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Iniciamos este capítulo tendo como ponto de partida analítico a constituição do sujeito não cidadão, ex-escravizado e perambulando pela vida econômica e social brasileira no alvorecer do golpe militar que derrubou o regime monárquico brasileiro e que costumamos chamar de Primeira República. Este sujeito desidentificado que precisará se metamorfosear de cidadão urbano na construção de suas reinvindicações estará desamparado de qualquer garantia legal de inserção social, concorrerá desigualmente por vagas no mercado de trabalho e terá sua imagem construída como a do bom malandro, aquele que não trabalha por que não quer e vive de pequenos golpes.

No imaginário da imprensa da época, ele será caracterizado como o típico carioca de classe baixa, à margem da sociedade constituída, negro, desempregado, vivendo de duros bicos, capoeirista, golpista e envolvido com as mal vistas religiões de origem africanas, popularmente conhecidas como macumba, conforme João do Rio, alcunha do jornalista Paulo Barreto (1881-1921), cronista das ruas cariocas no período mencionado. Seus escritos publicados em jornais da época mostram a passagem do período monárquico para o republicano e a transformação da sociedade carioca, outrora escravagista, é o caso da crônica intitulada “fome negra” que aqui faço uma pequena menção;

De madrugada, escuro ainda, ouviu-se o sinal de acordar. Raros ergueram-se. Tinha havido serão até meia-noite. Então, o feitor, que ganha duzentos mil réis e acha a vida um paraíso, o sr. Correia, entrou pelo barrado onde a manada de homens dormia com a roupa suja e ainda empapada do suor da noite passada. [...] Mas, já na luz incerta daquele quadrilátero, eles levantaram-se, impelidos pela necessidade como as feras de uma ménagerie ao chicote do domador. Não lavaram o rosto, não descansaram [...]. (RIO, 22 de junho de 1904, Gazeta de Noticias apud ANTELO, 2008, p. 168).

No período pós-abolição, o Estado ficou a dever um projeto de reintegração social deste homem negro liberto aos novos modos de produção e capacitação tecnológica. Ao invés disso importou trabalhadores dos continentes europeu e asiático a fim de suprir sua necessidade de mão de obra especializada. Entre 1884 e 1920, entraram no Brasil cerca de três milhões de trabalhadores estrangeiros imigrantes, desses, 1,8 milhão foi para São Paulo. Em 1920, cerca de 20% da mão de obra industrial brasileira estava concentrada no Rio de Janeiro e, 31% no estado de São Paulo, conforme Carvalho (2012), era uma classe operária ainda pequena e de formação recente, ainda assim, no Rio de Janeiro a industrialização era a mais antiga do país e, o operariado mais nacional.

O grupo estrangeiro mais forte era o português, cuja cultura e tradições não se distanciavam muito das brasileiras, havia ainda no Rio de Janeiro a forte presença da população negra na classe operária, inclusive os ex-escravos. Neste contexto socioeconômico que veremos nascer as primeiras organizações sociais classistas e étnicas do período republicano brasileiro. Elas darão, também, sustentação a construção dos clubes sociais negros e de seus folhetins informativos, que farão oposição a persistente discriminação sofrida pelos negros nos jornais comercias da época. “O crescimento das cidades e a diversificação de suas atividades foram os requisitos mínimos de constituição de um movimento da classe trabalhadora” (FAUSTO, 2010, p. 297).

Neste processo de urbanização brasileira, onde, verificamos o crescimento das cidades e o acirramento da exclusão, teremos em Santos (2009) uma astuta análise do processo de metropolização que acirrou as desigualdades e a degradação da existência humana. O mito das três raças constituintes da identidade brasileira se dissolve com a urbanização do inicio do século XX.

A cidade em si, como relação social e como materialidade, torna-se criadora de pobreza, tanto pelo modelo socioeconômico, de que é o suporte, como por sua estrutura física, que faz dos habitantes das periferias (e dos cortiços) pessoas ainda mais pobres. A pobreza não é apenas o fato do modelo socioeconômico vigente, mas, também, do modelo espacial (SANTOS, 2009, p.10).

