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Sentença que julga o pedido improcedente Subsistência das astreintes

Das afirmações e conclusões expostas anteriormente, colhe-se que nosso entendimento é pela subsistência da multa, ainda que o resultado final seja o de improcedência do pedido formulado pelo autor. Sem dúvida este é, em nosso sentir, o aspecto mais tortuoso que envolve as astreintes. A tarefa de se engendrar um regramento capaz de dar a máxima efetividade da medida, sem agressão ao postulado da proporcionalidade e outros princípios constitucionalmente assegurados é sobremaneira complexa, de difícil solução.

É possível dividir as controvérsias que se verificam na doutrina e jurisprudência em dois grandes grupos, no que se refere ao tema. Há quem entenda que a multa não subsiste quando da improcedência do pedido e, não se nega, os argumentos não são destituídos de sentido. Como admitir que a multa seja devida se a decisão final entendeu que não existe a obrigação que a originou? Se a multa é medida que serve ao cumprimento de uma obrigação e o Judiciário concluiu que essa obrigação não existe, faz sentido prosseguir-se entendendo que o crédito da multa que incidiu é devido?

Por outro lado, para os que entendem que a medida subsiste mesmo por ocasião do resultado de improcedência, fala-se na gravidade do desrespeito à

238 AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro: multa do art. 461 do CPC e

autoridade judicial, de modo que a multa não é medida acessória apenas da obrigação. Uma vez que opera como um meio de coerção, tem que cumprir tal papel. Admitir-se que a multa desaparece com o decreto de improcedência seria nada menos que um convite à desobediência de ordens judiciais, na medida em que a simples expectativa de se sair vencedor na ação já seria um estímulo ao descumprimento do comando judicial.

Não nos parece que seja correto afirmar que os adeptos de uma ou outra corrente estejam certos, como se houvesse apenas uma saída satisfatória para se solucionar a questão. É necessário, como se disse, pensar as coisas de um modo que sirva para se extrair o máximo de efetividade da medida, uma vez que, para cada orientação que se adote, há consequências das quais não se pode descurar.

Com efeito, a parcela da doutrina que entende que a multa subsiste diante da sentença de improcedência é minoritária. Podemos citar como defensores desse raciocínio os posicionamentos de Joaquim Felipe Spadoni, Sérgio Cruz Arenhart e Luiz Manoel Gomes Junior.

Spadoni239 afirma que o fundamento da incidência da multa não é a violação da obrigação de direito material, mas sim “a relação jurídica Estado-parte, enfeixada no processo”, bem como “a violação da obrigação processual daí derivada”. Assim, o interesse tutelado pela aplicação da multa não seria da parte, mas sim do Estado, para a efetividade das decisões por ele emanadas, bem como no respeito à sua autoridade.

O raciocínio desenvolvido por Spadoni se assemelha das considerações de Arenhart,240 para quem o fundamento da multa não está apenas na proteção do direito que se pretende ver tutelado no processo, mas sim para “sustentar a autoridade (‘imperium’) da decisão judicial, no intuito de coibir qualquer possibilidade de transgressão da determinação do Poder Judiciário”.

239 “Em virtude de seu caráter processual, o que autoriza a exigibilidade da multa pecuniária é a

violação da ordem judicial, é o desrespeito do réu ao poder jurisdicional. O seu ‘fato gerador’ considera apenas e tão somente a relação jurídica existente entre parte e juiz, o dever daquela em atender as ordens deste, enquanto forem eficazes. A exigibilidade da multa não recebe nenhuma influência do direito material.” (SPADONI, Joaquim Felipe. Ação inibitória: a ação prevista no art. 461 do CPC. São

Paulo: Ed. RT, 2002. Coleção Estudos de Direito de Processo Enrico Tullio Liebman. p. 168-182).

