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De tudo quanto se expôs importa agora averiguar qual a natureza jurídica dos contratos de empréstimo público.

Segundo Sousa Franco, existem três posições relativas à natureza dos contratos de empréstimo público. Uma das posições defende que se trata de um ato unilateral de soberania, outra das posições defende que se trata de um contrato de direito público 138, a outra posição defende que se trata de um contrato de direito privado.

Para este autor a questão deve ser resolvida de acordo com cada ordenamento jurídico, sendo que no caso da nossa ordem jurídica interna parece ser de difícil contestação que se está perante uma figura de natureza contratual. Com efeito, o processo de emissão de dívida pública tem origem na lei (ou ato equivalente), isto é, de uma conduta que se traduz na prática num ato unilateral da Administração. No entanto, esse ato unilateral constitui uma manifestação de vontade do Estado em contratar, designadamente mediante oferta pública de subscrição/aquisição. Por outro lado, a manifestação da vontade de contratar por parte do mutuante resulta diretamente do ato de aceitação /subscrição do contrato.

Para Sousa Franco, a perfeição do contrato resulta da conjugação destas duas vontades. Com o acordo de vontades e a tradição do dinheiro realiza-se o fim de empréstimo e nasce a respetiva relação jurídica perfeita, pelo que se pode afirmar que a relação jurídica de empréstimo público nasce do contrato de empréstimo público.

Para este autor, trata-se de um contrato real139, cujos elementos essenciais são a existência de um mutuário público; um mutuante privado ou público; e a

138 Neste sentido, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos consideram que o

contrato de empréstimo público é um contrato administrativo no âmbito do direito financeiro e fiscal, in “Contratos Públicos – Direito Administrativo Geral”, Dom Quixote, 2008, p.71.

78 tradição do dinheiro entre o mutuante e o mutuário

Fator importante apontado por Sousa Franco é a circunstância dos entes públicos atuarem nesta matéria sem poderes de autoridade e fora de um regime financeiro de Direito Público.

Os poderes de autoridade constituem a forma típica de agir dos entes públicos, isto é, “constituem posições jurídicas caracterizadas pela capacidade de,

unilateralmente, produzirem efeitos na esfera jurídica de outros sujeitos contra, ou independentemente da vontade destes” 140.

Partindo deste conceito é fácil apreender que a utilização de poderes de autoridade pelo Estado nos empréstimos públicos poderia levar à introdução de alterações originárias ou supervenientes, de forma unilateral, na relação jurídica acordada pelas partes. O Estado ao abdicar dos seus poderes de autoridade assume a relação creditícia que constituiu como um sujeito privado e em plena igualdade de forças com a contraparte. Aliás, caso assim não fosse, muito dificilmente o Estado conseguiria obter financiamento através de empréstimos públicos, na medida em que os credores certamente não quereriam correr o risco de ver as condições de reembolso e de remuneração acordadas alteradas unilateralmente pelo devedor público.

Refere Sousa Franco que, em regra, os contratos de empréstimo público quando abertos ao público são, formalmente, contratos de adesão e que a relação de empréstimo público tem elementos comuns a qualquer relação contratual de natureza obrigacional, pelo que se deve aplicar diretamente o direito financeiro e supletivamente (como direito comum) do direito das obrigações.

Os elementos essenciais do contrato141 são formados pelos direitos e recíprocos deveres que emergem da operação de subscrição, designadamente o direito de reembolso do capital e o dever de reembolsar: o direito a juros e dever de remunerar; e o prazo e as condições essenciais de pagamento (a

140 Fausto de Quadros, José Manuel Sérvulo Correia, Rui Chancerelle de Machete, José Carlos

Vieira de Andrade, Maria da Glória Dias Garcia, Mário Aroso de Almeida, António Políbio Henriques, José Miguel Sardinha, com a colaboração de Tiago Macieirinha, “Comentários à

revisão do Código de Procedimento Administrativo, Almedina, 2016, p.16.

141 Os elementos acessórios da relação jurídica de empréstimo público podem ser os prémios

79 designada “amortização”), tanto do capital como dos juros.

Para Eduardo Paz Ferreira142, a natureza do contrato de empréstimo era perfeitamente clara.

Refere o autor que “com a nova definição legal de contrato administrativo143

surgiram as primeiras afirmações expressas e implícitas de que o contrato de empréstimo público seria um contrato administrativo.”

Porém, Eduardo Paz Ferreira é categórico na afirmação de que tais posições não podiam ser aceites, porquanto não se encontrava na disciplina do contrato traços reveladores de um regime exorbitante144, bem como devido ao facto de o próprio interesse público, que funciona sempre como elemento de referência e modelação do contrato, impor que o Estado abdique dos seus poderes de autoridade, para se apresentar em pé de igualdade com os particulares que concorrem no mercado de capitais.

Este autor defendia, também, que não podiam ser aceites as posições que defendessem o contrato de empréstimo como pertencente à área da contratação pública, ainda que não enquadráveis na categoria dos contratos administrativos. É que essas posições pressupunham uma conceção do direito financeiro que conduziria ao entendimento de que toda a atuação do Estado no domínio da obtenção de receitas tivesse sempre natureza pública, o que era contraditório com a existência de múltiplas receitas de natureza privada do Estado.

Não obstante, e ainda que entendesse que o contrato de empréstimo fosse um contrato de direito privado, Eduardo Paz Ferreira reconhecia a existência de normas de direito público no procedimento, designadamente, na exigência de autorizações parlamentares e em toda uma outra série de controlos. Faz, contudo, notar que esses elementos de direito público situam-se num momento

142 Obra cit., p. 466-474.

143 À data vigorava a Lei do Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovada pelo

Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho e o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de abril e o e o Código do Procedimento Administrativo foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de novembro.

144 Maria João Estorninho na sua obra “Requiem pelo contrato administrativo”, Almedina, 1990,

aludia a um “complexo da exorbitância” para se referir aos vários autores defensores do contrato administrativo que ao longo dos tempos consideravam que o que distinguia o contrato administrativo do contrato de direito privado era a existência de normas exorbitantes que nunca poderiam ser encontradas no contrato de direito privado.

80 prévio ao da celebração do contrato e estão relacionados quer com a necessidade de assegurar o equilíbrio entre os poderes dos diversos órgãos de soberania, quer com a defesa da esfera privada dos particulares, porém, não produzem efeitos diretos na relação jurídica que se estabelece entre o Estado e os credores.