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III O BEM JURÍDICO TUTELADO PELO CRIME DE FRAUDE FISCAL

3.4 O UTRAS C ONCEPÇÕES

3.4.1 - O crime fiscal enquanto ofensa aos deveres de: colaboração, verdade e transparência

Os defensores desta concepção defendem que a relação jurídico-tributária estabelecida entre a Administração Fiscal e o contribuinte é feita através de uma estreita colaboração deste para com aquela.313 Elaboram-se, assim, os delitos fiscais atendendo aos deveres de colaboração dos contribuintes para com a Administração Fiscal, exigindo-se que este leve ao conhecimento da Administração Fiscal todas as informações que lhe sejam devidas. Esta ideia surge no seguimento do entendimento de que “A nova política fiscal exigiu, por um lado, uma

intensificação dos deveres de informação por parte do contribuinte ou de terceiros; por outro lado, um alargamento dos poderes de investigação da Administração. E assim o contribuinte passou a estar sujeito a uma multiplicidade de deveres, preparatórios ou acessórios da obrigação fiscal propriamente dita (deveres de ter escrita organizada de possuir registos e

310

Conforme. DIAS, Augusto Silva, Crimes e contra-ordenações fiscais, obra citada pág. 448.

311 Conforme. DIAS, Augusto Silva, Crimes e contra-ordenações fiscais, obra citada pág. 448. 312 Disponível em www.dgsi.pt

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documentação comprovativos das declarações, de fornecer esclarecimentos complementares, de se sujeitar a exames e vistorias. Assim também se reconheceu à Administração o direito de exigir informações a terceiros, de proceder a exames, de se socorrer de pareceres de peritos”.314

Como destaca Eliana Gersão, “o acento tónico da actividade delituosa não está

na evasão, mas sim na falta de colaboração com a administração”, ou seja, no não

cumprimento dos deveres, preparatórios ou acessórios da obrigação fiscal, legalmente impostos para garantir o melhor funcionamento possível do sistema tributário.315 Nas palavras de Kohlmann, o bem jurídico tutelado é “a pretensão do Estado ao cumprimento dos deveres

de revelação dos factos que versem a comunicação de dados às autoridades financeiras, conforme o estabelecido nas singulares leis fiscais”316. No parecer de Augusto Silva Dias, este entendimento concebe o bem jurídico, com base nos deveres de colaboração do contribuinte com a Administração retractando-o como “a pretensão do fisco de contar com a

colaboração leal dos cidadãos na determinação dos factos tributáveis e centrar a ilicitude fundamentalmente na violação de deveres de informação e de verdade fiscal, dando prevalência na estrutura do ilícito ao desvalor da acção.”317

.

Na doutrina portuguesa, já com a entrada em vigor do RGIT, Manuel da Costa Andrade considera mais correcto o “entendimento que define a verdade/transparência como o bem

jurídico típico da Fraude fiscal. A infracção está assim tipicamente estruturada em torno de um bem jurídico que está numa relação de comunicabilidade axiológico/material, mesmo de sobreposição praticamente total com o bem jurídico de crimes como a Falsificação de documentos”318. No mesmo sentido Isabel Marques da Silva entende que “Pode, pois haver

infracções tributárias sem que seja devido qualquer imposto e, mesmo quando este é devido, não é o seu não pagamento que constitui infracção, antes a violação de deveres tributários que impossibilitam ou dificultam à administração tributária apurar a prestação tributária devida ou proceder regularmente à respectiva cobrança, comportamentos estes socialmente mais danosos do que o mero incumprimento de uma dívida regularmente liquidada.”.319 Na jurisprudência nacional, refira-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, da relatora Maria do Carmo Silva Dias, de 11 de Abril de 2012, onde este entendimento foi perfilhado,

314

GERSÃO, Eliana, Revisão do sistema jurídico relativo à infracção fiscal, in: Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Volume II, págs. 96 e 97

315

GERSÃO, Eliana, Revisão do sistema jurídico relativo à infracção fiscal, obra citada pág. 97

316

KOHLMANN, Steuerstrafrecht, §370, n.º 9.4 apud 316 DIAS, Jorge de Figueiredo. ANDRADE, Manuel Costa. O Crime de Fraude Fiscal no novo Direito Penal Tributário Português, obra citada pág. 421

317

Conforme. DIAS, Augusto Silva, Crimes e contra-ordenações fiscais, obra citada pág. 445.

