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A noção de pessoa com deficiência na política de cotas em São Luís: a introdução do tema na agenda pública

3 A NOÇÃO DE IGUALDADE DE OPORTUNIDADES E DISCRIMINAÇÃO CONTRA A PESSOA COM DEFICIÊNCIA PARA O PBGR

3.4 A noção de pessoa com deficiência na política de cotas em São Luís: a introdução do tema na agenda pública

O questionamento central deste tópico é sobre a noção de pessoa com deficiência na política de cotas em São Luis, é sobre a sua introdução na agenda pública na percepção das pessoas que se identificam com deficiência.

A política de cotas nas empresas foi apresentada pelo Ministério do Emprego e Trabalho através da DRT-MA a diversas ONGs de pessoas com deficiência auditiva, mental, visual, múltipa e física como sendo uma política pública afirmativa dirigida a estes segmentos de pessoas com deficiência, como capaz de

incluí-los nas vagas reservadas nas empresas e combater as práticas de

discriminação a que são expostos no mercado de trabalho.

Sendo assim, as noções de “pessoa com deficiência”, de “igualdade de oportunidades e de tratamento” e de “discriminação contra a pessoa com deficiência” adotadas pelo Programa Brasil Gênero e Raça – PBGR - não poderiam prescindir do debate público e acadêmico. Corrobora esta fundamentação o fato de o Programa ter mobilizado recursos e interesses públicos, bem como determinado formalmente quem deveria gozar os benefícios e quem deveria arcar com as obrigações, segundo consta nas Orientações Gerais do Programa Brasil, Gênero e Raça (2006).

Foi necessária para a exposição deste tópico, além da revisão da literatura pertinente ao tema e da abordagem dos diplomas legais, a realização de entrevistas semi-estruturadas com os diversos sujeitos relevantes para a política de

cotas, em especial com os grandes empregadores, representantes de ONGs, movimentos sociais, com representantes do Ministério Público, com as responsáveis pela execução das ações do Programa Brasil, Gênero e Raça e as pessoas com

deficiência auditiva, física, visual e mental.

Para conseguir identificar e localizar os possíveis empregadores e os

empregados com deficiência para realizar as entrevistas e aprofundar os

questionamentos sobre a noção de pessoa com deficiência, realizei pesquisa documental na Delegacia Regional do Trabalho, no Conselho Municipal de Defesa

dos Direitos da Pessoa com Deficiência e no Fórum de Entidades de Pessoas com Deficiência e Patologia.

Encontrei, durante a pesquisa documental realizada no Conselho

Municipal de Defesa dos Diretos da Pessoa com Deficiência, as transparências

utilizadas pelo Fórum de Entidades de Pessoas com Deficiência e Patologia no

evento de lançamento do PBGR em São Luís, no ano de 2000. Estas contêm vários

questionamentos acerca das noções de pessoa com deficiência e sobre os supostos sujeitos beneficiados do PBGR.

Ao analisar o conteúdo dos documentos acima, foi possível encontrar várias expressões ressignificadas pelas pessoas que se identificaram, bem como a indicação de possíveis pontos de conflitos sobre as noções de pessoa com deficiência física, visual, auditiva, mental e de pessoa com patologias. Por isso, resolvi tomar por referência muitas das declarações contidas nesta pesquisa, para analisá-las confrontando com as entrevistas colhidas em 2007.

Registro, oportunamente, que consegui, com a ajuda da ex-presidente e do atual presidente do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa

Portadora de Deficiência, localizar quase todas as pessoas que fizeram as

declarações em 2000, que passo a expor, inclusive por categoria de deficiência, no quarto capítulo.

Agora, detenho-me mais na exposição dos resultados das análises das entrevistas com o objetivo de conseguir uma melhor aproximação da noção de

pessoa com deficiência efetivamente aplicável em São Luís. Procuro identificar e

abordar as possíveis contradições, complementações, omissões e especificidades da política de cotas no contexto local.

Percebi durante a análise das entrevistas que confrontar as diversas noções existentes entre os sujeitos poderia servir para uma melhor compreensão da

noção vigente no interior da política de cotas no contexto local. Assim, adoto na redação da dissertação de mestrado a mesma forma de confrontar as percepções diferentes.

A condução da pesquisa me fez adotar neste estudo, como referencial para melhor fundamentar este estudo, a compreensão dinâmica exposta por Lancillotti (2003). Esta consiste em que a “noção de pessoa com deficiência para a política de cotas se modifica no cenário nacional e local à medida que as condições sociais são alteradas pela própria ação dos sujeitos interessados, pois são geradas novas necessidades na sua relação com o meio social”. Consequentemente, adquiro a compreensão de que as noções que nortearam a política de cotas estavam (e estão) em constante mutação, e que restringiram ou ampliaram direitos conforme a correlação de forças entre os diversos sujeitos interessados.

