• Nenhum resultado encontrado

ATRÁS DA IMAGEM, AO ALCANCE DO OLHAR

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "ATRÁS DA IMAGEM, AO ALCANCE DO OLHAR"

Copied!
109
0
0

Texto

(1)

JOSÉ MAURÍCIO TEIXEIRA LOURES

ATRÁS DA IMAGEM, AO ALCANCE DO OLHAR

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Mestrado e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida para obtenção do título de Doutor em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração: Psicanálise e Sociedade. Linha de pesquisa: Arte e Psicanálise.

ORIENTADORA: PROFa. DRa. SONIA XAVIER DE ALMEIDA BORGES

RIO DE JANEIRO 2020

(2)

UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO Rua Ibituruna, 108 – Maracanã

20272-020 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: +55 21 2574-8888 e 0800 024 6172

12,5 cm

Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA Bibliotecária Adriana R. C. de Sá – CRB-7/4049

L892 Loures, José Maurício Teixeira

Atrás da imagem, ao alcance do olhar / por José Maurício Teixeira Loures. - 2020.

107 f. : il. color. ; 30 cm.

Impresso por computador (original).

Orientador: Sonia Xavier de Almeida Borges. Tese (doutorado) – Universidade Veiga de Almeida, Programas de Pós-graduação Stricto Sensu,

Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio de Janeiro, 2020.

1. Psicanálise e arte. 2. Fotografia. 3. Representação (Psicanálise). 4. Woodman, Francesca, 1958-. 5. Araki, Nobuyoshi, 1940-. I. Borges, Sonia Xavier de Almeida (orientador). II. Universidade Veiga de Almeida. Programas de Pós-graduação Stricto Sensu, Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade. III. Título.

CDD – 150.195

(3)

FOLHA DE APROVAÇÃO

JOSÉ MAURÍCIO TEIXEIRA LOURES

ATRÁS DA IMAGEM, AO ALCANCE DO OLHAR

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Mestrado e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida para obtenção do título de Doutor em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração: Psicanálise e Sociedade. Linha de pesquisa: Arte e Psicanálise.

Aprovada em 31 de janeiro de 2020.

_____________________________________ Sonia Xavier de Almeida Borges

Universidade Veiga de Almeida

_____________________________________ Ana Maria Toledo Piza Rudge

Universidade Veiga de Almeida

_____________________________________ Maria Anita Carneiro Ribeiro

Universidade Veiga de Almeida

_____________________________________ Marco Antonio Coutinho Jorge

Universidade do Estado do Rio de Janeiro _____________________________________

Vivian Martins Ligeiro

(4)

A Sonia Borges, que tem me conduzido pela psicanálise e pela arte com dedicação, afeto e entusiasmo.

A minha mãe, Mônica, eterna companheira em minha jornada em busca do impossível.

Ao meu irmão, Caio, pelo apoio incondicional.

(5)

AGRADECIMENTOS

O fotógrafo Ansel Adams, certa vez, disse: “Não fazemos uma foto apenas com uma câmera; ao ato de fotografar trazemos todos os livros que lemos, os filmes que vimos, as músicas que ouvimos, as pessoas que amamos.” Assim também é a escrita de uma tese, que, como a produção de uma obra de arte ou como a construção de um sonho, se faz a partir de muitos elementos. Deixo, aqui, os meus agradecimentos a quem direta ou indiretamente participou da trajetória desta pesquisa.

Agradeço primeiramente a Sonia Borges. Esta pesquisa foi o início de um trajeto que me permitiu resgatar o desejo pela fotografia e continuar trilhando o caminho da arte e da psicanálise que Sonia me apresentou/presenteou e me conduziu desde os primeiros passos até que eu pudesse adquirir segurança e maturidade para propor desvios, os quais você aceitou me acompanhar com a sua experiência, conhecimento e extrema dedicação. As nossas longas conversas, a sua paixão pela arte e pela psicanálise e, principalmente, o seu engajamento nesta pesquisa foram fundamentais. A conclusão deste Doutorado encerra um vínculo acadêmico, mas reforça ainda mais o nosso encontro. Repito o que escrevi nos agradecimentos da minha dissertação de Mestrado: “Se todos fossem iguais a você, que maravilha viver”.

