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PARTE I DO PROCESSO POR INCUMPRIMENTO

1.5. Natureza e efeitos da 1.ª ação por incumprimento

Este ponto prende-se com as características da jurisdição do TJUE neste meio contencioso o que, por sua vez, não é alheio às especificidades do sistema jurisdicional da U.E., quando comparado com a justiça clássica do Direito Internacional Público85.

Assim, a natureza do 1.º processo por incumprimento difere da justiça internacional clássica, nos seguintes aspetos principais86-87:

a) A jurisdição do Tribunal de Justiça é obrigatória (ou seja, opera pelo simples

facto dos Estados pertencerem à U.E.) e não pode ser sujeita a reservas88, ao

contrário da jurisdição clássica do Tribunal Internacional Justiça (TIJ) que é facultativa, estando dependente do acordo das partes em cada caso (art. 36.º, 1.º parágrafo do Estatuto to TIJ), exceto se os Estados já tiverem previamente reconhecido a jurisdição do TIJ (nos termos que lhes aprouver, podendo apresentar reservas a essa concessão de jurisdição) através de cláusula facultativa de jurisdição obrigatória (art. 36.º, 2.º parágrafo do Estatuto do TIJ);

84 Vide Capítulo III desta Parte I, infra.

85 Para uma análise detida dos elementos estruturantes da justiça internacional, em matérias como a

natureza da fonte de DIP institutiva da justiça, a natureza da jurisdição (se se trata de uma instituição ou de um órgão que opera no seio de uma Organização Internacional), as características da jurisdição, a natureza jurídico-internacional dos diferendos objeto da jurisdição, o âmbito da competência (material, subjectiva, temporal e espacial), a natureza e extensão da competência, a inexistência de meios contenciosos diversificados (ao contrário da justiça da U.E.), a legitimidade ativa e passiva (quase exclusiva dos Estados), o funcionamento do processo (fontes aplicáveis, a execução das sentenças) e o modo de financiamento dessa justiça: MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, Justiça Internacional – Lições, Parte I, Introdução, AAFDL, 2010, pp.123-170.

86 No sentido que seguidamente se apresentará: FAUSTO DE QUADROS/ ANA MARIA GUERRA

MARTINS, Contencioso da ..., pp. 260-261.

87 No mesmo sentido, mas com foco nas próprias características do TJUE à luz do Tratado de Lisboa:

MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, Introdução ao Contencioso..., pp. 54-59.

88 A jurisdição material do TJUE encontra-se genericamente referida no art. 19.º, n.º 3 TUE e, apesar

de obrigatória e não sujeita a reservas, não se apresenta como ilimitada. A principal exceção à jurisdição material do TJUE tem lugar nas matérias relacionadas com a PESC (art. 275.º, 1.º parágrafo TFUE), excepto nos casos apresentados no 2.º parágrafo do art. 275.º TFUE.

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b) A jurisdição é permanente, não se encontrando limitada no tempo. Na justiça internacional, muitos tribunais só são criados por um período limitado para julgar certos factos (e.g. Tribunais Penais Internacionais para o Rwanda e para a Ex-Jugoslávia) ou só podem exercer a sua jurisdição durante o período de tempo especificado no ato de aceitação (e.g. a concessão de jurisdição ao TIJ, por parte de um Estado);

c) A competência do TJUE é exclusiva89, uma vez que o art. 344.º TFUE obriga

os Estados-membros da U.E. a não submeterem qualquer diferendo relativo à interpretação ou aplicação dos Tratados a um modo de resolução diverso dos que neles estão previstos (já na justiça internacional clássica, os Estados podem – como no caso do TIJ – exluir certos litígios da competência dos tribunais e até submeter o mesmo litígio a duas instâncias internacionais distintas, simultaneamente);

d) A legitimidade processual ativa e passiva não é exclusiva dos Estados (ao contrário do TIJ), visto que as instituições da U.E. (e os próprios particulares, nos casos especificados no recurso de anulação e no processo por omissão) também podem demandar ou ser demandadas no âmbito dos meios contenciosos da U.E. (especificamente sobre o processo por incumprimento, também a Comissão – e não só os Estados-membros – pode demandar um Estado-membro junto do TJUE, por alegada violação de obrigações impostas pelo ordenamento jurídico eurocomunitário, encontrando-se igualmente certas especificidades em termos de legitimidade processual ativa e passiva

no processo previsto no art. 271.º TFUE90);

Mais especificamente sobre o 1.º processo por incumprimento, cumpre analisarmos dois pontos: a natureza objetiva do processo e; a natureza declarativa do 1.º acórdão por incumprimento. Sobre a primeira, importa repetirmos que apenas importa a existência de violação estadual de direito da U.E., sendo irrelevante a (in)existência de culpa ou quaisquer outras considerações

89 Num sentido diferente, já vimos que também a competência do TJ no processo por incumprimento

é exclusiva (por força do art. 256.º, n.º 1 TFUE a contrario), uma vez que não pode ser partilhada com os restantes tribunais que compõem o TJUE (de momento, apenas o Tribunal Geral, o qual acumulou as funções do recém extinto Tribunal da Função Pública).

