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NOBUYOSHI ARAKI: ENTRE O SUBLIME E O NEFANDO

No documento ATRÁS DA IMAGEM, AO ALCANCE DO OLHAR (páginas 53-73)

“Tenho tirado fotos desde que eu vim a este mundo. Eu tinha acabado de sair para fora do ventre de minha mãe, quando eu me virei e fotografei seu sexo!”

(Nobuyoshi Araki)

Nobuyoshi Araki nasceu em 1940, na cidade de Tóquio, no Japão. Sua primeira câmera foi uma Baby Pearl, uma pequena máquina 3x4 com um fole, que ganhou de seu pai na década de 1950. Ele estudou fotografia e cinema na Chiba University, entre os anos de 1959 e 1963, e trabalhou com fotos comerciais para a Dentsu Advertising, uma das maiores agências de publicidade do mundo, por quase 10 anos. A partir da década de 1970, passou a realizar séries fotográficas de temática erótica.

Figura 17: Nobuyoshi Araki

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Em 1971, Araki se casou com Yoko Aōki. Durante a sua festa de casamento, apresentou imagens da esposa nua, o que deixou seus convidados desconcertados. Mais tarde, publicou Sentimental Journey, uma espécie de diário fotográfico de sua lua de mel – um tipo de imersão na intimidade do casal. Tudo foi registrado, desde situações corriqueiras, como Yoko segurando seu gato, até cenas do ato sexual do casal.

Figuras 18 e 19: Yoko Aōki com o gato / Yoko Aōki no sexo

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Araki. Köln/Alemanha: Taschen, 2002, p. 494/492.

Alguns anos mais tarde, em 1989, Yoko foi hospitalizada em decorrência de um mioma no útero e, no ano seguinte, aos 42 anos, ela faleceu. Araki registrou os últimos meses de vida da esposa internada até a sua morte. Estas fotografias passaram a constituir o álbum Winter Journey, publicado em 1991.

Entre os anos de 1983 e 1985, quando a indústria sexual de Tóquio estava em pleno vapor, Araki, acompanhado de Akira Suei, editor chefe da revista Photo Age – uma revista fundada em 1981, no Japão, por Byakuya-Shobo, cujo conteúdo principal eram as fotografias feitas por Araki –, circulava pela cidade em busca de locais para entretenimento sexual, como clubes de sexo e sex shops. Nesses passeios, o artista registrava tudo o que podia: a cidade, as fachadas, o interior dos estabelecimentos e as pessoas que ali estavam. Ele fotografava prostitutas nuas ou seminuas, que performavam para o público e para a sua câmera, e casais em uma diversidade de práticas sexuais. O artista estabelecia, assim, um tipo de relação voyeurística com esse universo.

Quando o próprio Araki aparece nas fotografias, com seus óculos de sol de lentes redondas, faz com que a relação entre artista e obra se mostre ainda mais peculiar. O fotógrafo, que esperamos estar escondido atrás da câmera, se materializa

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na imagem, sendo transportado para a cena/performance que ele mesmo criou. Enquanto participa da encenação, estabelecendo uma relação privada com o seu assunto, ele também é um observador que vê toda a cena.

Figura 20: Araki em cena

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Tokyo Lucky Hole. Köln/Alemanha: Taschen, 2016, n.p.

Bataille, em seu ensaio O erotismo, afirma: “O desejo do erotismo é o desejo que triunfa sobre o interdito” (BATAILLE, 1957/2017, p. 282). Isso porque a sexualidade humana é limitada por interditos e o domínio do erotismo é o da transgressão desses interditos. A transgressão, então, não nega o tabu, mas o transcende e o completa. Para Sontag (2015, n.p.), em seu texto intitulado “A imaginação pornográfica”:

[...] a imaginação pornográfica habita um universo que é, por mais repetitivos os incidentes que ocorrem em seu interior, incomparavelmente econômico. Aplica-se o critério de relevância mais estrito possível: tudo deve apontar para a situação erótica. O universo proposto pela imaginação pornográfica é um universo total. Tem o poder de ingerir, metamorfosear e traduzir todas as preocupações com que é alimentado, convertendo tudo à única moeda negociável do imperativo erótico. Toda ação é concebida como uma série de intercâmbios sexuais. [...] A bissexualidade, o desrespeito pelo tabu do incesto e outros traços similares comuns às narrativas pornográficas funcionam para multiplicar as possibilidades de troca.