318

ANDRADE, Manuel da Costa. A Fraude fiscal – Dez anos depois, ainda um “crime de resultado cortado?, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Volume III, pág. 277.

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92 ao considerar: “o crime de fraude fiscal consuma-se independentemente de qualquer prejuízo

efectivo na esfera patrimonial do Fisco ou de qualquer enriquecimento do agente como flui da respectiva previsão legal, quando o agente com intenção de lesar patrimonialmente o Fisco, atenta contra a verdade e transparência exigidos na relação Fisco-contribuinte, através de qualquer das modalidades previstas no art.º 103º do RGIT. Nessa medida, o valor imediatamente tutelado pela proibição é o da transparência e verdade, ao passo que, no caso do abuso de confiança fiscal se visa tutelar a confiança do fisco em relação a quem a lei impõem a obrigação de deduzir a prestação tributária. É por isso que o bem jurídico protegido no crime de fraude fiscal não é, em primeira linha, o erário público”320

A teoria que defende o crime fiscal como ofensa aos deveres de colaboração, verdade e transparência, tem sido objecto de críticas no entendimento de alguns autores, esta concepção confunde o bem jurídico tutelado, que é o património fiscal do Estado, com o suporte normativo que assegura a protecção do bem jurídico.321

Isto é, confunde-se o meio através do qual se ofende o interesse protegido, com o próprio interesse tutelado, uma vez que a obrigação de declarar com verdade só adquire relevância jurídica, quando seja meio de atacar um bem jurídico.322 Ao identificar como bem jurídico os deveres de colaboração do contribuinte, esta teoria terá uma dificuldade acrescida, visto que a existência e o número desses deveres varia consoante o modelo fiscal que vigora em cada país.323 Além de que, esta concepção ou necessitará ser demasiado ampla se fizer coincidir o bem jurídico com a pluralidade de deveres de colaboração do contribuinte, ou demasiado restrita se identificar o objecto de tutela apenas com o dever de declarar com verdade os factos fiscais. 324 Refira-se que, actualmente, os deveres de colaboração e lealdade com a Administração Fiscal ainda não atingiram de per si o nível da dignidade penal da colectividade, nem plasmaram um interesse de natureza constitucional.325 Por fim, uma teoria assim compreendida acaba por configurar os delitos tributários como delitos de desobediência.326

320 Disponível em www.dgsi.pt 321

Conforme SOUSA, Susana Aires de. Os Crimes Fiscais, obra citada., pág. 283.

322

Conforme SOUSA, Susana Aires de. Os Crimes Fiscais, obra citada., pág. 283.

323

DIAS, Augusto Silva. Os crimes de fraude fiscal e abuso de confiança fiscal. Alguns aspectos dogmáticos e político-

criminais, in: Ciência e Técnica Fiscal, n.º 394, pág. 49

324

Conforme SOUSA, Susana Aires de, obra citada., pág. 284.

325

Conforme SANTOS, André Teixeira dos. O Crime de Fraude Fiscal, obra citada pág.110

326

93 3.4.2 - O crime fiscal enquanto ofensa à função social dos impostos

Para os fundadores desta teoria, o bem jurídico tutelado pelos delitos fiscais consiste no cumprimento das várias funções sociais imputadas ao imposto, designadamente o desenvolvimento da vida comunitária, a realização das actividades executadas pelo Estado com vista ao interesse colectivo e a repartição justa dos impostos de acordo com a capacidade contributiva de cada cidadão.327

Dos autores, defensores desta teoria assume relevância a proposta de Salditt, que foi influenciado pelos princípios de Tipke, autor que como já referimos anteriormente defendia que o §370 Abgabenordnung visa salvaguardar o património do contribuinte honesto de forma, a que este não ficasse onerado com o pagamento de uma carga tributária mais pesada, que poderia ter sido evitado caso os montantes objecto de fraude fiscal fossem realmente pagos.328 Para Salditt esta norma penal protege não os dinheiros públicos, mas sim uma repartição igualitária e justa de impostos, também a fraude fiscal será penalmente punível porque através desta incriminação coloca-se em causa a ideia de justa repartição de tributação.329