Exprimo também a minha gratidão a Gloria Sadala. A nossa parceria tem sido fortalecida e ressignificada continuamente. Você é poetiza incansável na arte da escrita, mas, também, no trabalho e na vida. Seus atos produzem ressonâncias que assumem proporções inimagináveis e o maior exemplo disso foi a criação deste Mestrado e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Cada dissertação e tese defendidas, cada profissional que é tocado pela psicanálise, produzindo impacto em sua prática, cada pesquisador que irá expandir seus saberes adquiridos neste Programa, tudo isto é ressonância do seu ato criador.

Não posso deixar de expressar minha gratidão a Maria Anita Carneiro Ribeiro. A psicanálise impulsionou este encontro, mas você também tornou possível um novo encontro com a psicanálise, com uma psicanálise que provém de muito estudo, dedicação, paixão e experiência. É um privilégio ter você como professora, supervisora e companheira de jornada. Obrigado por ter

(6)

prontamente aceito o convite para compor minhas bancas de qualificação e defesa.

Também, agradeço a Betty Fuks. O nosso encontro foi um dos maiores presentes deste Mestrado e Doutorado. Carrego enorme gratidão por todo o seu apoio e carinho. Obrigado pelas recomendações de leituras, por ter me apresentado o trabalho de Evgen Bavcar, que, com certeza, será objeto de estudos futuros, e pela preciosa indicação do Marco Antonio Coutinho Jorge e da Vivian Martins Ligeiro para compor a minha banca de defesa.

A Ana Maria Rudge, que muito me alegrou ao aceitar estar nas minhas bancas de qualificação e de defesa, obrigado pelo apoio.

A Marco Antonio Coutinho Jorge, em cuja transmissão faz parte do meu percurso na psicanálise, obrigado por ter aceitado o convite para participar da minha banca de defesa.

A Vivian Martins Ligeiro, obrigado por ter aceitado participar da minha banca de defesa e pela valiosa contribuição, junto ao Marco Antonio Coutinho Jorge, com seu artigo intitulado “Psicanálise e arte: o triunfo do real”.

A Maria Helena Martinho tenho a agradecer, pelo apoio, parceria, dedicação e pelo entusiasmo em sua transmissão, que sempre me inspirou.

Agradeço aos professores do Programa de Mestrado e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade não mencionados antes, dentre os quais destaco: Perla Klautau, sempre muito receptiva e atenciosa; a Antonio Quinet, teórico e pessoa admirável, pela transmissão, oportunidades e parcerias; e a Joana Novaes, pelo incentivo e pela prolífera parceria acadêmica.

Também, agradeço as minhas colegas de orientação, Vera Stocco, Andréa Pires Camargo, Monica Vulej; aos meus colegas de turma André Veras, Evanir, Greta, Kátia Cristian, Mônica Miranda e Milânia.

A Ieda Tucherman, agradeço o engajamento em contribuir para esta pesquisa, pelas indicações, livros e produtivas conversas.

A Vera Pollo agradeço por tudo o que temos construído em análise, pelo apoio e escuta, que foram fundamentais para que fosse possível realizar este Doutorado e desenvolver esta tese.

Agradeço a Aline Drummond, Andréa Senna, Giselle Albuquerque, Josy Pandolfo e Poliana Nunes, amigas queridas que muito me apoiaram neste percurso.

(7)

Agradeço a Andreia Paraquette, parceira na fotografia e na vida; a Sônia Menezes, cuja amizade foi outro desdobramento dos meus primeiros estudos em fotografia e que sempre incentivou o meu desenvolvimento acadêmico; e a Fabiana Neves, pela amizade, apoio e pelas contribuições teóricas ao me apresentar detalhes e bibliografia sobre a cultura japonesa.

A Lúcia Mota, obrigado pela amizade, pela disponibilidade e pelo empenho na impressão e encadernação final deste trabalho.

