• Nenhum resultado encontrado

2.2 A NECESSIDADE POLÍTICO CRIMINAL DA INTERVENÇÃO PENAL EM MATÉRIA ECONÓMICA

II O BEM JURÍDICO-PENAL

2.2 A NECESSIDADE POLÍTICO CRIMINAL DA INTERVENÇÃO PENAL EM MATÉRIA ECONÓMICA

Numa época marcada por um movimento de descriminalização, em que o Direito Penal só deveria intervir, quando se verificassem lesões insuportáveis, das condições comunitárias essenciais ao livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem, evidenciam-se processos de neocriminalização.185

Contudo, a identificação de novas necessidades colectivas, advindas de transformações sociais, económicas, culturais, assim como de outras, reclamam um alargamento do conceito de bem jurídico de forma a serem abrangidas, por este específico sistema de controlo social. O direito económico foi um dos domínios, em que esta necessidade de intervenção penal se mais se fez sentir. O bem jurídico no direito penal económico possui como função aplicar ordem e limites no sistema e construir de forma coerente, o critério de estruturação legislativa. Ao cumprir esta função, deve ter-se em conta que o direito penal económico é um dos sectores, onde é mais difícil, definir o conceito de bem jurídico, pois este abrange uma diversidade de interesses, imbuídos de uma relação dialéctica que oscila entre a união e a

184

Conforme DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, obra citada, pág. 114.

185

59 oposição entre interesses individuais e de grupo, e entre interesses difusos e interesses referentes à comunidade enquanto unidade.186

Depois de um período económico, de enorme progresso industrial, potenciado pelo desenvolvimento técnico e científico, com a Primeira Guerra Mundial, tudo se alterou com, o aumento do desemprego e da miséria, reconhecendo-se o falhanço, a nível económico da eficácia natural, do mercado reclamou-se uma maior intervenção do Estado, num movimento de regulação na sociedade, nomeadamente ao nível económico, abandonando um substrato de

laissez-faire, laissez-passer.

Silva Dias considera que, com a entrada em vigor do Estado Social, proteccionista e intervencionista, surgem exigências funcionais, quer do sistema económico, quer do sistema político-administrativo. Provoca-se também uma alteração a nível do Direito, este torna-se um instrumento de reforma e de correcção das desigualdades económico-sociais, adquirindo em volume e complexidade, o que perde em estabilidade e coerência. “Com efeito, à medida que

se vai quebrando a rigidez, a sistemacidade e a formalidade racionalista, a matéria jurídica vai adquirindo, em seu lugar flexibilidade, assistemacidade e materialidade. Flexibilidade para melhor se adaptar à matéria regulada, vaga e mutável por definição; assistemacidade porque, tendo a intervenção jurídica um sentido positivo, regulador, ela não só não obedece aos padrões de racionalidade como se não compadece com a pretensão de perenidade dos Códigos clássicos; materialidade dado que, como Weber, notou, o Direito tende a ser usado como meio através do qual o Estado realiza finalidades de condução e estabilização social.”

187

O Direito Penal Económico encontra-se essencialmente ligado às alterações sociais e económicas desta época, o que lhe concedeu um caracter instável e dinâmico.188Segundo Eb. Schimdt a intervenção do Estado, na vida económica expôs dois espaços de interesses autónomos, de um lado o espaço de “interesses vitais económico-materiais”, que nos surgem primeiramente como interesses do Estado, na manutenção da sua capacidade de intervenção necessária à prossecução das suas tarefas e interesses, que se podem identificar com o interesse na salvaguarda e manutenção criada pelo próprio Estado, para a economia, no seu conjunto, ou nos seus ramos específicos; ou secundariamente, como interesses dos cidadãos, individualmente considerados, numa intervenção racional e adequada à sua preservação nos

186

Conforme PEDRAZZI, Cesare. El bien jurídico en los delitos económicos , apud SOUSA, Susana Aires de, Os Crimes

Fiscais, obra citada, pág. 193

187

DIAS, Augusto Silva. Delicta in se e Delicta Mere Proihibita, obra citada pág. 220.

