viés, o realismo maravilhoso, sem deixar de ter um potencial crítico em relação à modernização desigual e excludente ocorrida na América Latina, colocava em destaque a força da cultura latino- americana, marcando positivamente o efeito singular das nossas misturas, simbioses e sincretismos (FIGUEIREDO, 2013b, p. 17).

Dessa forma, o realismo maravilhoso é compreendido em um sentido mais amplo, isto é, como “matriz cultural” ou “modo imaginativo”. E, como elucidado anteriormente, a narcocultura diz respeito a uma “producción de fusión de temporalidades, experiencias, sentidos”, como expõe Rincón (2013, p. 5). Trata-se também de uma fusão identitária, pois é composta por modernidades, mas também por uma nostalgia rural. Se existe um aspecto que se apresenta como troca com o realismo maravilhoso é este: a simultaneidade de temporalidades, moralidades, racionalidades e culturas no subcontinente. De acordo com Figueiredo (2013b, p. 18), essa questão começou a ser pensada sob outro paradigma por intelectuais e

artistas latino-americanos. Estes passaram a considerar positiva “a permanência de traços arcaicos, em função da assimilação incompleta dos valores modernos”:

A América, graças à sua pluralidade de tempos, seria ainda um território aberto à correção dos rumos da história. A ideia predominante era a de que haveria uma vantagem na nossa resistência à aceleração do tempo, nem que fosse a possibilidade de reencantamento do mundo pelas narrativas que faziam emergir formas de temporalidade e de historicidade irredutíveis ao Ocidente exaurido pelo racionalismo. [...] Inaugurava-se, assim, um novo conceito de realismo capaz de abarcar a realidade díspar da América, tirando partido de seus diferentes ritmos temporais, sem hierarquizá-los. Para configurar o que seria uma nova realidade histórica, subvertia os padrões convencionais da racionalidade ocidental: essa nova realidade histórica requeria que se colocasse, em pé de igualdade, tanto o acontecimento histórico quanto o mito e a lenda. Misturavam-se o tempo sucessivo da história e o tempo circular do mito, e essa mistura permitia a elipse de ideias como anacronismo e atraso, responsáveis pelo nosso complexo de inferioridade (FIGUEIREDO, 2013b, p. 18).

Vale ressaltar que o arcaico é um traço da narcocultura: “Sin perder lo arcaico se ingresa a la modernidad para significar posmoderno: todos los tiempos, todos los flujos”, como enfatiza Rincón (2013, p. 6). Neste panorama, as múltiplipas temporalidades instigaram “o resgate do imaginário coletivo contra a esterilidade da razão burguesa” (FIGUEIREDO, 2013b, p. 18).

O realismo maravilhoso, apesar da realidade opressiva que descreve, não deixa, então, de apresentar uma visão utópica da América Latina, na medida em que afirma a nossa diferença e tira vantagem da mistura que nos caracteriza, utilizando-a como signo para abolir fronteiras – entre o visível e o invisível, a vigília e o sonho, a vida e a morte –, deixando em aberto a possibilidade de uma saída pela resistência à aceitação plena dos cânones da civilização ocidental (FIGUEIREDO, 2013b, p. 19).

A narcocultura é um produto da modernidade capitalista, a realização do sonho popular de participação no mercado de bens e consumo, mas também é pré- modernidade: se baseia na identidade e tradição local: moral e lei de compadrio e lealdade, e tem no religioso sua inspiração ética. Ademais, se trata de um assunto pós-moderno: aproveitar e consumir o máximo no presente. Rincón (2013) aponta que ao se jogar com as temporalidades, tensiona-se o sentido de ser moderno e capitalista (RINCÓN, 2013). Dessa forma, a narcocultura retém, mas também subverte elementos do realismo maravilhoso, assim como joga com a questão das múltiplas temporalidades, abordada por Figueiredo (2010).