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III O BEM JURÍDICO TUTELADO PELO CRIME DE FRAUDE FISCAL

3.3 M ODELO M ISTO

Existem alguns autores, que autonomizam um modelo misto, que consiste na congregação de elementos integrantes dos modelos anteriores, sustentados em assegurar a protecção penal, tanto aos valores da verdade e da transparência, como aos interesses patrimoniais-fiscais.300 Entende Susana Aires de Sousa, que um modelo deste tipo estaria conjecturado pelo legislador, na tipificação do crime de Fraude Fiscal, no artigo 23.º do RJIFNA, na sua versão originária, na medida em que o dano patrimonial, se apresentava estranho ao tipo, mas a ele se

297

Conforme SOUSA, Susana Aires de. Os Crimes Fiscais, obra citada., pág. 280.

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Conforme SANTOS, André Teixeira dos. O Crime de Fraude Fiscal, obra citada pág.110. Segundo o autor isto conduziria a que um indivíduo que obtivesse uma vantagem patrimonial muito elevada, simplesmente a repartisse por diversos períodos declarativos, desde que a vantagem patrimonial referente a cada tributo ou a cada período declarativo não atingisse o limiar mínimo estabelecido legalmente para o crime de fraude, não cometesse qualquer crime.

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Conforme SOUSA, Susana Aires de. Os Crimes Fiscais, obra citada., pág. 281.

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88 unia através da mediação de um especifico elemento subjectivo, que se concretizava na “intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida”.301

Já Figueiredo Dias e Costa Andrade, entendem que, no âmbito do RJIFNA, já com as alterações do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, o legislador português, apesar de se inspirar no direito alemão, onde vigorava um modelo nitidamente patrimonialista, que coloca a tónica da infracção no dano causado à Administração, através de manobras enganosas do contribuinte, optou por um modelo misto, desde logo porque “a lei penal fiscal

portuguesa não inscreve o dano patrimonial entre os pressupostos objectivos da factualidade típica. Nem sob a forma de inflicção de um prejuízo ao Fisco, como redução do imposto liquidado ou obtenção de um reembolso, nem na forma da obtenção de um benefício indevido” Todavia, estes autores admitem que “Tudo se conjuga, assim, em abono da tese segundo a qual, são a segurança e a fiabilidade do tráfico jurídico com documentos no domínio específico da prática fiscal – e não o património fiscal como tal – que configura o bem jurídico directa e primacialmente protegido pela incriminação da Fraude fiscal.302

Alguns autores, entendem que o que releva na fraude fiscal não é tanto o lucro cessante do Estado, mas antes a conduta particularmente reprovável do contribuinte que se coloca em posição de ludibriar, a acção fiscalizadora da Administração Fiscal. Entendem que, as alterações do RGIT levam a concluir que a fraude fiscal não integra no tipo a violação do dever de pagar o imposto, mas antes a violação de outros deveres tributários, que podemos denominar em sentido amplo de deveres acessórios de cooperação, estes deveres pertencendo ao contribuinte, ou a terceiros que estabeleçam relação com ele demostram-se indispensáveis à obtenção da verdade tributária.303

Entende esta corrente doutrinária que, apesar de se atribuir relevo aos deveres de colaboração, isto não significa que se considere o crime de fraude fiscal, como um crime tipicamente formal ou de desobediência, alheio a qualquer referente pessoal e imune aos princípios da ofensividade e da culpa.304

Na doutrina portuguesa defende este modelo Nuno Pombo, que entende que o legislador optou por um regime que concilia, quanto ao interesse a proteger pela norma incriminadora, as duas grandes alternativas que referimos, “estruturando o ilícito na base da ofensa às

301

Conforme SOUSA, Susana Aires de. Os Crimes Fiscais, obra citada., pág. 69.

