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2 NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DOS INTERESSES COLETIVOS IMPEDE QUE O PROCESSO SEJA EXTINTO POR ASPECTOS MERAMENTE FORMAIS

Avaliação Judicial da “Representação Adequada” das Entidades Legitimadas para as Ações Coletivas no Brasil – Estudo do Caso

2 NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DOS INTERESSES COLETIVOS IMPEDE QUE O PROCESSO SEJA EXTINTO POR ASPECTOS MERAMENTE FORMAIS

Como se explicou acima, no sistema processual brasileiro, a

legi-timação para propor ação coletiva decorre da lei (ope legis); é a lei que

estabelece os legitimados e indica os requisitos para a atuação judicial em processo coletivo.

O caso julgado pelo Ministro Luis Felipe Salomão (relator do REsp 1213614/RJ) foi de uma excepcionalidade a toda vista, não sig-nificando que tenha introduzido, por via pretoriana, instituto parecido com a “representação adequada” do Direito norte-americano, em que o juiz faz uma avaliação prévia, casuisticamente, das condições da pessoa autora da ação coletiva. É certo que, em trecho da ementa do acór-dão e do seu voto, o ministro destacou ser “plenamente possível que, excepcionalmente, de modo devidamente fundamentado, o Magistrado exerça, mesmo que de ofício, o controle de idoneidade (adequação da representação) para aferir/afastar a legitimação ad causam de associa-ção”. Mas, estudando-se as peculiaridades do caso, vê-se que o Ministro não pretendeu que, em cada caso, o juiz faça uma avaliação prévia das

condições da entidade autora de uma ação coletiva, sob os aspectos da

capacidade técnica ou econômica.

Com efeito, o ministro foi buscar fundamento no art. 125, III, do CPC, que diz que o juiz deve reprimir “ato atentatório à dignidade da Justiça”, para, no caso concreto, negar legitimidade à associação autora. É que o caso envolvia circunstância gravíssima, em que a entidade au-tora não era propriamente uma “associação”, mas apenas uma pessoa jurídica criada formalmente sob essa moldura, que, na verdade, poderia servir como artifício de atuação para interesse de um único advogado,

sem qualquer atividade associativa aparente. O ministro destacou dado

revelador apurado na corte de origem, de que todos os associados da entidade proponente tinham domicílio em um único local, circunstância que “já mostra indícios de algo que deve ser apurado”.

Como se observa, fica fácil perceber que as peculiaridades do caso julgado denotavam uma situação extrema, de uma associação apenas formal, chamada “associação de gaveta”, sem qualquer atividade co-nhecida ou registrada, em que os sócios apenas emprestaram seus no-mes para sua constituição, tanto que têm um único domicílio. O minis-tro considerou, assim, que permitir uma “associação” com esse nível de aparência artificiosa possa movimentar a máquina judiciária, com isen-ção de custas e outros benefícios, atenta contra a dignidade da Justiça.

Mas isso não significa, como se disse, que se torne regra, em pro-cessos coletivos, de o juiz fazer uma avaliação prévia das condições da entidade autora, seja do ponto de vista técnico, operacional ou econô-mico. As condições exigidas pelo nosso ordenamento jurídico são

obje-tivas, bastando que a associação seja constituída há pelo menos um ano

e que tenha, entre seus fins institucionais, a defesa de interesses dos con-sumidores ou das matérias previstas para o manejo da ação civil pública (art. 82, IV, do CDC, e art. 5º, V, da Lei nº 7.347/1985).

Por outro lado, a atribuição de poder ao Magistrado de dizer, em todo e qualquer caso, quem é o legitimado para propor a ação coleti-va poderia enfraquecer o microssistema processual de defesa coleticoleti-va de interesses em juízo. Pequenas associações ou com poucos anos de constituição, ou por qualquer outro motivo, poderiam ser impedidas de litigar em juízo em defesa de interesses coletivos, o que redundaria num enfraquecimento do sistema coletivo de defesa de direitos. E não foi isso o que pretendeu o legislador brasileiro.

A tendência processual, inclusive representada com a aprovação no Congresso do novo CPC (Lei nº 13.105/2015), é da facilitação e

am-pliação da utilização das ações coletivas. O novo CPC influencia o

mi-nissistema de processo coletivos, caracterizando-se por uma tendência à coletivização dos processos individuais. Portanto, uma concepção res-tritiva à legitimação das entidades autoras dos processos coletivos repre-sentaria um retrocesso nessa tendência processual.