Esse modelo espacial criticado por Milton Santos é o modelo excludente de organização urbana higienista adotado no Rio de Janeiro em fins do século XIX, pelo Prefeito carioca Barata Ribeiro que tem na desocupação do mais famoso e maior cortiço carioca, Cabeça de Porco, como o melhor exemplo do inicio da higienização social e pacificação de áreas urbanas ocupadas principalmente por gente pobre e negra. “O Cabeça de Porco, assim como os cortiços do centro do Rio em geral, era tido pelas autoridades da época como um

valhacouto de desordeiros” (CHALHOUB, 1996, p.16). Esta divisão segregada do espaço

urbano e a criminalização da gente carenciada que ocupa as áreas mais insalubres e mal atendidas pelo Estado é diretamente responsável pelas intolerâncias sofridas pelos minorizados, e seus desdobramentos tem funcionado como o principal fator de engendramento da ideologia do racismo na perpetuação dos seus mecanismos de exclusão e marginalização social desse sujeito desidentificado, e desidentificado por que submetido a esta manipulação dos interesses estatais e mercadológicos. A cidade reflete as lutas pelo poder e manutenção dos direitos conquistados pela elite historicamente dominante. “A cidade, onde tantas necessidades emergentes não podem ter resposta, está desse modo fadada a ser tanto o teatro de conflitos crescentes como o lugar geográfico e político da possibilidade de soluções” (SANTOS, 2009,p.11).

Nesta geografia espacial excludente, como visto a cima, em busca de organização, associados com outros trabalhadores imigrantes e articulados na luta pela sobrevivência de seu grupo, estes sujeitos desidentificados sofriam dificuldade de inserção social por terem uma educação formal nula e/ou mal ofertada e consequentemente concorriam em condições de desigualdade aos serviços ofertados, invariavelmente sobrando apenas o serviço bruto, braçal, como forma de sustento. Uma estratégia estatal para eliminar o negro e subjugá-lo à condição subalterna.

Em 1920, em 30 milhões de habitantes, apenas 24% sabiam ler e escrever. Os adultos masculinos alfabetizados, isto é, os que tinham direito a voto, não passariam de 1 milhão. Desse 1 milhão,[...] não mais de 100 mil , em cálculo otimista, têm, por sua instrução efetiva e sua capacidade de julgar e compreender, aptidão cívica no sentido político da expressão. (CARVALHO, 2012, p. 65).

Dessa maneira, a elite brasileira demonstrou mais uma vez que o capital e sua busca por lucros foi o principal motivador da luta pela queda do império e abolição da servidão que atrasava o aumento da produtividade ao usar um sistema atrasado de produção (mão de obra escrava), se considerados os padrões da época, fins do século XIX. Porém, grupos nascidos na luta pela abolição davam seguimento a luta por inserção dos ex-escravizados na sociedade brasileira do século XX, membros deste novo grupo social negro do início do século desenvolviam estudos e articulações para uma integração do negro na sociedade capitalista estabelecida, e ainda lutando contra o estereótipo iluminista vigente que pregava a inferioridade racial do descendente africano. Foi dentro deste panorama que começaram a surgir às demandas junto à imprensa por visibilidade do cidadão afrodescendente, e também, os primeiros periódicos produzidos pela comunidade, que no desenvolvimento histórico cederá espaço para os programas das mídias eletrônicas atuais, e nas lutas por um Brasil mais etnicamente diversificado na televisão pública e comercial.