Um especial agradecimento à Universidade Veiga de Almeida, lugar onde iniciei minha trajetória acadêmica e onde conheci as pessoas que fizeram parte desta jornada.

E, por fim, agradeço à CAPES, pela bolsa de estudos concedida, que tornou possível a realização deste Doutorado.

(8)

“O que está ali remete ao que não está ali, ou o chama; porém não o chama sob a égide de uma regra determinada e formulável, como um teorema chama suas consequências, ainda que infinitas, um número seus sucessores, uma causa seus efeitos, ainda que inumeráveis. [...] Aquilo que não está numa representação pode, mesmo assim, achar-se ali, e para isso não há limite algum.”

(9)

RESUMO

É conhecida a tradição contemplativa da arte, com seu efeito de “suave narcose”. Contudo, cada vez mais, tem se destacado uma arte que, muito pelo contrário, não visa nenhum tipo de apaziguamento. Essa arte quer provocar, fazer rupturas na experiência artística. E artistas que assumem esse projeto se engajam na invenção de modos extremamente particulares de formalização que venham a responder a isso, excedendo a tradição da representação. Esta pesquisa de Doutorado visa abordar esse excedente da representação a partir da teoria psicanalítica em articulação com a arte e a filosofia, buscando um lugar comum entre esses saberes. As obras de dois fotógrafos, a norte-americana Francesca Woodman (1958-1981) e o japonês Nobuyoshi Araki (1940 - ) são tomadas para estudo, já que, como se busca sustentar nesta pesquisa, ambos flertam com o impossível. Trabalha-se com a hipótese de que a partir da análise de seus processos de criação será possível extrair um saber acerca do que de fato está em jogo nesses tipos de formalização estética que, por sua vez, é consonante com a subversão freudiana da noção clássica de representação.

Palavras-chave: Fotografia; Psicanálise; Corpo; Representação; WOODMAN,

(10)

ABSTRACT

The contemplative tradition of art is known, with its effect of “soft narcosis”. However, more and more, an art has been highlighted that, quite the contrary, does not seek any kind of appeasement. This art wants to provoke, to disrupt the artistic experience. And artists who undertake this project engage in the invention of extremely particular modes of formalization that will respond to this, exceeding the tradition of representation. This PhD research aims to approach this surplus of representation from psychoanalytic theory, in articulation with art and philosophy, seeking a common place between these knowledge. The works of two photographers, the American Francesca Woodman (1958-1981) and the Japanese Nobuyoshi Araki (1940 -) are taken for study, as, as is sought in this research, both flirt with the impossible. It is hypothesized that from the analysis of its creation processes it will be possible to extract knowledge about what is really at stake in this kind of aesthetic formalization, which, in turn, is in line with the Freudian subversion of the classical notion of representation.

Keywords: Photography; Psychoanalysis; Body; Representation; WOODMAN,

(11)

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: José Maurício Loures: Sobre-posições #1 (2017-2019) ... 20

Figura 2: Francis Bacon: Cabeça 1 (1966) ... 21

Figura 3: Sergio Larrain: Trafalgar Square (1958-1959) ... 22

Figura 4: Sergio Larrain: Niñas (1952) ... 22

Figura 5: José Maurício Loures: Sobre-posições #2 (2017-2019) ... 26

Figura 6: Anna Bella Geiger: Tordesilhas, da série “Fronteiriços” (2014) ... 30

Figura 7: José Maurício Loures: Sobre-posições #3 (2017-2019) ... 32

Figura 8: Esquema do véu ... 33

Figura 9: José Maurício Loures: Sobre-posições #4 (2017-2019) ... 34

Figura 10: Esquema de Jacques-Alain Miller ... 35

Figura 11: José Maurício Loures: Sobre-posições #5 (2017-2019) ... 39

Figura 12: Banksy: Love is in the Bin (2018) ... 41

Figura 13: Rolf Nesch: Elbe Bridge I (1932) ... 44

Figura 14: Bernard Schultze: Insektenhaft (1952) ... 44

Figura 15: Fritz Wotruba: Standing Figure (1949–1950) ... 45

Figura 16: Marina Abramović: Imponderabilia (1977) ... 50

Figura 17: Nobuyoshi Araki ... 52

Figura 18: Yoko Aōki com o gato ... 53

Figura 19: Yoko Aōki no sexo ... 53

Figura 20: Araki em cena ... 54

Figura 21: Mulher nua com polvo ... 56

Figura 22: Katsushika Hokusai: O sonho da mulher do pescador (1814) 56 Figura 23: Mulher com dinossauros ... 57

