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1.5 CPC/2015

1.5.5 O negócio jurídico processual

O art. 190 do CPC/201589 traz a previsão do chamado “negócio jurídico processual”. Referido dispositivo estabelece a possibilidade de que as partes ajustem entre si mudanças relativas ao procedimento, ajustando-o a eventuais especificidades da causa.

A medida representa novidade. Em que pese o fato de já existirem disposições semelhantes no CPC/1973, a exemplo do pacto de suspensão do processo (art. 265, inc. II) ou da convenção sobre a distribuição do ônus da prova (art. 333, parágrafo único), é a primeira vez que a legislação processual traz uma disposição de tamanha amplitude. Atendidos os requisitos legais – processo que verse sobre direitos que admitam autocomposição e capacidade das partes – o negócio pode ter por

88 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. A revolução silenciosa da execução por quantia. São Paulo, 24

ago. 2015. Disponível em: <http://jota.info/a-revolucao-silenciosa-da-execucao-por-quantia>. Acesso em: 01 nov. 2015.

89 “Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes

plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.”

conteúdo os ônus, poderes, faculdades, deveres processuais e até mesmo o próprio procedimento.

São diversos os exemplos que podem ilustrar as muitas possibilidades relativas ao negócio jurídico processual: pode-se estabelecer a impossibilidade de utilização de um meio de prova, pode-se renunciar aos honorários advocatícios, à interposição de recursos etc.

A questão que merece reflexão mais detida é a de saber se podem as partes convencionar acerca das astreintes. De modo elucidativo, poderíamos imaginar diversas disposições: o estabelecimento de um teto para a multa, a proibição de imposição de astreintes pelo juiz, a alteração de seu beneficiário etc.

Parece-nos que a melhor resposta deve ser a negativa. Para tanto, há que se responder duas questões. A primeira diz respeito ao intento da norma e os motivos pelos quais o legislador tratou de prever o negócio com tamanha generalidade e amplitude. A segunda guarda relação com a efetivação da decisão, mirada pelas astreintes: ela diz respeito apenas às partes ou refere-se também ao papel do Poder Judiciário?

Em relação ao primeiro questionamento, temos que o que levou a lei a promover tal alteração foram as possíveis especificidades de um determinado processo. A despeito de o diploma processual civil dispor de diversos procedimentos, onde se mirou a adequação às nuances de um ou outro tipo de conflito, e, ainda, da existência de um procedimento comum, cujo fim seria o de servir adequadamente para “todos” os tipos de lides, é certo que há muitos casos onde existem particularidades, e a existência de um procedimento comum poderia prejudicar o exercício do direito das partes em juízo. É simples: no sistema atual, por exemplo, o prazo para a apresentação de resposta é de 15 (quinze) dias, não importando se a causa é simples ou extremamente complexa. A previsão de ajustamento do procedimento em relação a estas eventuais particularidades é salutar.

Não é só. A nova lei processual também traz tal previsão em sintonia com o intento de promover e ampliar as hipóteses de autocomposição das partes. E a

celebração do negócio jurídico processual não deixa de ser uma forma de composição das partes.

Em relação à segunda questão, a efetivação das decisões judiciais não diz respeito apenas às partes. Guarda intensa e estreita relação com o papel do Poder Judiciário e o poder de efetivamente intimidar as partes ao cumprimento da decisão. Um exemplo pode ajudar a ilustrar o que se pretende dizer: imagine-se que as partes tenham celebrado acordo por meio do qual só se permite a fixação de multa diária, a qual existe um teto. Dir-se-á que tendo as partes liberdade para celebrar o negócio, é perfeitamente possível limitar o quantum da multa. Seria possível, também, argumentar que, uma vez que as partes têm liberdade na eleição de tais parâmetros, se as astreintes não cumprirem o seu papel intimidatório, o prejuízo fica por conta daquele que fez um mau negócio, já que o Estado não poderia interferir neste aspecto.

Tais conclusões nos parecem sobremaneira equivocadas. No exemplo acima descrito, não há prejuízo apenas para a parte que se viu sem o socorro de seu direito: o contexto prejudica toda a coletividade, uma medida em que serve como estímulo ao descumprimento das ordens judicias, comprometendo, assim, a higidez de todo o sistema jurídico. Autoriza-se o descumprimento das ordens judiciais, além de comprometer seriamente a finalidade das astreintes, que não servirão para coagir a parte, mas para o possível enriquecimento da parte adversária.

A respeito da impossibilidade da realização de negócios processuais concernentes às disposições de natureza cogente, vale transcrever as considerações de Teresa Arruda Alvim Wambier, Maria Lúcia Lins Conceição de Medeiros, Leonardo Ferres da Silva Ribeiro e Rogerio Licastro Torres de Mello:

“Chama-nos a atenção a possibilidade estabelecida no caput do art. 190 do

NCPC de serem objeto de negócio jurídico processual os deveres processuais. A pergunta é: será que efetivamente podem ser objeto de negócio jurídico processual as condutas que são impostas às partes de maneira imperativa pelo CPC, como verdadeiras balizas de comportamento processual e, sobretudo, de postura processual lícita, leal, digna e de respeito ao escopo maior da atividade jurisdicional (resolução de conflitos de modo a pacificá-los)? Pensamos que não. [...] Já quanto aos deveres processuais, há evidente preponderância do caráter público: os arts. 77 e 78 do NCPC estabelecem uma gama de condutas que têm que ser cumpridas e

respeitadas pelas partes em nome da própria higidez da relação processual. O cumprimento de comandos judiciais e o dever de expor os fatos com

veracidade são à toda evidência, impassíveis de disposição. [...] Não vigora, ‘ipso facto’, o ‘vale tudo’ processual. O negócio jurídico processual não tem, e nem deve ter, esta extensão.”90 (destaquei)

As considerações expostas pelos autores citados, a nosso ver, se aplicam em sua inteireza às astreintes. Por se tratar de meio que serve ao cumprimento de ordens judiciais, não há que se falar na possibilidade de realização de negócio jurídico processual.

Da mesma forma que o juiz não tem discricionariedade na eleição do montante relativo à multa (deve ser fixada em montante que estimule a parte ao cumprimento da obrigação), tampouco podem as partes dispor a respeito da medida, afastando-se a possibilidade de negociação a respeito da medida.

90 ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil:

2 A MULTA PROCESSUAL E A MULTA MATERIAL