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subjectivas91. Sobre a segunda, cumpre dizer que tal acórdão tem natureza

(predominantemente) declarativa, uma vez que, na maioria dos casos, o TJ se limita a verificar a existência ou não de incumprimento por parte do Estado-membro, pelo que, sendo o acórdão declarativo e não constitutivo do incumprimento, retroagem os efeitos da decisão à data em que teve lugar a violação de Direito da U.E92. No entanto, tal não significa que todo o processo por incumprimento tenha uma natureza declarativa, uma vez que a possibilidade de o TJ aplicar a sanções a um Estado no decurso de uma 2.ª ação por incumprimento (ou de uma 1.ª ação por

incumprimento, no caso específico do art. 260.º, n.º 3 TFUE93), parece melhor

conferir uma competência de plena jurisdição ao TJ e uma natureza condenatória ao 2.º acórdão por incumprimento (ou ao 1.º acórdão, se se tratar de um proferido ao abrigo do art. 260.º, n.º 3 TFUE e que aplique sanções a um Estado), como melhor

veremos no segundo capítulo da 1ª parte desta investigação94. Da mesma forma, e

já mesmo antes da previsão de uma 2.ª ação por incumprimento pelo Tratado de Maastricht, se discutia se o processo por incumprimento não ultrapassava os limites de um contencioso de mera declaração/legalidade, fazendo antes parte do contencioso de plena jurisdição, nomeadamente por força do teor dos acórdãos proferidos pelo TJ, nomeadamente em casos em que este órgão não se limitava a declarar o incumprimento estadual, indicando igualmente quais as medidas

91 Tal já tinha sido por nós referido e melhor explanado no ponto 1.2 deste estudo, supra.

92 Em Direito Internacional, o carácter declarativo de um acórdão afere-se pelo facto de o Tribunal

em causa se limitar a reconhecer ou a negar a existência de um direito. No entanto, a natureza declarativa do acórdão é algo discutível, pois por vezes o TJ não se limita a constatar a declaração do incumprimento, estipulando também quais as medidas conretas que o Estado deve adotar para dar cumprimento ao acórdão e repor a legalidade. Neste sentido, indicando jurisprudência do TJ que o confirma: FAUSTO DE QUADROS/ ANA MARIA GUERRA MARTINS, Contencioso da ..., pp.252-253. Para mais, vide ponto 2.5. da Parte I, infra e jurisprudência e doutrina aí referidas em rodapé, onde nos debruçamos sobre a questão em maior pormenor.

93 Vide ponto 3.2. da Parte I, infra. 94 Vide ponto 2.5. da Parte I, infra.

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específicas que o Estado deveria adotar95, tema que abordaremos mais adiante,

quando falarmos da natureza jurídica de todo o processo por incumprimento96.

Acrescentemos também que, não obstante a natureza declarativa deste 1.º processo, o TJ goza de um poder de limitação temporal dos efeitos declarativos dos seus acórdãos, proferidos ao abrigo do art. 260.º, n.º 1 TFUE. Tal poder pode ser retirado de uma aplicação analógica do art. 264.º, 2.º parágrafo TFUE, que diretamente o confere ao TJ no âmbito de um recurso de anulação. Assim, tem-se entendido que tal limitação temporal de efeitos dos acórdãos do TJ é possível, não só em sede de recurso de anulação e de processo por omissão, mas também no caso de um processo por incumprimento ou de um processo de questões prejudiciais. Note-se que mesmo que o preceito referido não existisse, tal poder ainda seria tido como admissível, enquanto concretização de um princípio geral de direito – o

princípio da segurança jurídica97. No entanto, este poder deve ser aplicado

excecionalmente, tendo primazia em casos em que a declaração de uma violação

possa prejudicar relações jurídicas estabelecidas de boa fé98-99. Por outro lado, as