Figura 24: Kinbaku ... 59

Figura 25: Esquema do semblante ... 62

Figura 26: Mulher suspensa ... 63

Figura 27: Rachadura ... 67

Figura 28: Cano ... 67

Figura 29: Figo ... 67

Figura 30: Morango ... 67

Figura 31: Genitais riscados ... 68

(12)

Figura 33: A morte de Yoko ... 71

Figura 34: Yoko no caixão ... 71

Figura 35: Francesca Woodman ... 73

Figura 36: Untitled, Providence, Rhode Island, (1975-1978) ... 75

Figura 37: Francesca Woodman: About being my model, Providence, Rhole Island (1976) ... 76

Figura 38: Francesca Woodman: Untitled, Providence, Rholand Island (1976) ... 80

Figura 39: Francesca Woodman: From Space, Providence, Rhode Island (1976) ... 81

Figura 40: Francesca Woodman: House #4, Rhode Island (1976) ... 82

Figura 41: Francesca Woodman: Untitled, Boulder, Colorado (1976) .. 82

Figura 42: Francesca Woodman: Untitled, Itália (1977-1978) ... 85

Figura 43: Francesca Woodman: From Angel série, Itália (1977) ... 85

Figura 44: Francesca Woodman: Then at one point I did not need to translate the notes; they went directly to my hands, Providence, Rhode Island (1976) ... 86

Figura 45: Dirk Bouts: Ceia (1464) ... 88

Figura 46: Esquema da perspectiva em Ceia ... 88

Figura 47: Tintoretto: A última ceia (1593) ... 88

Figura 48: Esquema da perspectiva em A última ceia ... 88

Figura 49: Triângulo do sujeito que vê ... 89

Figura 50: Triangulo do sujeito que é causado pelo olhar ... 89

Figura 51: Quiasma do campo escópico ... 90

Figura 52: Francesca Woodman: Space2, Providence, Rhode Island (1976) ... 94

Figura 53: Francesca Woodman: Untitled, New York (1979-1980) ... 95

Figura 54: Francesca Woodman, Untitled, Providence, Rhode Island, 1975–1978 ... 96

(13)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 13

1. PARA ALÉM DA REPRESENTAÇÃO: O OBJETO DA PSICANÁLISE ... 17

1.1 A PRETENSA RELAÇÃO DE OBJETO ... 22

1.2 O REAL POR UM IMPASSE DA FORMALIZAÇÃO ... 37

2. SEM TÍTULO: O OBJETO DE ARTE ... 41

2.1 TRANSGRESSÃO DAS FRONTEIRAS ... 42

2.2 A NOVA ARTE ... 48

3. NOBUYOSHI ARAKI: ENTRE O SUBLIME E O NEFANDO ... 52

3.1 A DAMA SUSPENSA POR CORDAS ... 58

3.2 TODA NUDEZ SERÁ FOTOGRAFADA ... 63

3.3 VISUALIDADE OBSCENA ... 66

4. FRANCESCA WOODMAN: FRATURA NA IMAGEM ... 72

4.1 DA IMAGEM DO CORPO AO CORPO DA IMAGEM ... 76

4.2 PERTURBAÇÃO NO CAMPO VISUAL ... 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 97

(14)

13

INTRODUÇÃO

Toda obra de arte é formada por estruturas que estabelecem um tipo de organização estética. Cada artista, como veremos no decorrer desta pesquisa, desenvolve seu próprio processo de criação e acreditamos que o estudo acerca desses processos nos permitirá chegar ao cerne do que está em jogo em seu ato criador – e disso extrair um saber. Para esse tipo de abordagem, se faz necessário ir às origens do objeto de arte, considerando informações sobre o artista, sua época, suas concepções de arte, mas, principalmente, o que ele nos diz sobre o seu fazer artístico.

