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PARTE II DA FASE PÓS-CONTENCIOSA DO PROCESSO POR INCUMPRIMENTO E DOS

1.2. O caso vertente: Comissão c Portugal

2.2.4. O respeito pelo princípio do caso julgado (res judicata)

violação do princípio do caso julgado, através da propositura de uma 2.ª ação de incumprimento ao abrigo do art. 260.º, n.º 2 TFUE (3.ª ação, no total). Apesar de defender a não violação do princípio do non bis in idem, o Advogado-Geral reconhece que uma 2.ª ação de incumprimento proposta ao abrigo do art. 260.º, n.º 2 TFUE seria inadmissível, “na medida em que se

caracterizaria por uma identidade de facto e de direito com o acórdão anterior proferido ao abrigo do artigo 260.° TFUE”, sendo uma “simples repetição da constatação de falta de execução do acórdão de incumprimento ao abrigo do artigo 258.° TFUE”472. No entanto, o Advogado-Geral não exclui este procedimento em dois casos: alteração evidente do quadro do litígio, se o Estado-Membro tiver tomado medidas que se revelem amplamente insuficientes para efeitos da execução do acórdão proferido ao abrigo do artigo 260.°, n.° 2, TFUE e; evolução da execução de um acórdão que declara um incumprimento factual de natureza complexa a ponto de justificar uma diminuição futura da sanção pecuniária compulsória.

Concordamos com a inadmissibilidade preconizada pelo Advogado- Geral, uma vez que o objeto/incumprimento da 3.ª ação seria o mesmo que o das anteriores, correspondendo ao mesmo pedido (condenação por incumprimento do acórdão declarativo do TJ) e causa de pedir (o incumprimento e seus fundamentos permaneceriam os mesmos). A admissibilidade dessa nova ação violaria a parte decisória dos dois acórdãos anteriores do TJ, abrangidos pelo princípio do caso julgado.

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Quanto aos casos apresentados pelo Advogado-geral, nos quais poderia ter lugar esta 3.ª ação, começemos por referir que o 2.º exemplo deve ser considerado inadmissível por o TJ já poder apreciar o nível de cumprimento das obrigações de um Estado na sua 2.ª ação, como apontámos. Se não fez, não poderá exercer essa competência numa 3.ª ação, relativamente a um mesmo incumprimento que apenas se encontra numa distinta fase de cessação, por parte do Estado. Quanto ao primeiro caso, parece que não podemos perder de vista o objeto do processo. Se o objeto desse novo processo é distinto do dos dois acórdãos anteriores, então a solução deverá passar pela propositura de um novo processo por incumprimento ao abrigo do art. 258.º TFUE, não do art. 260.º, n.º 2 TFUE. Nesta conclusão está mais presente o respeito pelos direitos de defesa dos

Estados-membros e não tanto a violação do princípio do caso julgado473. Se

numa 1.ª ação por incumprimento, a Comissão se encontra obrigada a reiniciar a fase pré-contenciosa, sempre que o objeto do processo for alterado, não se compreenderia, por maioria de razão, como é que essa instituição poderia propor, de imediato, uma ação condenatória ao abrigo do art. 260.º, n.º2 TFUE, relativamente a um objeto que não se confunde com o dos dois acórdãos anteriores (ainda que tenha surgido da execução dos mesmos e alterado o quadro do litígio) e que ainda não foi declarado por um

primeiro acórdão474. Tal violaria os direitos de defesa dos Estados-membros,

que não teriam direito a uma fase pré-contenciosa mais formal (porque composta pela carta de notificação e por um parecer fundamentado,

473 Com efeito, se o incumprimento alegado/ objeto apresentado é novo, poderia ser proposta uma

nova ação ao abrigo do art. 260.º, n.º2 TFUE, sem que se estivesse a violar a força de caso julgado dos dois acórdãos anteriores. No entanto, estar-se-ia a iniciar um procedimento contra tractuum (ou pelo menos praeter tractuum), na medida em que se estaria a propor uma ação fora do procedimento delineado nos arts. 258.º a 260.º TFUE que, salvo exceções previstas no próprio Tratado, deve iniciar- se por uma primeira ação declarativa, proposta ao abrigo do art. 258.º TFUE. Uma ação sobre um novo objeto proposta diretamente ao abrigo do art. 260.º, n.º 2 TFUE (podendo-se, desde logo, determinar a aplicação de sanções) diminuiria os direitos de defesa dos Estados previstos nos Tratados, pois este últimos gozam de uma fase pré-contenciosa mais generosa (que não se cinge apenas à carta de notificação, ao contrário da 2.ª ação) e uma fase contenciosa mais favorável (pois, em caso de incumprimento, o TJ limita-se a declarar a extensão do mesmo, não condenando o Estado no pagamento de sanções).

