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Nativos digitais, fandom e fluxo cultural

Como visto no capítulo anterior, os discursos ciberufanistas onipresentes no marketing, nos meios de comunicação e até no reduto acadêmico esforçam- se em justificar e incentivar o emprego indiscriminado dos objetos tecnológicos no cotidiano. Ao forjar a necessidade da educação enfocada no letramento mediático desde a infância, influenciam comportamentos. Assim, os nativos digitais detêm a dromoaptidão que os predispõem a viverem e a intervirem na cultura digital segundo os requisitos da presente época. Habilidade, instrução e acesso irrestrito favorecem o uso do tempo livre para o entretenimento e interações online entre seus pares nas plataformas sociais, acessando produtos culturais provenientes de diversas partes do mundo. A demanda por esses conteúdos denota a importância social em relação ao sentimento de se integrar

às tendências e novidades de consumo disponíveis e o ímpeto de se diferenciar das predileções majoritárias da cultura circundante (JENKINS; FORD; GREEN, 2014), seguindo o escapismo da expressão pessoal e da suposta liberdade predicadas pelos paradigmas capitalistas. Nessa dinâmica, um produto cultural (filmes, seriados, animações, programas televisivos, livros, músicas, dentro outros) é considerado local quando é facilmente identificado como pertencente ao seu país de origem, ou seja, cujas características estéticas, tradições e/ou sonoridades evoquem certa nação. Mesmo os produtos culturais considerados glocais, contemporâneos e híbridos, se forem prontamente identificáveis, são ainda assim são percebidos como locais, por serem veículos eficientes para despertar a curiosidade acerca da cultura de origem.

Ao se depararem com um produto de uma cultura local diferente da sua que julguem ser atrativo e, por isso, instigue a uma investigação maior, os nativos digitais utilizam-se das comunidades online erigidas sob tal interesse partilhado para conhecer e explorar tal conteúdo. Nessas comunidades são discutidos vários aspectos relacionados tanto ao produto cultural quanto o seu país de origem, tais como o idioma, os costumes, a gastronomia, as diferenças e semelhanças culturais entre o país em questão e o dos membros da comunidade. Muitas vezes, o interesse amplia-se de tal forma que conscientemente não se identificam mais como fãs individuais de certo produto cultural, mas sim como parte do fandom daquele conteúdo, ou seja, integrante das comunidades de fãs, cujos membros possuem algum grau de comprometimento e lealdade e que, assim como grupos subculturais, de minorias e de ativistas, sentem-se vinculados tanto pela sociabilidade quanto pela identidade compartilhada (JENKINS; FORD; GREEN, 2014). Tal coletividade percebida oferta um sentido de integração devido a uma visão comum.Segundo Shirky (2012), o caráter minoritário da preferência pelo produto cultural celebrado, em relação à cultura circundante, é que ao se reunirem, sentem-se aparentados. Esses componentes emocionais preservam a união do grupo e auxiliam a sobrepujar os empecilhos e dificuldades insurgentes, além de orientarem as regras de conduta a serem seguidas, que combatem as ameaças internas, como desfocar dos objetivos estipulados, e externas ao grupo — a desaprovação social, por exemplo (SHIRKY, 2011). Tais princípios equalizadores do comportamento estabelecem-se por meio do consenso,

embora, quando internalizados pelos participantes, não aparentem ser um tópico que foi discutido previamente (JENKINS, 2009).

No fandom, segundo Jenkins, Ford e Green (2014), o produto cultural e a produção digital amadora inspirada por elefornecem subsídios para a interação dos membros. Diferentemente das muitas instituições responsáveis por distribuir conteúdos globalmente, não obtém recompensa econômica pelas suas atividades.Os fãs disponibilizam esses materiais culturais a fim de contribuir com a comunidade. Para acessar conteúdos de outras culturas locais, dispõem-se a despender tempo e esforços significativos, muitas vezesvalendo-se de métodos não autorizados, já que frequentemente encontram-se indisponíveis via distribuição comercial. Em virtude da presente situação, criaram as fansubs, legendas desenvolvidas pelos e para os fãs, que voluntariam de acordo com o grau de familiaridade do idioma e da cultura em questão. A legendagem de vídeo, geralmente de origem clandestina, requer a coordenação de muitos participantes e a divisão de tarefas como tradução, codificação, verificação e publicação, em tempo inferior ao que as empresas conseguiriam. Nesse processo, além de dispor do auxílio de fãs do país de origem do conteúdo também solicitam o conhecimento aprofundado de comunidades diasporizadas online. Os imigrantes colaboram com o fandom como forma de manter laços com suas pátrias, esclarecendo dúvidas, fornecendo adendos e conferindo as legendas antes de serem disseminadas.A exigência de conhecimento oriundas das atividades do fandom motiva alguns participantes a estudarem o referido idioma e os elementos culturais mais a fundo, a fim de contribuir mais com os projetos e ações. Assim, emprega-se o conhecimento adquirido para educar os outros membros em relação às tradições e convenções da cultura em questão (JENKINS; FORD; GREEN, 2014).

As atividades desempenhadas pelo fandom são de grande valor para seus membros. Jenkins, Ford e Green (2014) argumentam que, nesse contexto, a participação é uma obrigação social consensual, já que todos devem ajudar, seja na criação, na manutenção ou na ampliação desse valor. A obrigação em relação a uns aos outros rege o sistema de reciprocidade da qual a comunidade depende para sobreviver. Muitas atividades são desempenhadas por prazer e outras, nem tão agradáveis, são executadas porque se sentem na obrigação de retribuir a comunidade. Os que não contribuem na produção, reconhecem o

esforço dos voluntários oferecendo comentários e fomentando a propagação (JENKINS; FORD; GREEN, 2014).

