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III O BEM JURÍDICO TUTELADO PELO CRIME DE FRAUDE FISCAL

3.5 P OSIÇÃO ADOPTADA

Iremos agora reflectir sobre qual o bem jurídico protegido nos crimes fiscais, como já analisamos anteriormente não é possível obter um conceito positivo de bem jurídico que funcione como fórmula para se reconhecer automaticamente, aquilo que é punível e excluir aquilo que carece de punibilidade.336 Contudo, apesar do bem jurídico não facultar a conduta que tem de ser incriminada, indica-nos, em conjunto com os princípios do Direito Penal da fragmentariedade, da subsidiariedade e da ultima ratio e com as finalidades das penas, o que pode ser legitimamente tutelado. O bem jurídico protegido pelas normas criminais fiscais há- de ser expressão das condições essenciais da realização humana em sociedade, reflectidas nos valores do Estado social de direito e sustentadas pelas normas constitucionais.337

Existe uma certeza quanto à dignidade penal de determinadas condutas com relevância fiscal, por se tratar de comportamentos detentores de uma forte danosidade social.

Assim, a conformação do ilícito fiscal e das condutas que hão-de entrar na esfera penal devem sujeitar-se antes a uma selecção criteriosa dos princípios da fragmentariedade, subsidiariedade e de ultima ratio e ao exame crítico do bem jurídico tutelado. Sendo que este tem de pré- existir e orientar materialmente as incriminações fiscais.338

Entendemos que o bem jurídico protegido pelas incriminações fiscais é de cariz patrimonialista. Contudo, devemos precisar o conceito de património estadual, visto este ter um carácter demasiado vasto e vago. Para Sousa Franco o património do Estado na sua interpretação ampla “é constituído pelos bens susceptíveis de satisfazerem necessidades

económicas que o Estado é titular e pelas responsabilidades que sobre eles impedem: ele tem sempre um activo (bens) e um passivo (responsabilidades) ”339 O activo patrimonial é constituído por todos os bens (materiais e imateriais, direitos sobre bens ou de crédito) de que o Estado seja titular e susceptíveis de avaliação pecuniária; o passivo patrimonial abrange as situações passivas que impendem sobre o Estado e cujo conteúdo seja susceptível de avaliação pecuniária. Esta vasta noção de património estadual pode ter uma delimitação subjectiva, uma vez que todas as entidades públicas, desde que possuam personalidade

336

Conforme SOUSA, Susana Aires de, obra citada., pág. 288.

337Conforme SOUSA, Susana Aires de .Sobre o bem jurídico-penal protegido nas incriminações fiscais., obra

citada pág. 311

338

Conforme SOUSA, Susana Aires de .Sobre o bem jurídico-penal protegido nas incriminações fiscais., obra citada pág. 315

339

FRANCO, António L. Sousa, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Volume I, pág. 303 apud SOUSA, Susana Aires de .Sobre o bem jurídico-penal protegido nas incriminações fiscais., obra citada pág. 317

96 jurídica podem dispor de património próprio, e múltiplas delimitações objectivas, nomeadamente o património real, património financeiro, património geral, patrimónios especiais, património mobiliário e património imobiliário. 340O conceito de património do Estado revela-se demasiado complexo e fragmentado, devendo por isso como já referimos proceder a uma concretização deste conceito de modo a que este possa ser objecto de tutela pelas incriminações fiscais.

No nosso entender a melhor solução é a defendida por Susana Aires de Sousa que considera que o objecto de protecção das infracções fiscais de natureza penal “coincide com o

património fiscal do Estado, rectius, com o conjunto das receitas fiscais de que o Estado é titular. Trata-se, naturalmente, de um elemento que integra o património estadual, mas com uma autonomia própria, decorrente de um regime especial (fiscal) que lhe confere uma unidade de sentido.”341. No seu entender o bem jurídico tutelado pelos crimes fiscais coincide com a obtenção das receitas fiscais.

Podemos concluir que nos encontramos perante um bem jurídico de natureza colectiva, ou seja que pertence a todos os indivíduos da comunidade, sendo a sua administração adequada feita através do Estado, para que este possa prosseguir os objectivos económicos e sociais fundamentais para a sociedade. A natureza colectiva e supra-individual do bem deriva do facto de a sua utilidade poder ser usufruída por todos sem que ninguém deva ser excluído desta fruição. Ou seja ninguém pode ser excluído dos benefícios que derivam das receitas fiscais, contudo não devemos esquecer que estes recursos são limitados e vão sendo consumidos ao longo do ano fiscal. Sendo a própria sociedade na sua universalidade que vai absorvendo durante o ano as receitas fiscais, e, não sendo possível em regra, determinar o consumo que cada indivíduo tem daquele bem, para que a fruição das receitas seja passível de ser individualizada. Porém, cada indivíduo sabe que o benefício que retira é autónomo da sua contribuição, para aquele bem. Atentando às circunstâncias de não haver possibilidade de excluir ninguém do benefício deste bem, e da distância quantitativa entre a contribuição para esse bem e o montante global das receitas fiscais, cada indivíduo sabe que a sua não contribuição não coloca em causa a produção do bem, colocando-se, deste forma, numa posição em que pode tirar proveitos do bem sem contribuir para o mesmo. Justificando-se