240 ARENHART, Sérgio Cruz. A doutrina brasileira da multa coercitiva – Três questões ainda polêmicas.

O último autor citado vai ainda um pouco além. Arenhart não vê a multa vinculada apenas à pretensão da parte, motivo pelo qual não poderia haver, também, ligação entre a determinação do juiz e o direito material que se busca proteger. O objetivo da medida é outro: o de vencer a vontade do obrigado, fazendo com que ele prefira cumprir a ordem judicial, em função de seu receio de sofrer um mal maior. Eis porque observa ligação entre a medida coercitiva e o poder de império do Estado-juiz.241

Luiz Manoel Gomes Junior afirma que se o réu não concorda com a decisão que impôs as astreintes, deve interpor recurso, não estando autorizado a desobedecer às ordens judiciais das quais é destinatário.242 Nas palavras do autor:

“Não se deve ignorar que, se o que se objetiva é uma maior efetividade do

processo, inviável aderir ao entendimento de que uma decisão deve ou não ser cumprida segundo o arbítrio do obrigado. Se este optou por desrespeitar uma decisão judicial, deve arcar com as consequências de seus atos, ainda que no futuro o pedido contra ele formulado seja tido como improcedente.”

Os fundamentos utilizados pelos referidos juristas são objeto de críticas, que afirmam que este entendimento trasmuda as astreintes, de medida coercitiva em punitiva. Demais disso, como lembrado por Guilherme Rizzo Amaral,243 “a busca pela efetividade do processo não pode ser confundida com o cumprimento irrestrito de ordens judiciais, quando estas se revestem de ilegalidade e injustiça”.

Eis, aqui, questão que merece detida análise, ao se afirmar a subsistência da multa quando do decreto de improcedência do pedido: se a ordem judicial estiver errada, a parte deverá cumpri-la irrestritamente, podendo-se concluir que não há meios de se controlar a decisão judicial? A resposta é negativa. É claro que as partes podem questionar a decisão judicial, sendo perfeitamente possível que, no julgamento do recurso, a multa seja cassada. Se tal ocorrer, não será realmente devida. Entretanto, tal circunstância não implica dizer que automaticamente, do decreto de

241 ARENHART, Sérgio Cruz. A doutrina brasileira da multa coercitiva – Três questões ainda polêmicas.

Revista Forense. Rio de Janeiro: Ed. Forense, v. 396, p. 233-255, 2008.

242 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Execução de multa – art. 461, § 4º, do CPC – e a sentença de

improcedência do pedido. In: SHIMURA, Sérgio; ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa (coord.).

Processo de execução e assuntos afins. São Paulo: Ed. RT, 1998. v. 2, p. 555-567.

243 AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro: multa do art. 461 do CPC e

improcedência, sobrevenha a conclusão de que a multa não é devida. As circunstâncias são diferentes, como se demonstrará adiante.

Para aqueles que entendem que as astreintes não são devidas se houver improcedência do pedido, o raciocínio dos defensores de sua manutenção estaria equivocado, uma vez que impor a multa ao vencedor da demanda é fato que serve à sua punição. Marinoni entende que não há motivos para a subsistência da multa porque o processo não pode ser prejudicial à parte que tem razão.244 Não discordamos de tal afirmação.

Mas é preciso fazer algumas ponderações acerca das críticas apresentadas por Rizzo e Marinoni. Primeiramente, não nos parece que o fato de se reconhecer que a multa serve à preservação da autoridade do Estado conduza à conclusão de que isso implicaria em punição da parte.

Não entendemos que a medida em estudo tem caráter punitivo, na medida em que nosso ordenamento já conta com outros meios que servem a esse fim. Mas daí a desvincular, por completo, as astreintes e a autoridade do Estado, leia-se, o seu poder de intimidar as partes ao cumprimento de suas ordens judiciais, em nosso sentir, é ir longe demais. Não é este o fundamento da inserção do art. 139, IV no CPC/2015, a autorizar o uso de todos os meios coercitivos com vistas ao cumprimento de ordens judiciais?

Pode-se afirmar que não há muita controvérsia em torno do fato de que as astreintes são uma medida coercitiva, servindo para vencer a obstinação da parte em descumprir o comando judicial. Importa, então, perquirir qual é o significado da expressão coerção. Coagir significa reprimir, coibir o ato de forçar alguém a fazer algo. Para que se possa coibir alguém, é necessário que se faça uso da força, ou seja, que se obrigue alguém. O uso da força se dá exatamente com a concretização da ameaça a que a parte estava submetida, que, no caso em tela, significa submeter a parte à imposição da medida.

