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3 NARRATIVA: UMA EXPERIÊNCIA HUMANA E UNIVERSAL

3.3 NARRATIVIDADE E COGNIÇÃO ESPAÇO-TEMPORAL

Ao afirmar que a narrativa se organiza e se estrutura fundamentalmente de acontecimentos centrados numa sequência de eventos ordenados num fluxo espaço-temporal, hipotetizamos que essa organização de eventos se manifesta em expressões nas quais recorremos às experiências humanas – que obedecem a uma ordem causal e concedem a construção do senso de localização na passagem do tempo e do espaço ao longo da narrativa para significar os eventos. Para isso, aproveitamos os mesmos mecanismos cognitivos que utilizamos no dia a dia para conceituar e projetar o mundo e que, na perspectiva narrativa, nos servem para dar sentido ao mundo construído e até mesmo auxiliar na compreensão das narrativas de ficção.

Em se tratando de narrativas fictícias, embora se tenha a presumida impressão de que os contos de fada, os contos maravilhosos, os contos fantásticos, os contos fabulosos etc. estejam distantes e aparentemente estranhos à realidade e a lógica humana, o que se percebe, na verdade, são vontades e/ou comportamentos humanos projetados nas histórias, nas fantasias, nas situações no tempo e no espaço, bem como formas de conceber e explicar os “eus” e os outros, na tentativa de organizar e compreender o próprio mundo.

A exemplo disso, destacamos o clássico conto As mil e uma noites, cujo enredo é estruturado ao redor do rei Shahriyar, que, ao descobrir que sua primeira esposa foi infiel, convenceu-se de que nenhuma mulher poderia ser confiável e, a partir daquele momento,

dormiria com uma mulher diferente cada noite, mandando executá-la pela manhã, assim jamais seria traído. Até que surgiu Shahrazad que para escapar da execução conta ao rei histórias maravilhosas, interrompendo-as ao amanhecer e prometendo continuar na noite seguinte. Fascinado com as narrativas, o rei não manda executar Shahrazad, a qual consegue sobreviver por mil e uma noites contando histórias sobre os mais variados temas, como lições de conduta, de amor e de vida. Envolto nas narrativas, o rei tem sua vontade tirana enfraquecida, arrependendo-se de atos passados e construindo novos desfechos para antigas experiências. O rei casa-se com Shahrazad, fez dela sua rainha definitiva e a declara libertadora de todas as jovens do seu reino.

A experiência de identificar-se com e de projetar-se nas narrativas, nas fantasias no tempo e no espaço, possibilita não somente a elaboração cognitiva dos eventos, como também a construção e reconstrução de desfechos da própria vida à medida que são acionados padrões cognitivos formados por experiências sensório-motoras e socioculturais, isto é, compreendemos a narrativa de acordo com nossas crenças e/ou desejos. É o que acreditamos ter acontecido com o rei Shahriyar depois de ouvir as narrativas de Shahrazad e suas lições a cada noite.

Quando nos envolvemos nas histórias, deixando que as emoções, a surpresa, a agonia, as escolhas, as falas e as ações dos personagens sejam compartilhadas e experienciadas, levando-nos a sair do imaginário e a refletir acerca de atitudes referentes à vida real. Assim, somos impelidos à reflexão, a apreender situações que acontecem nas narrativas e a associá-las às situações de mundo.

Para que feitos como esse aconteçam em nosso cotidiano, operações cognitivas complexas são acionadas com o intuito de integrar informações que desencadeiem o processo de produção de sentidos. Para Fauconnier e Turner (2002), esse processamento é possível graças à capacidade humana criativa que possibilita a (re)criação de novas categorias. Para isso, é preciso ativar de três operações humanas consideradas universais: identidade, integração e imaginação, que se inter-relacionam de forma dinâmica e imaginativa numa operação mental chamada pelos autores de integração conceptual.

Essas três operações estão imbricadas. Para os autores, o reconhecimento da identidade, igualdade, equivalência e oposição entre as coisas é o resultado de um trabalho complexo, imaginativo e inconsciente elaborado pelo raciocínio. Identidade e oposição são conectadas pelo processo de integração conceptual que trabalha rápido e despercebido nos bastidores da cognição. Por sua vez, identidade e integração não podem dar conta do significado e do seu desenvolvimento sem o terceiro i da mente humana, que é o de imaginação, que mesmo na

ausência de estímulos externos, o cérebro é capaz de executar simulações imaginativas como sonhos, ficção, fantasias e cenários hipotéticos.

Na integração dessas operações, há uma conexão entre as estruturas formadas por experiências sensório-motoras (esquemas imagéticos) e estruturas cognitivas sociais (frames) para construir sentido. Segundo Duque e Costa (2010, p. 109),

A relação entre as estruturas preexistentes de conhecimento (frames e esquemas imagéticos) e os espaços temporariamente criados durante o processo de construção de sentido ajuda-nos a compreender os aspectos da construção do significado local, constituindo-se diferentemente a cada interação, e a dinâmica da produção e da compreensão discursivas.

No dizer dos autores, percebemos que a compreensão e a construção de sentido para as coisas que nos cercam são propiciadas pela dinâmica da integração das estruturas cognitivas armazenadas em nossa memória com a organização das identidades por nossa imaginação.

Além dessas operações cognitivas, Fauconnier e Turner (2002) postulam que, ao integrarmos às informações relações básicas como causa e efeito, presencia-se, constantemente, um efeito seguido de uma causa, por estarem frequentemente conjugados às narrativas. Dessa forma, entendemos que os eventos são unificados em cadeias causais, de modo que cada evento é o efeito do anterior e a causa do próximo, ou seja, infere-se a existência de um evento como decorrência de outro.

Para Fauconnier e Turner (2002, p.75),

Esse tipo de análise nos dá a sensação de que nós entendemos o evento complexo, tendo conscientemente reduzido-o a um conjunto de eventos básicos que são tomados como auto-evidente. Este tipo de explicação presta- se especialmente bem para a expressão em forma de abordagens, porque podemos codificar os acontecimentos básicos e as relações causais simbolicamente, de tal modo que a manipulação de objetos formais correlaciona-se com as mudanças no sistema complexo que eles codificam.31(tradução nossa)

Para esclarecer esse reconhecimento que se tem das relações de causa e efeito, podemos dizer que ele provém das experiências que vivenciamos cotidianamente, construídas através da percepção, da lógica e da dedução. Hume (2006) diz que nenhum objeto revela – pelas qualidades que se apresentam aos sentidos – as causas que o produziram nem os efeitos que surgirão dele. No entanto, temos conhecimento dessas relações por indução.

31 “This kind of analysis gives us the feeling that we understand the complex event, having consciously reduced it

to a set of basic events that are taken as self-evident. This type of explanation lends itself especially well to expression in form approaches because we can code the basic events and the causal relations symbolically, in such a way that manipulation of the formal objects correlates with the changes in the complex system they code.”

A recorrência de fatos em que um efeito sempre se apresenta seguido de uma causa, ou em que uma causa antecede em determinadas circunstâncias um efeito, faz com que entendamos que fenômenos como esse habitualmente ocorrem caracterizando a relação de causa e efeito, ou seja, há evidências de que um determinado evento existe em decorrência de outro.

Com base nas teorias discorridas, destinamos a seção seguinte à descrição metodológica da pesquisa.