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Ainda, segundo Sontag (2015, n.p.), “tudo o que a pornografia significa é a representação das fantasias da vida sexual infantil, editadas pela consciência mais treinada, menos inocente, do adolescente masturbador, para ser comprada pelos chamados adultos”. A ideia de Lacan, ao abordar a função do quadro em seu Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, de que a obra que olhamos também nos olha, parece apreender o cerne da repulsa e atração das obras de Araki, pois o expectador, remetido aos seus desejos mais íntimos, tem sua intimidade violada.

Os estudos de Freud sobre os chistes, mais especificamente a parte sobre os chistes obscenos, nos são elucidativos para pensarmos a afirmação de Sontag e as fotografias de Nobuyoshi Araki. Os chistes obscenos, segundo Freud, através da técnica da alusão, contornam um obstáculo, a manifestação crua do sexual, extraindo prazer de uma fonte abjeta. Essa fonte provém da sexualidade infantil, quando não havia as barreiras do pudor, da repugnância e da moralidade. Aquilo que era prazeroso na infância, após inscrição na cultura e estabelecimento do recalque transforma-se em algo repulsivo e inaceitável. Freud assinala que, quando o adulto educado ri de um sofisticado chiste obsceno, ele está rindo da mesma coisa que provoca riso no sujeito vulgar que ouve um escárnio indecente. A pessoa refinada, porém, repudia o escárnio indecente e só pode rir “quando o chiste lhe presta socorro” (FREUD, 1905/2006b, p. 95).

Em nota acrescentada em 1915 aos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud afirma que a beleza, embora associada ao encanto, tem sua base no campo da excitação sexual e originalmente significou “aquilo que excita sexualmente” (FREUD, 1905/2006b, p. 142). Devemos considerar também o fato paradoxal de que, mesmo que não achemos propriamente “belos” os genitais, sua visão provoca em nós a mais poderosa excitação sexual. As fotografias de Araki circulam entre uma sofisticação fetichista e o abjeto, revelando as duas faces do objeto a. Afinal, como nos diz Freud (1905/2006b), na sexualidade, o mais sublime e o mais nefando estão em íntima dependência.

A forma que Araki retrata a mulher nos remete a uma possível releitura dos clássicos eróticos japoneses, chamados Shunga (que significa “primavera”, um eufemismo comum para a sexualidade), feitos em xilogravuras durante o período Edo (quando o Japão foi governado pelos xoguns da família Tokugawa, entre os anos de

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1603-1868). Há uma foto em que Araki nos mostra uma mulher, nua, dentro de uma banheira, com um polvo sobre o seu corpo.

Figura 21: Mulher nua com polvo

Fonte: ARAKI, Nobuyoshi. Araki. Köln/Alemanha: Taschen, 2002, n.p.

Nesta fotografia, Araki faz menção à icônica ilustração O sonho da mulher do pescador (1814), de Katsushika Hokusai, uma referência à arte erótica com cordas. A obra original retrata o êxtase de uma mulher tomada por polvos, cujos tentáculos entrelaçam seu corpo.

Figura 22: Katsushika Hokusai: O sonho da mulher do pescador (1814)

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Essa mistura entre tradição (arte erótica clássica, quimonos etc.) e pornografia levou as obras de Araki a acervos renomados em todo o mundo. Em entrevista a Jérôme Sans (2007), Araki, ao ser questionado sobre a relação entre as suas fotografias e o Shunga, responde:

Shunga não apenas revela sexo, eles revelam o segredo do amor

entre duas pessoas, entre um homem e uma mulher. Muitas vezes eu apareço nas minhas fotografias, nas quais cenas de escravidão ou sexo são mostradas. Mas eu não tenho o papel principal. Sou como um personagem menor em uma impressão de Shunga, um papel secundário ou de espectador. (ARAKI, 2002, p. 7, tradução minha)

Sobre o seu objetivo com a arte, Araki afirma: “Meu desejo é documentar a minha relação com as mulheres, capturar inclusive nossos sentimentos. Isso é muito difícil, se não impossível de conseguir, mas esse é o objetivo. [...] A relação íntima que estabeleço com meus sujeitos fotográficos é a base de tudo.” (ARAKI apud ESCANDÓN, 2002, p. 6).

É comum, em suas fotografias, a montagem de uma cena que inclui dinossauros de plástico. Segundo o artista, estas criaturas representam o seu desejo de estar nas fotografias, como se fossem parte de seu corpo (ARAKI, 2002). Eventualmente, ele intervém nas fotografias com manchas coloridas e, ao comentar esta prática, afirma: “é uma indicação do meu desejo de mexer, como se eu estivesse tocando neles ou colocando meu sexo neles.” (ARAKI, 2002, p. 7, tradução minha).