244 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica (arts. 461, CPC e 84, CDC). São Paulo: Ed. RT,

A ameaça da imposição de um mal qualquer, que não se concretiza, não serve para coagir a parte. Significa a mera expectativa de que, em um futuro incerto, possa vir a ter de se submeter à ordem judicial, não havendo sequer certeza quanto a este fato. Por outras palavras, quando se faz alusão à autoridade do Estado e à necessidade de obediência a tais ordens, não se está imprimindo natureza punitiva à medida. Diferentemente, se a ameaça não se concretiza, ela não coagiu. Daí resulta a mais nefasta das consequências: a astreinte se torna inócua.

O que se pretende afirmar aqui é que não vislumbramos meios de se enxergar as astreintes como sendo uma medida completamente desvinculada da necessidade de obediência das ordens judiciais. E isso não implica em lhe dar caráter punitivo. Quem não cumpriu uma ordem judicial merece ser punido, e, nesse passo, pode haver a incidência de multas punitivas. Mas, também, para que a medida seja coativa, ameaçadora, cumpra o seu fim de forçar a parte, tem de se concretizar, sob pena de restar anulado seu poder de vencer a obstinação da parte em descumprir o comando judicial.

Não desconhecemos a crítica de que o fato de a lei estabelecer que a multa reverte em benefício da parte credora, nesse contexto, pode não fazer sentido. A multa não serve à compensação da parte, em função do descumprimento da obrigação, uma vez que já existe previsão legal de imposição de medida que têm essa função. Veja- se que a regra de que a multa reverte em benefício para a outra parte é duramente criticada por Arenhart, merecendo transcrição as suas ponderações:

“De fato, a titularidade de um direito material não dá ao seu detentor o

poder de impor meios suasórios contra ninguém. Esse poder pertence, exclusivamente, ao Estado. E não é ele vinculado ao direito material, mas sim, apenas, ao poder que o Estado legitimamente exerce. [...]

Com efeito, entregar ao autor esse dinheiro é aumentar seu patrimônio, sem qualquer motivo legítimo que o autorize a tanto. O autor ganha dinheiro porque o ordenado desobedeceu a uma ordem judicial!”245

Concordamos com as ponderações do citado autor, uma vez que reverter o produto da multa para a parte credora não se mostra adequado, além de caracterizar o seu enriquecimento injusto, como será tratado no capítulo 7 De qualquer

245 ARENHART, Sérgio Cruz. A doutrina brasileira da multa coercitiva – Três questões ainda polêmicas.

maneira, é certo que se a legislação estabelecesse que o produto das astreintes não se revertesse em benefício da outra parte (subsistindo mesmo na improcedência do pedido), a medida seria, em nosso sentir, dotada de muito mais efetividade. De todo o modo, a nova lei processual estabelece claramente que o produto da multa reverte em benefício do autor e esta regra também deve ser levada em conta, embora entendamos que não foi acertada a opção da lei.

Na jurisprudência, colhem-se julgados no sentido de que as astreintes são devidas no caso de improcedência, embora tal entendimento seja minoritário, assim como também já julgados no outro sentido.

Tomemos como exemplo o acórdão proferido no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1241374/PR.246 Entendeu-se que a multa fixada em decisão que antecipa a tutela não pode ser executada definitivamente, uma vez há necessidade de prévia ocorrência do trânsito em julgado para tanto. Por outras palavras, colhe-se o entendimento de que não há possibilidade de se cogitar da execução da multa se houver improcedência do pedido.

No caso em comento, houve fixação de multa pelo juízo de 1º grau, liminarmente. Nada obstante, a parte demandada, que não cumpriu a obrigação, sequer interpôs recurso, fato que ensejou o pedido do adversário à instauração da execução definitiva, ao fundamento da ocorrência de preclusão, o que não foi acolhido.

Ao analisar a questão, o STJ entendeu que em sobrevindo a improcedência do pedido, a tutela antecipada perde a sua eficácia, de modo que a mesma consequência se verifica em relação à multa. E sob este fundamento, não se permitiu nem mesmo a execução provisória da decisão interlocutória que, frise-se, sequer foi objeto de recurso pela parte a quem foi cominada à multa.