Adoto neste estudo, como referência, o pensamento de Dye (1992) para expor que concebo o processo de formulação da política de cotas nas empresas para as pessoas com deficiência como uma resposta do poder público em função da luta política e do embate de idéias travadas nas últimas décadas. Este processo foi (e ainda é) mediado por um Estado não neutro, por ter sido (e ainda ser) parte diretamente interessada. Assim, a política de cotas para as pessoas com deficiência não foi (ou não tem sido) formulada “fora” do espaço institucional para depois lhe ser imposta; ao contrário, ela foi (e ainda continua a ser) formulada “dentro” do ambiente institucional.

Dye (1992) afirmou que os interesses das elites estão em posição de vantagem e com mais probabilidade de atendimento dentro das políticas públicas do que os interesses dos grupos menos privilegiados. Explica que as políticas públicas econômicas e sociais resultam de pressões da sociedade, onde o conflito de interesses entre os sujeitos disputa a inserção na agenda pública. Segundo Dye (1992), o processo de formação de políticas públicas é um processo de barganha, competição, persuasão e comprometimento entre grupos de interesse e agentes governamentais.

Compreendo que o processo de formulação e implementação da política de cotas para a pessoa com deficiência, a exemplo de outras políticas de cotas (para negros, mulheres, índios, etc), encontrou também como limites e condicionamentos os processos econômicos, políticos e sociais. Compreendo que a

política de cotas, e o conseqüente “Programa, Brasil, Gênero e Raça” 106 contêm

contradições e muitas indefinições, inclusive em relação à definição de pessoa com

deficiência para efeito de preenchimento das vagas nas grandes empresas.

O programa foi apresentado à sociedade pelo Ministério do Trabalho e Emprego como um mecanismo capaz de promover a igualdade de oportunidades no trabalho e elidir a discriminação em relação a diversos grupos alvos de discriminação no mundo do trabalho, como negros, indígenas, mulheres, pessoas com HIV, gays e as diversas categorias de pessoas com deficiência (dentre outras).

De acordo com os estudos de Sassaki (2003), Lancilloti (2003), Pastore (2000) e Araújo (1996), no campo do trabalho a questão sobre a noção de pessoa

com deficiência é complexa e inconclusa, e muitas definições ainda continuam muito

obscuras e enviesadas pela noção médica. Neste sentido, os autores apontaram que a noção de deficiência é muito mais determinada pela ausência de uma arquitetura adequada do que pela presença de uma limitação pessoal. Além disso, segundo os autores, a noção de deficiência para o trabalho resulta também da forma como o mundo se organiza, produz as riquezas e distribui as rendas.

Neste sentido, Araújo (1996), um dos primeiros pesquisadores nacionais sobre o assunto, afirmou que:

A doutrina tem tratado do tema das pessoas portadoras de deficiências de forma pouco freqüente. Não há uniformidade de nomenclatura, utilizando-se, mais amiúde, os termos ou expressões «deficiente», «excepcional ou «pessoas portadoras de deficiência». A diversidade terminológica, no entanto, pode ser explicada pela tentativa de trabalhar com a terminologia adotada pela Lei Maior. Dessa forma, até 1978, a palavra empregada constitucionalmente era «excepcional». Posteriormente, adotou-se «deficiente». Como já visto, a expressão vigente na Constituição de 1988 é «pessoas portadoras de deficiência» (grifo nosso).

Acerca da definição legal do termo, Araújo (1996) expôs que “[...] a expressão, ‘pessoas portadoras de deficiência’ tem o condão de diminuir o estigma da deficiência, ressaltando o conceito de pessoa”. Afirma o autor que o termo constitucional é mais leve, mais elegante, e diminui a situação de desvantagem que caracteriza esse grupo de indivíduos. Fez observar que o núcleo é a palavra “pessoa” e que a palavra “deficiência” era apenas um qualificativo. Entendeu o autor

106

Programa Responsável pela implementação das ações de cotas para as “pessoas portadoras de deficiência” nas empresas no Maranhão.

que havia valorização da “pessoa”, e por esta razão adotou a expressão “pessoas portadoras de deficiência”.

Segundo Sassaki (2003), a construção de uma verdadeira sociedade inclusiva, onde se busca oportunizar igualdade de condições e de tratamento às pessoas, passa também pelo cuidado com a linguagem, pois é na linguagem que se expressa, voluntariamente ou involuntariamente, o respeito ou a discriminação em relação às “pessoas portadoras de deficiência”. Por isso, o autor complementa que é muito importante questionar os conceitos, uma vez que estes são realmente fundamentais para o entendimento das práticas sociais. Além de moldar nossas ações, ainda segundo Sassaki (2003), nos permitem analisar nossos programas, serviços e políticas sociais. Finalizando, explica o autor que os conceitos acompanham a evolução de certos valores éticos, como aqueles em torno da

pessoa portadora de deficiência.