Figura 23: Mulher com dinossauros

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Em entrevista a Jérôme Sans, o artista revela:

Eu preciso de assuntos. Pode ser flores, o céu ou, é claro, mulheres. Eu vivo através de mulheres. Eu sempre fotografarei mulheres. Se um dia as mulheres desaparecerem do planeta, espero ter morrido há muito tempo. (ARAKI, 2002, p. 7, tradução minha)

E, em outro momento da entrevista, ele continua:

As mulheres têm todos os encantos da própria vida. Elas têm todos os atributos essenciais: beleza, feiura, obscenidade, pureza ... muito mais que a natureza. [...] Seja sua esposa, um caso de uma noite ou uma prostituta, as mulheres ensinam como o mundo gira. (ARAKI, 2002, p. 7, tradução minha)

Tudo o que é capturado em suas fotos – flores, objetos, imagens do cotidiano etc. – é tão erótico quanto as genitálias, práticas sadomasoquistas e atos sexuais que costuma retratar. “Por que [as minhas fotos] acabam sendo tão eróticas? Porque eu as fotografei” (ARAKI apud KOSUGA, 2013, n.p.), afirma o artista.

3.1 A DAMA SUSPENSA POR CORDAS

Nobuyoshi Araki é internacionalmente conhecido por seus trabalhos sobre bondages (amarrações ou, no termo japonês, kinbaku). Originalmente, o kinbaku foi um costume milenar utilizado pelos samurais para amarrar, de forma segura, os seus inimigos. Posteriormente, essa prática foi integrada, por influência do ocidente, ao universo erótico, destacando-se como ato fetichista, sadomasoquista.

Figura 24: Kinbaku

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Freud (1933[1932]/2006) já nos ensinara que há algo de inapreensível no que se refere à representação da mulher. Logo, a mulher não se inscreve da mesma forma para todos e, por isso, tanto os homens quanto as mulheres têm que se haver com a questão do que é uma mulher. Segundo Lacan: “A mulher, isto só se pode escrever barrando-se o A. Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher pois [...] por sua essência ela não é toda.” (LACAN, 1972-1973/1985, p. 98).

Não havendo um significante que a represente, a mulher encontra seu refúgio no artifício da máscara, dos semblantes, seja pela vertente da encenação da mulher castrada, pelo sacrifício ou, até mesmo, pelo suposto masoquismo feminino. As mulheres, eventualmente, assumem “ares de masoquista, mas para se dar ares de mulher, sendo a mulher de um homem, na impossibilidade de ser A mulher” (SOLER, 2005, n.p.). Isso não significa que elas sejam masoquistas de fato, mas que estão muito mais propensas em dispor de si mesmas, de seu corpo.

Estaria Araki elevando o semblante à dignidade de Coisa?

É no movimento literário medieval do Amor Cortês que Lacan encontra uma possibilidade de representação do objeto feminino. A Dama, enquanto “verdadeira mulher” explora uma zona desconhecida, ultrapassa os limites e denuncia o próprio falo como um semblante relativo ao gozo. Para advir como A Dama, a mulher fora esvaziada de substância, despersonalizada, teve subtraídos os seus atributos – era, inclusive, frequentemente invocada por um termo masculino, Mi Dom [Meu Senhor] – o que evidencia certa submissão à Dama –, “um objeto enlouquecedor”, “um parceiro desumano” dirá Lacan (LACAN, 1959-1960/2008, p. 182).

A poesia cortês se tornou paradigma da sublimação no Seminário, livro 7: A ética da psicanálise, na medida em que a Dama revela a impossibilidade estrutural de se preencher o vazio da Coisa. Contudo, não seria possível pensar numa relação entre o amor cortês e a sublimação sem a referência à perspectiva. Segundo Porge (2019, p. 113), “É justamente porque há no amor cortês algo difícil de ser representado que se recorre à perspectiva, que é o que dá lugar ao que escapa à representação.”

É nesse sentido que Lacan compara a estrutura formal da poesia cortês com a arte de alguns pintores do final do século XVI e do início do século XVII, situando em ambos a produção de um “fantasma fálico”, a partir do fenômeno estético conhecido como anamorfose. No Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ao retomar o tema da anamorfose, Lacan afirma:

60 [...] se, por exemplo, um pincel da luz que conduz nosso olho nos cativa a ponto de nos impedir de ver o que ele ilumina – só o fato de introduzir nesse campo um pequeno anteparo, que corte na direção daquilo que é iluminado sem ser visto, faz reentrar na sombra, se assim podemos dizer, a luz leitosa, e faz surgir o objeto que ela escondia. (LACAN, 1964/2008, p. 108)

A anamorfose consiste em um efeito de perspectiva, criado pela articulação entre uma imagem no campo da visão – uma superfície –, e o ponto geometral – a linha reta desempenhando o papel de trajeto da luz. O que mais interessa a Lacan é justamente a dimensão geometral, que não tem a ver com a visão como tal, pois o que está em jogo nesta é a ordem simbólica, a função da falta. Na anamorfose, quando aparece algo lá onde nada deveria aparecer, é possível entrever a outra face do objeto, o vazio insuportável e funesto da Coisa.