474 Foi uma das observações apresentadas pelo Governo alemão, no âmbito do Processo C-292/11 P,

indicando que “no âmbito de uma acção por incumprimento ao abrigo do art. 258º TFUE, há que iniciar um novo procedimento quando são invocadas novas acusações contra as medidas adoptadas na pendência do processo, para fazer face às objecções da Comissão”. Idem, parágrafo n.º 78.

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enquanto que, com o TL, a fase pré-contenciosa das ações previstas no art. 260.º, n.º 2 TFUE passou só a contemplar o parecer fundamentado), nem a uma fase contenciosa que culminaria num acórdão meramente declarativo.

Assim, se esta alteração evidente do quadro do litígio se reflecte num novo objeto processual, deverá ser proposta uma 1.ª ação de incumprimento ao abrigo do art. 258.º TFUE. Esta alteração é passível de acontecer quanto mais restrito for o incumprimento declarado pelo TJ (como aconteceu no caso Comissão/Portugal, que estudámos). Como refere o Advogado-Geral Jääskinen, um incumprimento pode ser estrutural e generalizado, podendo abranger “uma grande variedade de fenómenos jurídicos ou factuais

constitutivos de infrações ao direito da União, que ultrapassam uma simples confirmação da incompatibilidade deste com uma disposição de direito nacional”475. Ao nível dos incumprimentos por atos nacionais legislativos, o TJ tem duas opções: “ou (…) considera que a violação do direito da União

consiste na manutenção em vigor, na ordem jurídica nacional, de uma disposição que conflitua com o direito da União (…) ou [considera que] o Estado-Membro deve adotar medidas que tenham por objeto tanto a revogação da disposição em causa como a produção de um novo ato compatível com o direito da União”476. No primeiro caso, ao revogar o ato violador (pondo fim ao incumprimento declarado pelo Tribunal), o Estado poderá alterar o quadro do seu litígio com a Comissão, se não adotar um novo ato (o que poderá configurar um novo incumprimento por omissão) ou se legislar num sentido que incumpre as normas de direito da U.E. (quer sejam as mesmas normas que foram violadas pelo ato revogado, ou normas distintas de direito da U.E.). No segundo caso, será mais difícil haver um novo incumprimento em virtude da cessação de um incumprimento anterior, na medida em que o próprio TJ declararia no seu acórdão quais as medidas específicas a tomar para pôr fim a esse incumprimento. Assim, não é de esperar que, nesses casos, as novas medidas propostas pelo TJ levem, elas próprias, a outro incumprimento do Estado por força da sua excecução. No caso Comissão c.

475 Idem, parágrafo n.º 27.

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Portugal, este último revogou o Decreto-lei em causa, pondo fim ao

incumprimento declarado pelo TJ. Mas essa revogação deu-se através da entrada em vigor de uma nova lei que, para a Comissão, continuava a incumprir o direito da União pertinente. Esta alteração do quadro do litígio, na medida em que altera o objeto do mesmo (já não está em causa a revogação de um ato mas a disciplina jurídica de outro ato distinto), deverá ser alvo de uma nova ação de incumprimento a propor, pela Comissão, ao abrigo do art. 258.º TFUE, não do art. 260.º, n.º 2 TFUE. Para evitar estas situações, e como já mais acima se disse477, a Comissão deverá definir do modo mais abrangente (mas específico) possível a extensão do incumprimento que imputa ao Estado-membro na fase pré-contenciosa e na sua petição da ação por incumprimento (focando-se menos na ilicitude da disposição nacional e mais no resultado a atingir ao abrigo das disposições relevantes do Direito da União), de modo a guiar o TJ numa declaração de incumprimento estadual igualmente abrangente, que verse diretamente na parte decisória sobre a desconformidade material com o Direito da União das disposições nacionais em análise e não sobre a mera desconformidade formal ultrapassável com a revogação de tais disposições.