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2. O MUSEU DO CEARÁ ENTRE HISTÓRIA, MEMÓRIA E NARRATIVAS

2.1. Projetos educativos do Museu do Ceará

2.1.5. Narrativas sobre o famoso Bode Ioiô

Considerando que as crianças elegeram o Bode Ioiô como um dos objetos geradores de nosso estudo, destacaremos algumas narrativas e opiniões sobre esse animal. Como nos dizem os jornais, a figura desse caprino causou muito impacto aos primeiros diretores e ao público do Museu.

O caprino saiu do sertão para entrar na história: isso o poder oficial cearense não calculou. Houve quem o ofendesse depois de morto, mas também houve quem o defendesse. Conforme Sebastião Rogério Ponte (2000, p. 190), o bode Ioiô era muito sociável e brincalhão. Com sua popularidade, ganhou permissão para transitar pelas ruas de Fortaleza, “numa época em que animais, loucos e demais „vagabundos‟ eram, via de regra, fiscalizados e recolhidos do espaço público em nome da higiene e da segurança”. Nessas suas andanças entre a antiga Praia do Peixe (hoje, Praia de Iracema) e a Praça do Ferreira, ganhou a alcunha de Ioiô, fama de gaiato e de paquerador. Segundo alguns jornais, o bode foi eleito vereador em 1922. Certamente, como uma forma de resistência à velha politicagem. Andava pelas ruas da cidade com muita desenvoltura, frequentava os cinemas e os cafés. Enfim, era um amante da boemia. Assim os cronistas têm narrado.

Vale ressaltar que Ioiô, ao chegar à capital cearense, em 1915, trazido por uma família de retirantes, foi comprado pela firma Rossbach Brazil Company, em troca de comida. Há controvérsias sobre a causa mortis de Ioiô. Mas há de ter morrido de velhice no ano de 1931. A firma proprietária mandou empalhá-lo. Segundo Holanda (2005), Eusébio de Sousa, que não recusava objeto, aceitou essa oferta em 1935 do coronel José Magalhães Porto.

O discurso dos jornais sobre a figura do bode Ioiô no Museu diz o seguinte:

Há dias excepcionais. Às vezes o número de visitantes cresce assustadoramente. Outro dia, por exemplo, cerca de 106 pessoas, em poucas horas, foram às salas do Museu. E isso porque, num descuido, deixaram que da rua se visse a figura venerada, se assim podemos dizer, do famoso bode Ioiô, uma atração de rua nos tempos passados dessa Fortaleza. [...] É muita gente num museu para ver um bode pode ser insulto aos respeitosos velhos dos retratos que figuram nas paredes. Para eles basta o grande insulto de serem miseravelmente esquecidos. (Correio do Ceará, 1/03/1948, apud SILVA FILHO; RAMOS, 2007, p. 136).

Para Holanda (2005, p. 183-184), Eusébio não considerava o bode um objeto de “grande valor histórico, mas foi incitado a aceitar a doação”. Segundo esta autora, até mesmo os detratores de Ioiô reconheciam a sua popularidade junto aos frequentadores no Museu. “Para um museu cuja missão educativa era confessa, nenhum atrativo poderia ser descartado, já que o público era a razão de sua existência”.

Outro ex-diretor que não via o caprino com simpatia era o Sr Osmírio Barreto. Observemos as palavras deste, através dos jornais na época, a respeito do lendário Bode Ioiô, um dos objetos mais comentados por adultos e crianças que visitam o Museu do Ceará. A matéria “Crônicas de Fortaleza sob a ótica de um bode”, de Carmina Dias, do Jornal “O Povo”, de 6 de setembro de 1989, diz:

Para o diretor do Museu, Osmírio de Oliveira Barreto, „seria mais interessante que o bode estivesse num museu folclórico e não num museu histórico‟. Mesmo sendo um professor de história com diversos trabalhos publicados sobre o Ceará, Osmírio admite não saber muita coisa sobre o bode Ioiô. „Eu escrevo sobre coisas sérias‟,

procura justificar. [...] Osmírio não vê importância histórica no bode, acha a popularidade do animal no passado „foi apenas gozação, uma espécie de brincadeira das pessoas‟ e indaga, „como igualar um bode às personalidades

históricas que temos aqui?‟(O Povo, apud SILVA FILHO; RAMOS, 2007, p.