Enquanto a perspectiva ensina o artista a dominar o vazio, a fixa-lo sob a forma de ilusão do espaço, a anamorfose reverte essa ilusão, revertendo também o olhar, e, assim, o artista se faz olhar pela obra. Na anamorfose, encontramos uma presentificação da elisão do olhar como objeto a no espaço entre duas imagens (a deformada e a reformada). A organização de uma encenação da impossibilidade de acesso ao objeto aproxima a anamorfose e o amor cortês na medida em que a beleza da Dama constitui limite à crueldade de sua inacessibilidade.

[...] a mulher idealizada, a Dama, que está na posição do Outro e do objeto, coloca-se de repente, brutalmente, no lugar sabiamente construído por significantes requintados, em sua crueza, o vazio de uma coisa que se revela ser a coisa, a sua, aquela que se encontra no âmago de si mesma em seu vazio cruel. (LACAN, 1959-1960/2008, p.196)

Em suas fotografias, encenadas, Araki retrata mulheres nuas, seminuas, com quimonos ou amarradas – na maioria das vezes, suspensas por cordas. Essas imagens, ao mesmo tempo em constroem fantasmaticamente a mulher fálica, pois sugerem certa supervalorização da mulher (o que encontramos na fantasia perversa), também remetem à castração. Além disso:

[...] Lacan observa que a vítima [do perverso] não é qualquer corpo para torturar, nem tampouco o atormentador é qualquer carrasco. A vítima tem traços muito precisos: um deles é a inocência, a castidade, a vítima está inscrita sob os ideais do Outro, e não está ali só como

61 corpo, que se trata suposto de fazer sofrer, de angustiar, mas, sobretudo se trata de forçar, de violar seu pudor. O cerne da experiência sádica é o gozo forçado da vítima. Não basta que sofra, é também preciso atingir o seu pudor. (MARTINHO, 2011, p. 111)

As damas de Araki dispensam os atributos de castidade e inocência, pois são, em sua maioria prostitutas. É do lugar de “vítima tão terrivelmente voluntária” (LACAN, 1959-1960/2008, p. 294) que elas são retratadas. Dos seus ares de masoquistas, extraem seu brilho, fascinante e insuportável. O recurso sádico/masoquista como modo de formalização presente na estética de Nobuyoshi Araki aponta para uma certa inadequação fundamental entre o vazio do desejo e os objetos empíricos, mais do que para uma fixação fetichista.

Posto isso, em seu Seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan (1972-1973/1985) apresenta um grafo que estabelece uma equivalência entre Real, Simbólico e Imaginário, situando o semblante sobre a via que vai do simbólico ao real. Com esse grafo, entende-se que o semblante resulta do esforço do simbólico para apreender o real.

Figura 25: Esquema do semblante

Fonte: LACAN, Jacques. (1972-1973). O Seminário, livro 20: mais, ainda Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 121.

Rocha Miranda (2011, p. 139) comenta que “O sujeito percorrendo o caminho, através do desfile de significantes que vai do simbólico ao real, encontra o semblante, a aparência, lugar em que no triângulo Lacan situa o objeto a”. Esse percurso nos

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mostra “a verdadeira natureza do objeto a. Se o objeto a [...] [é] aparência de ser, é porque ele parece nos dar o suporte do ser” (LACAN, 1972-1973/1985, p. 124).

A estética de Araki revela uma relação dialética estreita e difícil entre o semblante e o real, já que, como afirma Badiou, “o real surge com uma violência extraordinária justo no ponto de seu semblante” (BADIOU, 2017, n. p.). Há algo de real na própria máscara, aquilo que, para o sujeito, é sem medida.

Ainda segundo Badiou (2017, n. p.): “[É] sempre no ponto do semblante que haveria uma chance de encontrar o real, uma vez que é preciso também que haja um real do próprio semblante: que haja uma máscara, que ela seja uma máscara real”. Mas não podemos deixar de levar em consideração que, já que não há representação possível do real, a máscara, quando arrancada, revela-se como máscara de outra máscara.