Esta metodologia, a meu ver, foi inaugurada por Jacques Lacan, em seu Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960), em que desenvolve sua concepção de criação. Nesse Seminário, principalmente ao analisar a poesia cortês, mais especificamente a criação da Dama do amor cortês, e, posteriormente, ao discutir a ética da psicanálise a partir da tragédia de Antígona, Lacan aborda o objeto de arte considerando sua estrutura formal. Ele destrincha os elementos que compõem estas obras e, a partir disso, realiza uma reflexão teórica sobre a sublimação, a função do belo e a ética.

Quando nos deparamos com uma obra de arte, não precisamos encontrar um significado para ela, devemos senti-la – fruição estética que pode causar júbilo ou, até mesmo, angústia. O importante é que nos provoque algo. A questão que pulsa é: por que algumas obras de arte nos capturam? As fotografias da norte-americana Francesca Woodman (1958-1981) e do japonês Nobuyoshi Araki (1940 -) me capturaram de várias formas: pela via da beleza, da angústia e até da perplexidade.

Conheci o trabalho de Francesca Woodman quando comecei os meus estudos sobre fotografia, em 2009 e, desde então, tenho nutrido interesse em estudar sua obra, o seu processo de criação. No ano de 2017, pouco antes de iniciar este Doutorado, comecei a pensar, pela primeira vez, a obra dessa artista a partir da teoria psicanalítica. Produzi, então, em parceria com a Dr.a Sonia Borges, um texto intitulado “Francesca Woodman: uma fratura na imagem especular”, que apresentamos na XIX

(15)

14

Jornada de Formações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro e V Jornada da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro. Posteriormente, o texto foi ampliado e publicado, a convite da Dr.a Betty Fuks, na revista Trivium: Estudos Interdisciplinares, com o título “Francesca Woodman: retrato da artista quando mancha” (BORGES; LOURES, 2019). Num primeiro momento, o interesse foi de, a partir das fotografias de Francesca, fazer uma articulação entre a função do espelho e a função do quadro em Lacan. Contudo, as questões não se esgotaram. Foi isso que motivou a proposta de pesquisa para este Doutorado.

No início do ano de 2018, em uma viagem a Buenos Aires, visitei o Centro Cultural Kirchner, que, na época, abrigava o projeto de Guillermo Kuitca, uma exposição intitulada Les Visitants [Os Visitantes], que ofereceu ao público um passeio entre as diferentes estéticas de 23 artistas internacionais, dentre eles a inquietante Francesca Woodman e o excêntrico Nobuyoshi Araki. Este foi o meu primeiro contato com as fotografias de Nobuyoshi Araki.

Tanto Francesca quanto Araki representam o corpo feminino e a primeira impressão que tive ao vê-los lado a lado foi: Francesca exibe um corpo falhado, disforme, um corpo que falta à imagem; enquanto Araki apresenta o outro extremo, o corpo feminino falicizado e terrivelmente erótico.

Francesca Woodman problematiza o estatuto da presença e da ausência do objeto no campo visual. É no ponto em que o objeto sai da cena fantasística e a imagem idealizada se decompõe e retorna como estranha, não decodificada, que a negatividade vem à superfície do fotograma sob a forma de objeto. A artista parece ter encontrado nos recursos da fotografia um meio privilegiado de formalização, transformando o impossível de ser representado em fotografias do impossível.

Araki, por sua vez, articula tradição (arte erótica clássica, quimonos etc.) e pornografia, o que levou suas obras a acervos renomados em todo o mundo. O artista diz que a base do seu trabalho é a relação íntima que estabelece com as pessoas que são fotografadas por ele. Suas fotografias mais conhecidas são as que retratam mulheres nuas, muitas vezes amarradas e/ou suspensas por cordas. Araki diz buscar uma representação do sexo e da morte, conjugados.