A doutrina alemã tem tecido fortes críticas a esta concepção, pois entende que uma percepção que reconheça como bem jurídico protegido a função social das receitas fiscais “consegue

somente apreender reflexos de protecção inerentes ao tipo criminal enquanto meio de luta contra o fenómeno criminal da fraude dos impostos”330 Na verdade, não é apenas uma conduta individual, de fraude fiscal, que vai prejudicar o património dos contribuintes cumpridores, nem as funções estatais realizadas com os impostos. Mas apenas a consideração da globalidade dos actos fraudulentos é que consegue colocar em causa as receitas fiscais, para fazer face às tarefas públicas de que o Estado está incumbido e impor um acréscimo de tributação aos contribuintes cumpridores. A repartição justa e igualitária da carga fiscal é actualmente imposta pela maioria das Constituições, devendo ser deste modo, um dado a ter em conta pelo legislador fiscal. Uma última critica a esta concepção, consiste no facto da sua natureza ser demasiado abstracta, podendo dar azo a que se possa “confundir o bem jurídico

327

HOFF, Alexander, Das Handlungsunrecht der Steuerhinterziehung, pág. 8 apud SOUSA, Susana Aires de. Os Crimes

Fiscais, obra citada., pág. 284.

328

TIPKE, Klaus. Moral tributaria del Estado e de los contribuyentes, pág. 132 apud SANTOS, André Teixeira dos. O Crime

de Fraude Fiscal, obra citada pág.124

329

Conforme SOUSA, Susana Aires de, obra citada., pág. 284.

330

BSCHMANN, Walter. HEPP. SPITALER, Armin. Komentar zur Abgabedonung und FinanzgerichtsordnungLoseblattsammlung, pág. 30 apud SOUSA, Susana Aires de. Os Crimes Fiscais, obra citada., pág. 285.

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com os fundamentos e objectivos de uma política fiscal, nomeadamente o equilíbrio social e o desenvolvimento económico.”.331

3.4.3 - O crime fiscal enquanto crime de desobediência

Esta teoria considera que os crimes fiscais teriam uma função de protecção puramente formal das normas tributárias. No entendimento de alguns autores, consideram que neste género de incriminações não se protegeriam bens jurídicos, mas apenas a ordem do direito positivo fiscal, na sua configuração rapidamente modificável, distinguindo-se assim o ilícito fiscal, do ilícito criminal fundamentado em valores ético-sociais, que asseguram um fundamento ético mínimo à incriminação, às infracções fiscais faltaria este fundamento ético-social, correspondendo a este tipo de incriminações, apenas uma sanção por desobediência fiscal.332 Tendo esta concepção como referente a relação jurídico-tributária enquanto mera relação especial de poder, onde o Estado soberano impõe o tributo, entendido como um poder abstracto que provém da supremacia que o Estado tem sobre todos aqueles que se encontram no seu território, e o contribuinte obedece.333

Desta maneira, os crimes fiscais, sendo eticamente indiferentes, “seriam puros delitos formais

aos quais não corresponderia qualquer conduta socialmente reprovável”334 tendo, então uma natureza nitidamente administrativa.

Esta concepção que entende o crime fiscal, como um crime de desobediência, julga-se que está actualmente superada, já que se passou a reconhecer ao imposto, uma função que vai além da mera aquisição de receitas fiscais. A doutrina considera que o ordenamento tributário perdeu o cariz de neutralidade ética que no passado o caracterizava, possuindo, presentemente, limites e fundamentos constitucionais que lhe retiram qualquer arbitrariedade. Por fim, entende-se que nem todos os actos de desobediência, à lei fiscal são reprovados penalmente. A descrição típica de certos comportamentos mostra que o ilícito não está ligado a uma desobediência puramente fiscal, mas sim à protecção de um concreto bem jurídico, sendo que é este que constitui o referente do ilícito e o paradigma da conduta a incriminar.335

331

Conforme SOUSA, Susana Aires de. Os Crimes Fiscais, obra citada., págs. 285 e 286.

332

Conforme SOUSA, Susana Aires de. Os Crimes Fiscais, obra citada., pág. 286.

333

Conforme SOUSA, Susana Aires de. Os Crimes Fiscais, obra citada., págs. 286 e 287.

334

GOMEZ, Ignacio Ayala. El delito de defraudación tributaria, pág. 30 apud SOUSA, Susana Aires de. Os Crimes

Fiscais, obra citada., pág. 286.

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