246 “Agravo regimental – Recurso especial – Multa diária fixada em antecipação de tutela – Execução

provisória – Não cabimento – Exigência – Trânsito em julgado da sentença – Decisão agravada mantida – Improvimento. 1.- É pacífica a jurisprudência nesta Corte no sentido de que a multa prevista no § 4.º do art. 461 do CPC só é exigível após o trânsito em julgado da sentença (ou acórdão) que confirmar a fixação da multa diária, que será devida, todavia, desde o dia em que se houver configurado o descumprimento. Precedentes. 2.- Agravo Regimental improvido.” (STJ, AgRg no REsp 1241374/PR, 3.ª Turma, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 28.05.2013, DJe 24.06.2013).

Com a devida vênia, é de se questionar qual seria a utilidade da decisão antecipatória de tutela para os defensores da tese exposta no julgado. Veja-se, a despeito de ter sido proferida decisão liminar e da mesma não ter sido cumprida, nem recorrida, a decisão não teve aptidão de produzir nenhum efeito. Como é intuitivo, não coagiu a parte ao atendimento da ordem judicial. Por fim, a obrigação não foi cumprida e, tampouco, a multa foi paga. Por outras palavras, não parece exagerado dizer que, na hipótese, a decisão antecipatória de tutela não serviu aos fins a que se destina.

Não obstante, é possível encontrar muitos julgados na mesma Corte de Justiça entendendo que a decisão liminar que fixa a multa é passível de execução definitiva. Confira-se, por exemplo, o quanto restou assentado no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.116.800/RS:247 “A execução das ‘astreintes’ constitui-se em obrigação autônoma, sendo passível de execução definitiva, mesmo que ainda não haja sentença de mérito transitada em julgado”.

Ainda que não estejamos de acordo com a orientação adotada pelo CPC/2015, no sentido de que a execução da multa se dá provisoriamente, é forçoso o reconhecimento de que a previsão legal é salutar, na medida em que impede (ou, pelo menos, espera-se que impeça) a divergência jurisprudencial muito intensa, o que não é desejável.

De qualquer modo, impende ainda refletir sobre outro argumento, relativo ao entendimento de que a multa não subsiste na sentença de improcedência. Afirma-se que não há qualquer sentido na execução de um crédito que é oriundo de uma obrigação que foi judicialmente inexistente. Assim, a multa seria um meio para o cumprimento de uma obrigação. Se não há fim a ser perseguido, não faz sentido a manutenção do meio.

Dito isso, é de se imaginar: em determinada ação, o juiz determina o cumprimento de uma obrigação, impondo multa. A parte desobedece ao comando e a multa começa a incidir. Posteriormente, o pedido é julgado improcedente. Afirmando-se

247 “Agravo Regimental no Recurso Especial – Astreintes – Execução definitiva – Possibilidade –

Acórdão recorrido em harmonia com o entendimento desta Corte – Quantum razoavelmente atribuído – Recurso improvido.” (STJ, AgRg no REsp 1116800/RS, 3.ª Turma, rel. Min. Massami Uyeda, j. 08.09.2009, DJe 25.09.2009).

que a multa é acessória da obrigação, não se vê, no exemplo, a possibilidade de execução do crédito da multa.

Ocorre, e não se pode negar, que ainda que o resultado tenha sido o da improcedência da demanda, por ocasião da prolação da decisão liminar, com base nos elementos que o juiz dispunha naquele momento, determinou-se à parte o cumprimento de uma obrigação, o que foi desobedecido. O decreto de improcedência não altera os fatos que antes ocorreram: mesmo diante de um comando judicial, a parte não cumpriu a obrigação que lhe foi determinada.248

Em relação ao que se disse, cabe a transcrição das críticas apresentadas por Talamini, que vê, nesse raciocínio, a imposição de caráter punitivo às astreintes:

“‘Não’ é viável opor contra essa conclusão o argumento de que a multa

resguarda a autoridade do juiz –, de modo que, ainda que posteriormente se verificasse a falta de razão do autor, isso não apagaria, no passado, o descumprimento, pelo réu, da ordem judicial que recebera. A legitimidade da autoridade jurisdicional ampara-se precisamente na sua finalidade de tutelar quem tem razão.”249

Pois bem, se a legitimidade judicial está amparada na sua finalidade de tutelar a parte que tem razão, e preciso reconhecer-se que quando o juiz profere uma decisão liminarmente, de posse dos elementos que tem em mãos naquele dado momento processual, é a parte beneficiária da ordem judicial quem tem razão. É verdade que essa situação pode ser alterada posteriormente, não se nega isso. Mas não nos parece adequada a conclusão de que, sobrevindo a sentença de improcedência, aquilo que restou decidido anteriormente simplesmente se apague, de modo que, no novo momento, o réu tem razão e por isso não se submete às ordens anteriormente emitidas.