340 FRANCO, António L. Sousa, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Volume I, pág. 305 e 306 apud SOUSA, Susana

Aires de .Sobre o bem jurídico-penal protegido nas incriminações fiscais., obra citada pág. 317

341

97 assim a criminalização desta conduta, devendo no entanto atender-se aos princípios e garantias do direito penal.342

Ao entendermos que o bem protegido pelos crimes fiscais é o conjunto das receitas fiscais que integram o activo do património fiscal do Estado, averiguamos que a conduta defraudatória de cada indivíduo diminui as receitas fiscais ou mostra-se idónea a tal. Considerando Susana Aires de Sousa que “Tal como a conduta lesiva do património de um multimilionário não

deixa de poder constituir um crime de furto, ou um crime de burla, ou um crime de abuso de confiança, também o não pagamento fraudulento ou a redução indevida de impostos não deixa de constituir um acto lesivo do património fiscal.”343. Contudo deve salvaguardar-se que em respeito pelo princípio de dignidade penal, não terá sentido punir-se condutas que tenham um valor diminuto.

Este entendimento encontra-se reforçado por várias opções tomadas pelo legislador no RGIT, nomeadamente no que diz respeito ao instituto da dispensa e atenuação especial da pena344, pois como podemos observar este encontra-se condicionado pelo pagamento da “prestação

tributária e demais acréscimos legais” e pela restituição dos “benefícios injustificadamente obtidos”. Esta opção legislativa indica-nos que o bem jurídico protegido pelos crimes

tributários é o património fiscal, só assim se fundamenta a relevância dada ao pagamento da prestação tributária e à restituição dos benefícios injustificadamente obtidos, conjuntamente com a reposição da verdade, sobre a situação tributária para que possa funcionar o instituto da dispensa de pena. Este requisito, da reposição da verdade sobre a situação tributária, pode ser compreendido por alguma doutrina, como um fundamento que nos leve a concluir que o bem jurídico protegido é a verdade, colaboração e lealdade fiscal. Contudo, ao fazer-se uma análise global do diploma, podemos averiguar que no artigo 14.º do RGIT345, que estipula sobre a suspensão da execução da pena de prisão, não se exige este requisito, mas apenas que

342

SOUSA, Susana Aires de. Os Crimes Fiscais, obra citada., págs. 299, 300.

343

SOUSA, Susana Aires de, obra citada., pág. 301.

344

O artigo 22.º do RGIT estabelece quanto ao instituto da Dispensa e atenuação especial da pena o seguinte: “1 - Se o agente repuser a verdade sobre a situação tributária e o crime for punível com pena de prisão igual ou inferior a 2 anos, a pena pode ser dispensada se a) A ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves; b) A prestação tributária e demais acréscimos legais tiverem sido pagos, ou tiverem sido restituídos os benefícios injustificadamente obtidos, até à dedução da acusação; c) À dispensa da pena se não opuserem razões de prevenção. 2 - A pena será especialmente atenuada se o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final ou no prazo nela fixado.

345

Estabelece o artigo 14.º do RGIT acerca da Suspensão da execução da pena de prisão: “ 1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa. 2 - Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode: a) Exigir garantias de cumprimento; Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível; c) Revogar a suspensão da pena de prisão.

98 se proceda ao pagamento da prestação tributária e à devolução de benefícios indevidamente obtidos. Através deste preceito, o legislador manifesta a sua preferência, pela orientação patrimonial do bem jurídico, já que estabelece como requisito exclusivo da suspensão da execução da pena de prisão a devolução da prestação tributária, que se incumpriu e o dos benefícios indevidamente obtidos.

Estabelece o art.º 44.º, n.º 1 do RGIT, que se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei, a possibilidade de dispensa da pena, o Ministério Público, ouvida a Administração Tributária ou a Segurança Social e com a concordância do Juiz de Instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos da dispensa de pena. Podemos concluir que o arquivamento do processo tem como pressupostos a reposição da verdade sobre a situação tributária, a prestação tributária e os demais acréscimo legais, tiverem sido pagos, ou tiverem sido restituídos os benefícios injustificadamente obtidos.

IV- ENQUADRAMENTO LEGAL DO CRIME DE FRAUDE FISCAL