302

DIAS, Jorge de Figueiredo. ANDRADE, Manuel Costa. O Crime de Fraude Fiscal no novo Direito Penal Tributário Português (Considerações sobre a Factualidade Típica e o Concurso de Infracções), obra citada pág. 422 e ss,

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POMBO, Nuno, A Fraude Fiscal: A Norma Incriminadora, a Simulação e outras Reflexões, pág. 284

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receitas fiscais do Estado e em torno da violação dos deveres de colaboração. Se é certo que releva a violação de deveres que impedem sobre o contribuinte, violação tanto mais grave quanto é conhecido que cada vez mais os tributos assentam em experiências próximas, pelo menos em termos práticos de autoliquidação, não é menos verdade que o resultado pretendido, devidamente quantificado, por vezes até por escalões, não se escontra afastado.”.305Mesmo que se defenda que, na fraude fiscal existe uma protecção antecipada do património fiscal, entende o autor que não se pode sustentar que ele é o bem jurídico directamente tutelado por esta incriminação legal.306 Entende o autor que o desvalor da acção é absolutamente primacial, “sendo que o juízo desse desvalor não perde de vista o património

do Estado, mas nunca em termos concretos considerados, o que o coloca a salvo da tentação de converter as incriminações fiscais em simples capachos duma função meramente administrativa.”307.

Nuno Pombo conclui que ao seguir o modelo misto, não se pretende submeter os deveres de colaboração a uma função subalterna instrumental, em face da vertente patrimonial da relação tributária; porém também não pretende considerá-los como o bem jurídico tutelado pela incriminação, pois nem o património fiscal, nem os deveres de colaboração cumprem, isoladamente, esse desiderato. Prefere entender que o legislador consagrou um sistema, que alguns autores reclamam ser o próprio de um Estado Fiscal, justamente por se conceber o crime tributário como a adequada reacção à violação do dever de cidadania de pagar impostos, e não como delito puramente patrimonial ou de desobediência. 308

Augusto Silva Dias, ainda no âmbito do RJIFNA, entende que o legislador nacional, tinha preferido optar por um modelo misto na configuração do bem jurídico tutelado pelos crimes fiscais, enveredando por uma solução intermédia. que consistia na protecção do património fiscal do Estado e de valores de verdade e lealdade fiscal.309 Para este autor, o ilícito penal fiscal obedecia ao seguinte modelo: “o bem jurídico tutelado é constituído pelas receitas

fiscais no seu conjunto e a base normativa, cuja violação integra o desvalor da acção, é constituída pelos deveres de colaboração que municiam tecnicamente o dever geral de pagar imposto, dever fundamental de cidadania que, relacionando a conduta típica com as receitas

305

POMBO, Nuno, A Fraude Fiscal obra citada, págs. 285 e 286.

306

POMBO, Nuno, A Fraude Fiscal obra citada, pág. 286.

307

POMBO, Nuno, A Fraude Fiscal obra citada, pág. 287.

308

POMBO, Nuno, A Fraude Fiscal obra citada, págs. 290 e 291.

309

Conforme. DIAS, Augusto Silva, Crimes e contra-ordenações fiscais, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos

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fiscais e as respectivas finalidades, lhe confere ressonância e desvalor ético-social.”310. Contudo a instrumentalidade dos deveres de colaboração, relativamente ao dever geral de pagar impostos, explica que integrem o ilícito penal fiscal apenas os deveres ligados à obrigação tributária principal, e que a violação de deveres acessórios ou preparatórios tenham sido considerados pelo legislador fundamento de ilícito contra-ordenacional.311

Na jurisprudência nacional, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, da relatora Isabel Silva, de 12 de Março de 2014, adopta esta posição ao afirmar que “É conhecido o evoluir do

diferente posicionamento, quer na doutrina quer na jurisprudência, sobre o bem jurídico perseguido pelas infracções tributárias, para uns configurado como crime de dano (o dano patrimonial causado ao Estado), para outros crime de perigo (a protecção da verdade e transparência fiscais que se exige dos cidadãos perante a Administração Fiscal) e, por fim, a posição daqueles que consideram a solução de compromisso entre essas duas teorias (…).Estamos com aqueles que consideram que o bem jurídico é complexo, protegendo-se não só o património como também a relação de confiança materializada nos deveres de colaboração/informação., na medida em que estes são instrumentais para a correcta e eficaz percepção dos tributos.”312