Outro ponto relevante neste estudo para compreender a noção de pessoa

com deficiência para a política de cotas, nas grandes empresas, foi a sua vinculação

com as Convenções e Recomendações da Organização Internacional do Trabalho – OIT, das quais o Brasil é signatário. Destaco, entre outras, a Declaração das

Pessoas com Deficiência (RESOLUÇÃO DA ONU nº 2.542/75); o Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência” (RESOLUÇÃO DA ONU nº 37/52, de 3

de dezembro de 1982); e a Convenção nº. 159/1983 que trata da readaptação

profissional e emprego de “pessoas portadoras de deficiência”107.

A análise dos textos legais me permitiu perceber que a política de cotas determinada pela Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, a exemplo de outras políticas sociais, foi muito influenciada por mudanças no contexto político, social, cultural e jurídico internacional.

Neste sentido, o programa de ação mundial para as pessoas com

deficiência, que é datado de 1982, ainda com um forte viés da visão médica

impregnada pela Declaração das Pessoas com Deficiência (RESOLUÇÃO DA ONU nº 2.542/75), referindo-se a “déficits físicos ou mentais” e pautando-se num suposto “ser humano normal”, ofertou aos países que aderiram à política de cotas a definição de “pessoa portadora de deficiência”, que em muito serviu de base às primeiras

107

formulações das diversas políticas públicas brasileiras sobre o tema. De acordo com a Declaração das Pessoas com Deficiência (RESOLUÇÃO DA ONU nº 2.542/75):

Art. 1 O termo pessoa portadora de deficiência identifica aquele indivíduo que, devido a seus “déficits” físicos ou mentais, não está em pleno gozo da capacidade de satisfazer, por si mesmo, de forma total ou parcial, suas necessidades vitais e sociais, como faria um ser humano normal (grifo nosso).

Concordo com o pensamento exposto por Sassaki (1997) ao afirmar que “o modelo médico da deficiência” tem sido responsável, em parte, pela resistência da sociedade em aceitar a necessidade de mudar suas estruturas e atitudes para incluir em seu seio as “pessoas portadoras de deficiência” e outras condições atípicas para que estas possam buscar o seu desenvolvimento pessoal, social, educacional e profissional. Percebo que esta afirmação também encontra ressonância no contexto social deste estudo. A este respeito faço constar uma declaração que considero relevante para a fundamentação teórica do presente estudo:

A cooperativa de Vida Independente de Estocolmo (STIL), que é o primeiro centro de vida independente da Suécia, afirma que “uma das razões pelas quais as pessoas com deficiência estão expostas à discriminação é que os diferentes são frequentemente declarados doentes. Este modelo médico da deficiência nos designa o papel desamparado e passivo de pacientes, no qual somos considerados dependentes de cuidados de outras pessoas, incapazes de trabalhar, isentos dos deveres normais, levando vidas inúteis, como está evidenciado na palavra ainda comum ‘inválido’ (‘sem valor’, em latim)” (SASSAKI, 1997, p.27, grifo nosso).

Entretanto, faço a ressalva de que compreendo que o Programa de Ação

Mundial para as Pessoas com Deficiência (RESOLUÇÃO nº 37/52, de 1982), mesmo

sendo muito preso ao viés médico, avançou consideravelmente em termos de formulação de políticas públicas, principalmente ao fazer as distinções entre deficiência, incapacidade e invalidez (entre outras). Este evidenciou que as diversas “pessoas deficientes” não constituíam um grupo homogêneo e que enfrentavam dificuldades de inclusão diferentes. De acordo com este Programa de Ação Mundial:

As pessoas deficientes não constituem um grupo homogêneo. Por exemplo, as pessoas com enfermidades ou deficiências mentais, visuais, auditivas ou da fala, as que têm mobilidade restrita ou as chamadas "deficiências orgânicas", todas elas enfrentam barreiras diferentes, de natureza diferente e que devem ser superadas de modos diferentes.

Portanto, a incapacidade existe em função da relação entre as pessoas deficientes e o seu ambiente. Ocorre quando essas pessoas se deparam com barreiras culturais, físicas ou sociais que impedem o seu acesso aos diversos sistemas da sociedade que se encontram à disposição dos demais cidadãos. Portanto, a incapacidade é a perda, ou a limitação, das oportunidades de participar da vida em igualdade de condições com os demais (RESOLUÇÃO DA ONU n. 37/52, 1982, grifo nosso).

A análise da Convenção n. 159/83 da Organização Internacional do Trabalho – OIT permite observar que a definição legal de “pessoa deficiente” foi muito influenciada pelas recomendações e convenções internacionais anteriores, inclusive pelo tradicional viés médico. Segundo este documento internacional,

1. Para efeito desta Convenção, entende-se por pessoa deficiente todas