95 Com efeito, a competência declarativa do TJ numa 1ª ação por incumprimento impede-o de

determinar ou impor medidas para eliminação do incumprimento. No entanto, como também fez notar a Advogada-Geral Verica Trstenjak, nas suas Conclusões de 28 de Março de 2007, apresentadas no âmbito do Proc. C-503/04 (parágrafo n.º 41), “não se deduz da limitação dos poderes do Tribunal de Justiça na acção por incumprimento do Tratado que lhe seja proibido em geral apresentar no acórdão reflexões próprias sobre o tipo e a extensão das possibilidades de regularização existentes no caso em questão”. Conclusões disponíveis em:

http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=62845&pageIndex=0&doclang=PT&mode=l st&dir=&occ=first&part=1&cid=36358

(acedido em: 27/04/2017)

96 Ponto 2.5. da Parte I, infra, já referido.

97 Neste sentido, indicando referências jurisprudênciais do TJ: KOEN LENAERTS, IGNARE MASELIS,

KATHLEEN GUTMAN, EU Procedural ..., p.206.

98 Acórdão do Tribunal de Justiça de 24 de Setembro de 1998 – Comissão das Comunidades Europeias

c. República Francesa (Processo C-35/97), parágrafo n.º 49. Disponível em:

http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=44111&pageIndex=0&doclang =PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4196

(acedido em: 27/04/2017)

99 Um exemplo será quando exista um risco de repercussões económicas graves devidas, em especial,

ao número elevado de relações jurídicas constituídas de boa fé, com base em regulamentação considerada validamente em vigor, e quando se verifica que os particulares e as autoridades nacionais foram incitados a um comportamento não conforme com a regulamentação comunitária, em virtude de uma incerteza objetiva e importante quanto ao alcance das disposições comunitárias, incerteza para a qual tenham eventualmente contribuído os próprios comportamentos adotados por outros Estados-Membros ou pela Comissão. Neste sentido: Acórdão do Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 2009 – Comissão Europeia c. República Italiana (Processo C-387/05), parágrafo n.º 58. Disponível em:

http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=76811&pageIndex=0&doclang =PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=4503,

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consequências financeiras que possam decorrer para um Estado, por força de um acórdão do Tribunal de Justiça não justificam, per se, a limitação dos efeitos de um acórdão do Tribunal (isto porque tal acabaria por reduzir de forma substancial a protecção jurisdicional dos direitos que os particulares obtêm do Direito da União Europeia100).

Por fim, uma nota específica aos efeitos de um acórdão por incumprimento no âmbito do direito processual português – prevendo a alínea f) do art. 696.º do Código de Processo Civil a possibilidade de interposição de recurso extraordinário de revisão de decisão transitada em julgado, quando a mesma “seja inconciliável com

decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado português”, tal abrangerá não só os tradicionais casos da jurisprudência do Tribunal

Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), mas também os acórdãos declarativos de

incumprimento imputável ao Estado português101, assim como quaisquer outras

decisões de instituições internacionais jurisdicionais e de órgãos jurisdicionais de todas as organizações internacionais, para-universais ou regionais de que Portugal seja parte102.

100 Neste sentido, o acórdão proferido ao abrigo do já referido Processo C-35/97 (nomeadamente o

seu parágrafo n.º 52).

101 No mesmo sentido, MARIA LUÍSA DUARTE, Direito do Contencioso..., p. 274.

102 Neste sentido, reportando-se ao então art. 771.º, al. f) do Código de Processo Civil de 1995: MARIA

JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, O regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas e o Direito da União Europeia, Coimbra, Almedina, Fevereiro, 2009, pp. 79-82; já na vigência do Novo Código de Processo Civil, analisando simultaneamente o art. 696.º, f) CPC e a norma paralela do art. 449.º, n.º 1, g) do Código de Processo Penal (CPP), indicando ainda que o art. 696.º, f) CPC se aplica não só aos acórdãos por incumprimento do TJ, mas também aos acórdãos prejudiciais deste órgão e, muito excecionalmente, aos acórdãos de legalidade do TJUE (i.e., proferidos no âmbito de recurso de anulação ou de processo por omissão), na medida em que considerem inválido um ato de direito derivado ou declarem uma dada omissão de um órgão ou organismo da U.E. contrária aos Tratados, com repercussões ao nível da Ordem Jurídica nacional, vide também a última autora em Introdução ao Contencioso..., pp. 300-312.

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Capítulo II – Da 2.ª ação por incumprimento e da sua