O próprio Ministro Luis Felipe Salomão teve a preocupação de evitar que seu julgado seja utilizado com concepção restritiva, ao dizer que eventual controle excepcional da legitimação para a ação coletiva

só pode ocorrer “contanto que não seja exercido de modo a ferir a

ne-cessária imparcialidade inerente à magistratura, e sem que decorra de análise eminentemente subjetiva do juiz, ou mesmo de óbice meramen-te procedimental”.

Realmente, não se deve impedir o trânsito de uma ação coletiva por concepções formais que não decorram expressamente do texto da lei. Além disso, permitir a apreciação das condições da pessoa autora de uma ação coletiva pelo juiz, como condição de procedibilidade, ge-raria uma insegurança jurídica tremenda, dado o grau de subjetivismo na análise individual feita por cada Magistrado, em prejuízo, repita-se, do sistema coletivo de defesa de direitos e em violação ao art. 170, V, da CF, que coloca a “defesa do consumidor” como princípio da ordem econômica nacional.

A extinção do processo coletivo, sob o fundamento da ilegitimi-dade da parte autora, só deve ser adotada em último caso, diante de cir-cunstâncias excepcionais que comprometam a própria defesa do direito que se pretende tutelar por meio da ação, nunca por questões meramen-te formais.

As ações coletivas, em sintonia com o disposto no art. 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor, ao propiciar a facilitação da tutela dos direi-tos individuais homogêneos dos consumidores, viabilizam otimização da prestação jurisdicional, abrangendo toda uma coletividade atingida

em seus direitos.5

Nesse sentido, o alto grau de importância e valor social de que são dotadas as ações coletivas faz com que “o Poder Judiciário deva se

esmerar em, sempre que possível, ser condescendente na análise de as-pectos relativos ao conhecimento das ações, deixando de lado o apego

ao formalismo”, como advertiu o Ministro Mauro Campbell Marques6.

A importância social das ações coletivas faz com que o juiz deva sempre procurar uma prestação jurisdicional relacionada com o próprio

direito material em causa, ou seja, em sede de processo coletivo prevalece

o “princípio da primazia do conhecimento do mérito”, como lembrou o Ministro Mauro Campbell Marques no julgamento do REsp 1177453/RS, ao enxergar, na regra do § 4º do art. 5º da Lei nº 7.347/1985, indicativo da adoção desse princípio:

Normas específicas do microssistema em comento e indicativas do que a doutrina contemporânea convencionou chamar de princípio da pri-mazia do conhecimento do mérito do processo coletivo é o próprio art. 5º, § 4º, da Lei nº 7.347/1985, que é especialização do princípio da instrumentalidade das formas (art. 154 do CPC).

Por ter o juiz que buscar quase sempre, no processo coletivo, con-ferir uma jurisdição voltada à resolução do mérito, a criação de uma jurisprudência defensiva, com a colocação de obstáculos ao exame do mérito do processo, traduz um empecilho ao acesso efetivo ao Judiciá-rio. A colocação de empecilhos formais de toda ordem ao exame do mérito acaba por contrariar o direito fundamental de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, da CF), aqui compreendido como garantia de acesso aos resultados que o processo se dirige e, pois, garantia de obtenção de pro-nunciamentos de mérito e de satisfação prática do direito substancial.

Nesse sentido, é inadmissível a extinção de um processo coleti-vo com fundamento exclusivamente na circunstância de o estatuto da associação proponente ser “excessivamente genérico”, por exemplo. O

princípio da primazia do conhecimento do mérito, que, na verdade, é

uma faceta ou decorre do princípio da instrumentalidade das formas

(art. 154 do CPC)7, impede que, na demanda coletiva, se busque num

formalismo exagerado justificativa para extinguir o processo, afetando a conquista de um direito difuso ou coletivo. Ainda que um requisito de

admissibilidade para a causa não esteja completamente implementado,

6 No julgamento do REsp 1177453/RS, como relator na 2ª Turma, em 24.08.2010, DJe 30.09.2010. 7 “Art. 154. Os atos e termos processuais não dependem de forma determinada senão quando a lei

expres-samente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial.”

deve-se buscar a superação de um formalismo exagerado, tendo em vis-ta os benefícios incomensuráveis que a ação coletiva pode trazer para um conjunto de pessoas indeterminadas. Essa é a lição de Rhennan Faria

Thamay, quando discorre sobre o princípio da primazia do conhecimen-to do mériconhecimen-to no processo coletivo:

Com esse princípio o que se pretende é de plano o conhecimento da questão de fundo, ou seja, da matéria que se está a discutir,

analisando--se o mérito do debate por mais que haja a ausência de um dos requi-sitos necessários à admissibilidade da demanda, sendo essa uma das

formas de superar o formalismo que veda todo e qualquer acesso ao Judiciário quando os referidos requisitos não estejam totalmente imple-mentados. [...]