232, grifo nosso).

A concepção de riso para Barreto se encontra dentro da atitude do século XVII e XVIII. Segundo Bakhtin (1993, pp. 57-58), no que se refere ao riso,

[...] o que é essencial não pode ser cômico; a história e os homens que a encarnam (reis, chefes de exército, heróis) não podem ser cômicos; o domínio do cômico é restrito e específico (vícios dos indivíduos e da sociedade); não se pode exprimir na linguagem do riso a verdade primordial sobre o mundo e o homem, apenas o tom sério é adequado [...].

Contrapondo-se a esse pensamento, Bakhtin (1993, p. 105) afirma que o “verdadeiro riso, ambivalente e universal, não recusa o sério, ele purifica-o e completa-o”. Este autor russo faz uma crítica ao historiador francês Lucien Febvre ao dizer que este não soube ouvir a seriedade do riso e a universalidade do cômico. Acusou-o de ter cometido anacronismo. “Ele ouve o riso rabelaisiano com os ouvidos do homem, do século XX, e não como ele era ouvido em 1532. Por isso, ele não pôde ler Pantaguel com os olhos de um homem do século XVI, no que a obra comporta de capital”. (IDEM, p.114). Barreto, por sua vez, também não conseguiu ouvir a seriedade na brincadeira atribuída pelo povo mediado pelo bode Ioiô. Este animal representa, ao mesmo tempo, a resistência da cultura popular e as contradições da história. A brincadeira é outra linguagem para se falar de coisas sérias, não acessadas ou negadas por Barreto.

Nas frases negritadas, é possível perceber que tipo de concepção de história é a de Barreto. Noutras palavras, centra-se no personalismo de algumas figuras cearenses uma visão tradicional muito presente na época. Segundo a visão desse diretor, o bode não representava a história, de modo que está num lugar inadequado. Do mesmo modo, as coisas da cultura dita “popular”, para alguns que pensam como Osmírio, devem fazer parte de um museu folclórico.

Noutra perspectiva histórica, numa entrevista concedida ao Jornal Diário do Nordeste, o ex-diretor do MUSCE, Régis Lopes, considera o bode Ioiô o objeto mais importante do Museu do Ceará. A matéria discute sobre os 75 anos do Museu, além de informar sobre o acervo dessa instituição que se constitui de quase 15 mil peças. Alguns trechos da entrevista, podemos conhecer na citação abaixo:

[...] DN – Quais as peças mais importantes do acervo do Museu do Ceará?

RL – Eu considero o bode Ioiô como nossa peça mais importante. Ela foi doada em 1935, logo depois da fundação do Museu. Outras peças de destaque são a rede do historiador Capistrano de Abreu, tão citada nas cartas dele; um conjunto de objetos do Caldeirão, incluindo o estandarte; e a bandeira da Padaria Espiritual.

DN – São peças que têm a essência da cultura cearense...

RL – Certamente. O bode representa a rebeldia, a ironia e o espírito irreverente que estão muito presentes em nossa cultura. [...]43

43 ROCHA, Délio. Além da reverência ao passado. Diário do Nordeste, Caderno 3 Fortaleza, s/p, 20 de maio de

Ao representar uma das faces da cultura do povo cearense, o bode Ioiô já traz sua importância histórica, antes negada ou diminuída nesta instituição museológica, ou reservada a um lugar folclorizado. O bode permeou, desde que entrou para o acervo do MUSCE, várias salas expositivas. Na gerência de Régis Lopes, a sua importância histórica foi legitimada, por representar parte da história cultural de Fortaleza. Este objeto dialoga com o espaço da exposição “Fortaleza: imagens da cidade”44. A história do bode Ioiô está entrelaçada com a memória e a história cotidiana dos fortalezenses de um determinado período histórico, memórias que são narradas pela tradição. Observemos no verso da literatura de cordel45.

[...]

Até roteiro de cinema No Ceará foi preparado (O roteiro sei que existe) O filme não foi rodado Mas demonstra que Yoyô Foi mesmo bode afamado [...]

Entre histórias e lendas, o bode Ioiô já virou um acontecimento que vale a pena dele falar. Nessa perspectiva museólogica e educativa, continuaremos, no item a seguir, a refletir sobre a dimensão do espaço dos museus como uma construção discursiva importante para a formação humana.