188

60 bens de consumo e no desenvolvimento de uma actividade idêntica à sua vontade de realização profissional e económica. Noutro plano está o espaço dos “interesses

administrativos” que, em consequência das tarefas do Estado na vida económica, resultam das

relações entre as autoridades administrativas e os cidadãos individuais.189

Como refere Costa Andrade, o aparecimento deste direito penal de ordem, não se ficou a dever, apenas às exigências de índole pragmática, à sua maior flexibilidade e capacidade de resposta às necessidades de um intervencionismo em constante transformação, ficou igualmente a dever-se, à viragem registada no plano dogmático, com a acentuação da ideia de violação de dever à custa da ideia de lesão de bem jurídico como fundamento da ilicitude jurídico-penal, reforçando-se a componente ática do direito penal, “extremando-o a campos

de antinormatividade de menor carga ética”190

Para Figueiredo Dias, mostrando-se as penas como medidas coactivas, com um enorme grau de efectividade, houve uma tendência para de as fazer intervir sempre que se julgasse necessário dotar os imperativos de uma especial força de vigência, mesmo quando essa violação se situasse em zonas cada vez mais alargadas da ordem jurídica. “O legislador foi- se

deixando seduzir” pela ideia prejudicial mas difícil de evitar de colocar as sanções criminais

ao serviço dos mais diversos fins da política criminal.191

Até algumas décadas atrás, o Direito Penal Económico era entendido como uma reduzida parte do direito penal, que reforçava com a intimidação penal, o direito económico administrativo, consistia portanto num segmento do direito penal administrativo, que com a Segunda Guerra Mundial e o surgimento da figura das contra-ordenações passaria a ser aliviado de uma parte do seu conteúdo, e prosseguiria sob a designação de Direito secundário, compreendido em sentido material.192Apesar da autonomia legal e dogmática, a delimitação do objecto do direito penal económico, ainda não conseguiu consolidação doutrinal, esta encontra-se manifestamente dependente, da superação das dificuldades de definição e caracterização dos bens jurídicos, tutelados pelo próprio direito económico, ramo do Direito que se caracteriza pela sua mobilidade.

189

SCHIMDT, Eb. Das neue westdeutsche Wirtschaftsstrafrecht apud ANDRADE, Manuel Costa. Contributo para o

conceito de contra-ordenação ( a experiência alemã), in: Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. I,

pág. 94.

190

ANDRADE, Manuel Costa, Contributo para o conceito de contra-ordenação ( a experiência alemã), obra citada pág. 92.

191

DIAS, Jorge Figueiredo. Para uma dogmática do Direito Penal Secundário: Um contributo para a reforma do Direito

Penal Económico e Social Português. in: Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. I, pág. 37.

192

61 Dado o dinamismo caracterizador deste ramo de Direito, existe dificuldade em perceber quais os bens jurídicos que este visa proteger. Por vezes o papel do bem jurídico, para determinadas construções dogmáticas, chega a ser meramente secundário enquanto critério definidor do Direito Penal Económico.193A dignidade penal destes bens, encontra-se afastada de uma essência axiológica, baseando-se antes numa consolidação histórica e social, influenciada directamente por uma orientação político-económica e resultando na maioria das vezes de uma enumeração normativo-formal efectuada pelo legislador.194

Quanto ao titular estes bens, consideram-se muitas das vezes afastados de uma referência individual, fazendo com que alguns autores, os qualifiquem como supra-individuais, por alusão expressa à sua instrumentalidade, relativamente ao indivíduo, por sua vez outros entendem que estes são autónomos enquanto bens jurídicos colectivos ou sociais. A própria construção da incriminação releva frequentemente o privilegiar do perigo da conduta, face á lesão efectiva do bem jurídico.195

Desde a referência da criminalidade económica, á tipologia do agente feita por Sutherland como sendo a “criminalidade de colarinho branco”, caracterização que não possui qualquer rigor científico, passando pelas concepções de Clinard e Quimmy, que ligam este tipo de criminalidade, a certas profissões ou como o crime, praticado no domínio da empresa. A insuficiência e a inadequação desta definição, são perceptíveis ao partir-se de uma perspectiva jurídico-penal.196

Existe também, quem limite o Direito Penal Económico, por uma definição formal ligada a aspectos substantivos e de tácticas criminalísticas, que resultam das dificuldades, na descoberta e julgamento das infracções, exigindo por isso um processo especializado e determinados, conhecimentos dos diversos órgãos formais de controlo, negando-se qualquer outra nota caracterizadora do crime contra a economia, esta concepção teria apenas um significado meramente criminalístico sendo por isso uma concepção errada. 197

193

SOUSA, José de Alfredo. Direito Penal Fiscal – uma prospectiva, in: Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. II, pág. 155.

194

Conforme SOUSA, Susana Aires de, Os Crimes Fiscais obra citada, pág. 197

195 Conforme SOUSA, Susana Aires de, obra citada, pág. 198 196

Conforme SOUSA, José de Alfredo, obra citada, pág. 155. CORREIA, Eduardo. Introdução ao Direito Penal Económico. in: Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. I, págs. 295 e 296. DIAS, Jorge Figueiredo,ANDRADE, Manuel da Costa. Problemática Geral das Infracções contra a Economia Nacional. in: Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. I, págs. 332 e 333.