[...] jamais se [chega] ao real nu, já que é a própria máscara que está nua, é o próprio semblante que é real. Mas abre a partir daí outras perspectivas, mais otimistas, nas quais, através do semblante, do semblante do real e do real do semblante, algo de verdadeiramente real vem se afirmar. (BADIOU, 2017, n. p.)

Figura 26: Mulher suspensa

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Araki busca sustentar a imagem da mulher inacessível, impessoal e indiferente. Parece produzir um semblante que ilustraria a concepção lacaniana d’A mulher que não existe, mas dá a entrever o ponto vazio do desejo. Revela-se, assim, algo da ordem do fantasma fálico, o sujeito como nadificado, “encarnação imajada da castração [...] a qual centra para nós toda a organização dos desejos através do quadro das pulsões fundamentais” (LACAN, 1964/2008, p. 91).

Em suma, tal como na criação da Dama do Amor Côrtes, encontramos nas mulheres retratadas por Araki o objeto feminino despersonalizado, desprovido de qualquer traço de individualidade. Araki revela a posição da aparência como pura aparência, nos levando à compreensão da arte como espaço de desdobramento de semblantes e simulacros.

Como testemunham a história e a antropologia, uma preocupação constante da humanidade consiste em velar, cobrir as mulheres. De certo modo é possível dizer que as mulheres são cobertas porque A mulher não pode ser descoberta. (MILLER, 2010, p. 2)

Sob a imagem está a ausência do falo, de modo que a imagem funciona como uma roupa. Afinal, conforme afirma Lacan (1956-1957/1995, p. 169): “As roupas não são feitas apenas para esconder o que se tem, [...] mas também, precisamente, o que não se tem. [...] Não se trata, sempre e essencialmente, de esconder o objeto, mas também de esconder a falta de objeto”. Nas fotografias em estudo, a nudez não está sob o quimono, mas sob aquilo que lhe dá corpo e brilho fálico, sustentando a fantasia.

3.2 TODA NUDEZ SERÁ FOTOGRAFADA

É sabido que há divergência considerável entre as posturas morais do Ocidente e do Oriente no que se refere à sexualidade. Dentre outros aspectos, no Japão, por não haver a influência do cristianismo, a sexualidade não é vinculada ao pecado.

No Japão do século VII – enquanto a Europa apreciava todos os outros aspectos da Idade Média –, livros didáticos e manuais sexuais muito bem produzidos e romances eróticos elegantes já estavam amplamente disponíveis. [...] No Japão a ideia de educação sexual não é apenas tradicional. Trata-se de um conceito cultuado nos mitos de criação do país. (HILL; WALLACE, 2003, p. 41)

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Ainda assim, a revista Photo Age, na qual Araki publicava seus retratos, foi considerada obscena em 1988. A editora recebeu ordens para retirar de circulação todas as cópias e a publicação foi interrompida. Mas, antes disso, foi censurada por mais de uma vez. Araki, sobre isso, comenta:

Eu acho que essa atitude reflete um paradoxo do Japão, que tem leis contra a pornografia. Sim, e tem sido assim desde o período Edo. Pode parecer ambíguo ou paradoxal. Pode haver uma lei estrita sobre censura, mas você ainda pode encontrar tudo e qualquer coisa no Japão. Caos é a regra. O rigor rígido coexiste com o glamour de oportunidades desviantes. E essas coisas contrastantes geralmente se confundem. No Japão, ninguém condenará a morte de um fotógrafo por amarrar uma garota e tirar fotos dela. [...] Os países cristãos são muito mais severos a esse respeito. (ARAKI, 2002, p. 7, tradução minha)

Inicialmente, foi exigido que deixassem de mostrar pelos pubianos; eles rasparam. Depois, foram obrigados a tapar a área púbica com tinta; eles obedeceram, entretanto, não colocaram a tinta sobre o papel, mas sobre o corpo das modelos. Quando precisaram cobrir com roupa íntima o seu assunto, se certificaram de que as peças seriam tão transparentes que fosse possível ver o que estava por baixo. Assim, Araki tornou suas fotografias ainda mais sensuais, já que, segundo Winter (2001, p. 114):

[...] uma parte do corpo vela outra e suscita portanto nosso desejo pelo fato de que não o vemos; ou então há um uso real dos véus, isto é, há realmente véus no sentido de cortinas, que envolvem tal pedaço do braço, da perna, tal parte carnuda do corpo, ou então, simplesmente, e nos perguntamos por vezes o que aquilo faz ali, a dama está

No documento ATRÁS DA IMAGEM, AO ALCANCE DO OLHAR (páginas 53-73)

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