248 “Em sendo a decisão que impôs a multa cominatória posteriormente revogada, seja por sentença ou

por acórdão, ou mesmo por outra decisão interlocutória, em nada restará influenciado aquele dever que havia sido anteriormente imposto ao réu. As ordens judiciais devem ser obedecidas durante o período em que são vigentes, e as partes que não as obedecerem estarão sujeitas às sanções cominadas. [...] Pelo fato de decisões dessa natureza possuírem eficácia ‘ex nunc’, ou seja, por não retroagirem, não podem elidir o estado de ilicitude em que se pôs o réu que transgrediu preceito judicial proferido anteriormente e que até então era eficaz. A ordem judicial terá sido sempre violada, e a multa sempre será devida, mesmo diante da posterior improcedência do pedido do autor.” (SPADONI, Joaquim Felipe. Ação inibitória: a ação prevista no art. 461 do CPC. São Paulo: Ed. RT, 2002. Coleção Estudos de Direito de

Processo Enrico Tullio Liebman, p. 182-183).

249 TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer: CPC, art. 461: CDC, art.

Adotando-se esse raciocínio, a sentença transitada em julgado também não obrigaria ao atendimento da ordem judicial, já que ainda há previsão no sistema (excepcional, é verdade) de desconstituição da coisa julgada mediante a propositura de ação rescisória. Que dizer disso? Que a parte a quem foi imposta a multa está autorizada a descumprir o comando judicial porque o sistema jurídico ainda lhe faculta um meio, excepcional, é verdade, para a rediscussão do que foi decidido?

Se a legitimidade do Judiciário está amparada em tutelar a parte que tem razão, temos de reconhecer que, mesmo diante do trânsito em julgado da sentença, existe a chance de a parte ter razão. E a circunstância de a parte entender que lhe assiste razão lhe autoriza à desobediência de ordens judiciais? Confira-se, sobre o ponto, as palavras de Arenhart, que, em nosso sentir, são incensuráveis:

“A ser acolhida essa visão [de que não se pode submeter a parte ao cumprimento de uma decisão que estava errada], faz-se da parte obrigada o

último juiz da validade ou não de qualquer determinação judicial. Por

outras palavras, a solução dada pela doutrina majoritária autoriza a parte a não cumprir as determinações judiciais que entenda ilegítimas, precisamente esperando que, ao final, sua própria convicção prevaleça. Sim, porque, se a

validade da ordem não definitiva (sentença sujeita a recurso ou liminar) for depois infirmada, tinha toda razão a parte desobediente em desconsiderar a autoridade estatal.

Ora, essa tese praticamente elimina todo o valor de decisões provisórias. É

como se a doutrina sinalizasse à população brasileira que só constitui verdadeiro exercício de poder (legítimo) a decisão final da causa. Todo o resto é provisório e, por isso, independentemente de ter-se originado do Poder Judiciário, pode ser contestado e descumprido, sem nenhum pudor.

Afinal, nesse caso, o desobediente simplesmente assume o risco de, se sua opinião sobre o litígio não prevalecer ao final do processo, ter de pagar um plus por isso.”250 (Destaquei)

É possível consentir com o descumprimento do comando sentencial – sacrificando a capacidade coercitiva das astreintes e, por conseguinte, a própria medida (!) – porque a parte ainda tem a faculdade de apresentar defesa em sede executiva? É claro que não. E, a nosso ver, o mesmo raciocínio deve ser adotado quando se trata de decisão que fixa a multa liminarmente, antes da prolação de sentença de improcedência.

250 ARENHART, Sérgio Cruz. A doutrina brasileira da multa coercitiva – Três questões ainda polêmicas.