197

Conforme SOUSA, José de Alfredo, Direito Penal Fiscal – uma prospectiva obra citada, pág. 155. CORREIA, Eduardo, obra citada págs. 295 e 296. DIAS, Jorge Figueiredo Dias, ANDRADE, Manuel da Costa Problemática Geral das Infracções obra citada, págs. 332 e 333.

62 A doutrina, tem procurado encontrar um critério de caracterização dos delitos económicos, nos quadros da ilicitude material, referenciada pela violação de bens jurídicos supra- individuais. 198 Existem diversas concepções doutrinais de princípio sobre o Direito Penal Económico.

Para alguns autores foi a partir da natureza colectiva ou supra-individual dos bens jurídicos, que se procurou definir materialmente o crime contra a economia, nomeadamente Klaus Tiedeman, para esta concepção enquanto o crime contra o património, atinge bens jurídicos inscritos na esfera de livre disponibilidade dos seus portadores concretos, em relação aos crimes contra a economia, este atinge interesses que o legislador, converte em supra- individuais, sendo por isso indisponíveis.199

Para outros doutrinadores deve-se partir não do bem jurídico tutelado mas da definição de Direito Económico desde que esta se definisse evidentemente e em termos de tutela de valores fundamentais duma colectividade organizada, valores que devido à sua importância o próprio Estado fosse o portador e o promotor. “Define-se assim Direito Económico como o direito da

direcção da Economia pelo Estado, como o conjunto das normas através das quais se traduz juridicamente a intervenção do Estado na economia- direcção e promoção (v.g. por meio de subvenções) No recurso ao direito penal para tutela destes mesmos valores se traduziria o Direito Penal Económico, como defesa penal da «economia nacional no seu conjunto ou das suas instituições fundamentais.” 200

Existe ainda uma outra parte da doutrina, que adopta uma postura mais crítica, concebendo o Direito Penal Económico, como domínio onde se pode encontrar um vasto conjunto de delicta

mere prohibita, cuja pertinência reside na mera proibição. E onde o bem jurídico-penal se

confunde com a ratio da norma incriminadora, num quase retrocesso a uma teoria metodológica do objecto da tutela penal. Devendo acrescentar-se que uma doutrina deste género “banaliza o conceito de bem jurídico quando este é indispensável para a construção

do crime do ponto de vista das garantias formais e substanciais. Acaba-se pois, por favorecer

198

Conforme SOUSA, José de Alfredo, obra citada, pág. 155. CORREIA, Eduardo, obra citada págs. 295 e 296. DIAS, Jorge Figueiredo Dias, ANDRADE, Manuel da Costa obra citada, págs. 332 e 333.

199

COSTA, José de Faria, ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre a concepção e os princípios do Direito Penal Económico:

Notas a propósito do Colóquio Preparatório da AIDP. in: Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. I,

pág. 350

200

63

a proliferação de objectos fictícios de tutela, que permitam opções de incriminação hipertrófica.”201

No último quartel do século transacto, transformações sociais provocadas pelo progresso da sociedade pós-industrial e dos processos de globalização, reflectiram-se numa redefinição do papel do Estado e numa reorganização da matéria jurídica em geral e da jurídico-penal em particular. Com o aumento da privatização e desregulação da economia que provocaram uma redução significativa nas formas clássicas de intervenção do Estado, como por exemplo a produção de bens e serviços e a assistência social, em prol da assunção de tarefas mais abstractas e indirectas de regulação social. O Estado transforma-se, num “Estado regulador”, assumindo uma “função preventivo-policial de supervisão e de inspecção” esta visava fundamentalmente assegurar o cumprimento de normas que regulam sectores da actividade social e económica, funcionando, nesta veste, o “Estado regulador” como “Estado- prevenção”.202

Para Hirsch, foram três, os domínios em que estas transformações sociais e políticas, afectaram o Direito Penal. O primeiro foi, este passar a ser constituído por tipos incriminadores, relacionados como novas situações de risco geradas pela acção humana nos domínios técnico, científico e económico. Estas situações foram apelidadas, pelos penalistas de Frankfurt, como “Direito Penal do Risco”. O segundo domínio tinha por objecto condutas, que até então eram sancionadas pelo Direito das Contra-ordenações, e que por via de uma nova valoração, adquiriram outra visibilidade social, que lhes assegurou a progressão à categoria de crime e em determinados casos a tipificação no Código Penal. Estas acções situam-se materialmente entre o ilícito penal e o ilícito contra-ordenacional.

O terceiro domínio englobava um aumento significativo da criminalização, que provocou quer uma antecipação, quer um agravamento da punibilidade, como por exemplo a delinquência associada à toxicodependência. 203