Com esse princípio o que se busca é, por toda a importância das de-mandas coletivas, dar seguimento às ações coletivas propostas,

visan-do conhecer seu mérito e toda a discussão e não, simplesmente, acabar com a demanda por ausência de algum dos requisitos necessários à sua admissibilidade, desde que não causem prejuízo por lógico.

Isso é relevante pela natureza das demandas coletivas, já que podem

“salvar” milhares de consumidores e cidadãos de incorretas cobranças ou ainda de procedimentos incorretos que se passem, ou até pior de infrações ambientais de alta gravidade, não devendo, e muito menos podendo, serem essas demandas afastadas por mero formalismo que po-derá ser superado, visto que o mérito da questão debatida é que será nesse caso relevante, já que a repercussão é social e atingirá, em regra, a um grande grupo determinado de pessoas ou até a um grupo indeter-minado. Por tudo isso é que esse princípio apregoa a superação das

for-malidades desprestigiadoras, para sim buscar levar ao Poder Público o conhecimento das mais diversas lesões que todos os dias se dão em um

meio social fragilizado e por vezes esquecido.8

Fica evidente, assim, em face dos princípios que regem o processo coletivo e da importância social que as demandas coletivas adquirem, que não se deve realizar a extinção do processo com fundamentos de ordem estritamente formais. Não é compatível com a natureza do pro-cesso coletivo, por exemplo, extinguir a demanda diante de uma ligeira discrepância entre as finalidades estatutárias e a natureza do direito que

8 No artigo “Princípios do processo coletivo”. Disponível em: <http://rennankrugerthamay.blogspot.com. br/2012/05/os-principios-do-processo-coletivo.html>.

se procura preservar e, muito menos, invocar-se uma “excessiva genera-lidade” do estatuto da associação autora.

Mesmo nos países em que a legitimação para a propositura da ação coletiva é apreciada ope judicis, a análise das condições dos titu-lares da demanda ou da “representação adequada” não é feita inspirada em motivações ou argumentos formais ou com o intuito de restringir o transcurso da ação como uma demanda coletiva, para extingui-la, mas preponderantemente para garantir que os interesses relevantes que estão em jogo sejam devidamente defendidos e preservados.

Os próprios doutrinadores brasileiros citados pelo Ministro Luis Felipe Salomão em seu voto e que defendem a possibilidade excepcio-nal do controle judicial da “legitimação adequada” ressaltam que esse controle deve ser feito de forma a verificar se a entidade que propõe a ação tem capacidade para atuar em defesa do grupo:

Se, de um lado, deve o Magistrado abster-se de impor óbices meramen-te procedimentais aos representanmeramen-tes adequados dos direitos coletivos, compete-lhe, de outra face, exercer o controle da representatividade com o fito de impedir a iniciativa de entes desprovidos de capacidade

para atuar em defesa do grupo. Do mesmo modo que não seria justo

cercear o acesso à justiça de legitimados dotados de representativida-de, também não se poderia permitir que os direitos coletivos fossem

de-fendidos por entes que desconhecessem os reais interesses da coletivi-dade ou que não estivessem aptos a tutelá-los de maneira satisfatória.

(DIDIER JÚNIOR, Fredie; MOUTA, José Henrique; MAZZEI, Rodrigo (Coord.). Tutela jurisdicional coletiva: 2ª série. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 173-174)

A preocupação, portanto, mesmo para aqueles que admitem em caráter excepcional a análise judicial da “representação adequada” da entidade autora da demanda coletiva, é com a “defesa satisfatória” dos interesses do grupo, para evitar que associações sem condições técnicas e sem qualquer credibilidade possam terminar prejudicando a defesa dos interesses coletivos. Não se deve colocar óbices meramente formais à legitimação para atuação ativa em demanda coletiva, extinguindo o processo e trazendo, com isso, consequências sociais indesejáveis. O que parte da doutrina admite que pode ser feito, de forma excepcional, é uma análise da capacidade jurídica e técnica da entidade proponente, para a defesa dos direitos tutelados.

3 PERTINÊNCIA TEMÁTICA ENTRE OS INTERESSES DEFENDIDOS NA DEMANDA COLETIVA E OS FINS

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