Neste espectro de lutas e conquistas, que em 1934, enquanto Adolf Hitler usufruía seu poder como chanceler na Alemanha e no Brasil Getúlio Vargas através do governo provisório lutava contra as “velhas” oligarquias apoiado pelos “tenentes” da revolta tenentista liderada por Luiz Carlos Prestes, que no Recife aconteceu o I Congresso Afro-brasileiro, reunindo intelectuais, cientistas, artistas, babalorixás, cozinheiras, etc. Nascia ali, oficialmente, o debate sobre a contribuição “positiva” da cultura africana para o que conhecemos hoje como cultura afro-brasileira. Importa salientar que este congresso foi organizado pelo sociólogo Gilberto Freire e contou com a participação de nomes como Jorge Amado, Di Cavalcanti, Lasar Segall e, também, de nomes não tão notórios, mas de grande importância na comunidade negra, como, a rainha do maracatu Albertina de Fleury e do babalorixá pernambucano Pai Anselmo. (TUNA, 2009)

A Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) (2005) afirma que a diversidade cultural é uma característica essencial da humanidade. Sua existência cria um mundo rico e variado que aumenta a gama de possibilidades e nutre as capacidades e valores humanos, constituindo, assim, um dos principais motores do desenvolvimento sustentável das comunidades, povos e nações, sendo condição para a plena realização dos

direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e outros instrumentos internacionalmente reconhecidos.

O Brasil traz em sua composição inicial as matrizes europeias, africanas e ameríndias, onde, desde o início a sua formação multicultural foi o fundamento para que os cientistas sociais chamassem de base fundamental para a construção de uma nova civilização, “porque surge como uma nova etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos”. (RIBEIRO, 1995, p. 19)

Ainda que com estas características originais de sua formação histórica, o Brasil tem em sua estrutura político-social a história de discriminação ao diferente, ao elemento destoante dos traços característicos dos da classe dominante, de perfil eurocêntrico, como explicitado no item anterior. Esta discriminação foi consolidada com a histórica exclusão do elemento indígena e africano descendente dos meios de produção, acesso a educação, saúde, justiça, etc.. Os meios de comunicação, especialmente a televisão, reforçou a imagem de uma sociedade majoritariamente embranquecida, excluindo os demais de sua programação e divulgação. Milton Santos (2013, n. p.), geógrafo e estudioso do tema, destaca:

No Brasil, onde a cidadania é, geralmente, mutilada, o caso dos negros é emblemático. Os interesses cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais.

Nesse sentido, a televisão se tornou um espaço político com capacidade de construir opinião pública, formar consciências, influir nos comportamentos, valores, crenças e atitudes.

Conforme o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), documento produzido pelo Governo Federal brasileiro, através da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, os meios de comunicação são espaços de intensos embates políticos e ideológicos, pela sua alta capacidade de atingir corações e mentes, construindo e reproduzindo visões de mundo ou podendo consolidar um senso comum que frequentemente moldam posturas acríticas. Mas pode constituir-se, também, em um espaço estratégico para a construção de uma sociedade fundada em uma cultura democrática, solidária, baseada nos direitos humanos e na justiça social. (PNEDH, 2008, p. 58)

Partindo do pressuposto de que as emissoras de caráter público que formam a TV Brasil contam com grande alcance na relação com seu público e participam de maneira ativa na formação e manutenção das identidades regionais, faz-se importante estudar o seu

comportamento político na construção das identidades nacionais e disseminação dos princípios dos direitos humanos frente ao seu público consumidor, uma vez que a televisão é uma ferramenta de educação e entretenimento que deve ser usada para reforçar estes princípios e promover o respeito às diferenças.

No Brasil, 95,1% dos domicílios estão dotados de aparelhos televisivos (IBGE, 2012). De acordo com Sodré (1984), a mídia incorpora não só as técnicas de reprodução desenvolvidas na modernidade, mas também todo o ethos moderno de organização da vida social. É desta percepção que nascem as demandas no seio dos movimentos sociais organizados quanto à função, o papel da TV pública. Para estes movimentos, os meios de comunicação públicos devem combater o preconceito de gênero e a discriminação de pessoas por etnia, cor e raça, entre outros. Esses meios devem representar, em sua programação e em seu quadro de pessoal, a diversidade da sociedade brasileira. Em sua essência, os meios de comunicação públicos devem ser aliados da sociedade no combate ao racismo, sexismo, xenofobia, enfim, na luta pelos direitos humanos. É nesse contexto que vimos aumentadas a perspectiva da comunidade negra brasileira perante a criação da TV Brasil.