Como decorrência das práticas do fandom, introduz-se um produto cultural nunca comercializado antes e se sinaliza a abertura de um novo mercado. Segundo Jenkins (2009), ao se atentarem de tal potencial econômico, conglomerados mediáticos e instituições governamentais do país originário do conteúdo podem interferir e utilizá-lo para seus próprios fins. A promoção dessas novas trocas culturais por produtores e Estados nacionais, por exemplo, visam não só à expansão de mercados e lucros, mas também demonstrar publicamente o patriotismo. Nesse transcurso, tanto o produto cultural quanto as atividades do fandom, quando capitalizadas, transfiguram-se em mercadorias. Quando corporações e organizações governamentais agem sob a regência de motivações econômicas, as comunidades de fãs sentem-se compelidas a angariar visibilidade para aquele conteúdo, pois a atenção é monetizada e se converte em parâmetro determinante do futuro do produto cultural em questão. Haja vista que os grupos desprovidos de valor econômico reconhecido são ignorados e que a melhor possibilidade de barganha é criar “sucessos que demonstrem o valor econômico do envolvimento do público participativo” (JENKINS, 2009, p.221), a produção criativa do fandom e sua propagação, que a priori era apenas material para fortalecimento das relações sociais, euforia, paixão, camaradagem (disponibilizar para outras pessoas algo significativo e de difícil acesso), revela-se também como necessidade: estratégia de sobrevivência. Embora Jenkins (2009) defenda que idealmente as empresas são obrigadas a conhecer as expectativas dos fãs e responder a elas, e não o contrário, uma vez que estes não devem nada a aquelas, ele admite que “os membros são seduzidos de todos os lados para adotar praticas que não necessariamente se alinham com seus próprios interesses” (JENKINS; FORD; GREEN, 2014, p.220). Para evitar a incerteza, os fãs submetem-se à lógica dos produtores, a fim de impedir que o produto cultural atinja a periferia mediática, não lucre e se extinga. Destarte, as atividades prazerosas igualmente se tornam trabalho gratuito, transformando os consumidores em portadores de mensagens.

O fandom estipula seus objetivos considerando a necessidade de atrair a atenção mediática. Ademais, a comunidade mantém os membros fortemente envolvidos, exercendo pressão para que se mantenham fiéis ao compromisso

coletivo. Quando há conexões sociais por longos períodos, a comunidade passa a influenciar fortemente nas decisões dos seus participantes (jenkins, 2009), principalmente porque a identidade dos indivíduos vincula-se ao grupo. Ações coletivas precisam de encorajamento ancorado na visão compartilhada para evitar que indivíduos desloquem-se para outro lugar quando a decisão do conjunto divergir de seus próprios desejos. O fandom, como qualquer grande grupo, constitui-se de pequenos grupos de conexões densas (em que todos se relacionam com todos) associados entre si por conexões esparsas (SHIRKY, 2012), cujos colaboradores desempenham papéis para que o objetivo comum seja atingido. Shirky (2011), para elucidar tais funções, ampara-se na nomenclatura desenvolvida por Farrell (2001): grupo central e grupo periférico. O autor (2011) relata que o círculo central executa a produção criativa (desenvolve vídeos, legenda, organiza eventos, escreve fanfics, etc.) e lideram a iniciativa das atividades, em razão de serem os membros que melhor internalizaram as regras e os valores consensuais do grupo. Por esse mesmo fundamento, supervisam a si mesmos e aos outros no decurso da realização do propósito estipulado, repreendendo os comportamentos desviantes e comprometedores das normas consonantes. A função do grupo maior, o periférico, é propagar as ideias e produções do menor, já que parte de sua participação consiste em venerar o produto cultural (SHIRKY, 2011). Porém, não significa que o grupo central está impedido de disseminar conteúdo também, visto que essas não são funções permanentemente fixas.

O produto cultural é inserido nas interações com amigos, familiares e colegas, propagando-se em virtude dos vínculos interpessoais e a confiabilidade dessas relações. As mensagens obtém maior credibilidade se compartilhadas por alguém conhecido pelo ouvinte e em quem confia (JENKINS; FORD; GREEN, 2014, p.220) e são interessantes por seu valor do conteúdo, mas porque o receptor se importa com o emissor. Recirculam entre grupos a que pertencem. Os membros do publico circulam esse conteúdo de um grupo à até chegar a proporções globais. Os vínculos sociais dos intermediários autenticamente populares não apenas auxiliam a circulação do produto cultural, mas também atraem novos membros para o fandom.

Para Jenkins, Ford e Green (2014), a partir do estabelecimento de vínculos sociais e emocionais, é possível formar novas relações culturais, tal

como ocorreu internacionalmente com o Anime japonês, a dança Bollywood indiana e o K-pop sul-coreano. A exposição mediática a esses produtos contribuem para o surgimento de novos hábitos de consumo cultural, inclusive em cidades desprovidas de população diaspórica desses países. Os autores ainda admitem que o deslocamento do produto cultural pelas redes digitais e fronteiras descontextualiza-o, eliminando os significados locais e ampliando o seu valor de troca. Nesse contexto, avalia-se o material de forma distinta de sua cultura originária e, pela apropriação e reinterpretação do conteúdo, gera-se um hibridismo, marcado pelos traços dos públicos que o refizeram (JENKINS; FORD; GREEN, 2014).

No presente capitulo, apresentou-se o processo de propagação do produto cultural local em escala global. No próximo, como o consumo do produto cultural transforma-se no consumo holístico da cultura. Para isso, analisa-se a onda de consumo internacional da cultura coreana: a Hallyu 2.0.