Este estudo se iniciará com uma discussão acerca da representação, tomando a teoria da relação de objeto e o desenvolvimento da afirmação de Lacan, em seu Seminário, livro 20: mais, ainda, de que “o real é o impasse da formalização” (LACAN,

(16)

15

1972-1973/2008, p. 100). Este primeiro capítulo servirá de base teórica para todos os desenvolvimentos posteriores.

Em 2017, em minha primeira visita à Pinacoteca do Estado de São Paulo, após contemplar e fotografar as esculturas de corpos perfeitos expostas nos corredores, me deparei com uma inquietante performance em que duas pessoas vestiam uma roupa projetada para dois corpos, formando uma figura inumana. Em 2019, durante o desenvolvimento desta pesquisa, realizei um trabalho de pós-produção nas fotografias, sobrepondo estes dois universos anatômicos contraditórios. Essas fotografias serão apresentadas no decorrer do primeiro capítulo, como uma forma de ilustrar as possibilidades de ruptura na concepção clássica de representação que a arte tem propiciado.

Na sequência, abordaremos o objeto de arte, enfatizando a transgressão de fronteiras entre diferentes formas de arte, a desmaterialização do objeto artístico e as características do que viemos a chamar de Nova Arte. Buscaremos refletir sobre possíveis aproximações entre o objeto de arte e objeto da psicanálise, tal como trazer mais elementos para a análise das obras dos dois artistas em estudo.

Em seguida, abordaremos a arte de Nobuyoshi Araki, enfatizando, principalmente, a relação entre o real e o semblante e os impactos disto na estética de suas fotografias. Nobuyoshi Araki retrata a mulher que parece encontrar refúgio nos semblantes, seja pela vertente da encenação da mulher castrada, pelo sacrifício ou, até mesmo, pelo suposto masoquismo feminino. Não estaria o artista revelando, assim, a mascarada como essência do feminino, uma forma vazia de reconfiguração de si?

Por fim, tomaremos para estudo a arte de Francesca Woodman, em cujas fotografias nos permitirão adentrar nas concepções psicanalíticas sobre o corpo e sobre o olhar. Consideramos que suas fotografias subvertem a função esperada do autorretrato, na medida em que aparecem como fragilização da imagem de si. Francesca discute a dissolução da imagem do corpo próprio a partir do trabalho com o informe, corpo que ela reconstrói em experiências visuais não-narcísicas de objeto, problematizando radicalmente a articulação entre corporeidade e imagem. Poderíamos afirmar que suas fotografias desvelam certo tipo de resistência à identificação do ser falante com o organismo, ou, melhor dizendo, à imagem ideal de seu corpo?

(17)

16

De fato, as obras desses artistas colocam para nós questões as quais só teremos respostas ao analisarmos as singulares estratégias que eles utilizam para a criação de seus objetos de arte. Buscaremos, portanto, nesta pesquisa, uma reflexão psicanaliticamente orientada a respeito do fazer artístico desses fotógrafos, articulando psicanálise e arte sem dissolver as especificidades dos modos de criação empreendidos por cada um deles. Acreditamos que esta forma de abordar o objeto de arte poderá trazer contribuições tanto para a psicanálise quanto para o campo da estética.

(18)

17

1. PARA-ALÉM DA REPRESENTAÇÃO: O OBJETO DA

PSICANÁLISE

“Eu objeto: feito jato eu jogo isso ante os nossos olhos. Eu o constituo em objeto sob nosso olhar, eu o localizo ante a nós. Mas também: eu nos localizo – e questiono esse local – ante a ele. Eu exponho a coisa e nos exponho a ela. Eu a aprochego de nós. Eventualmente, eu nos reprocho por dela termos desviado o olhar. De sorte que tornar visível será sempre ao mesmo tempo objetar certo estado de coisas, quando as coisas estão somente “no estado”, ou seja, nem tão estranhas para serem vistas e interrogadas.”

(Georges Didi-Huberman)

Do renascimento até o fim do século XIX, as produções artísticas e do saber eram consideradas não apenas como construções mentais, mas representações fiéis de uma realidade que lhes preexistia. Dominantes durante muito tempo, essas convicções cessaram progressivamente, de modo que artistas, cientistas e filósofos começaram a duvidar, questionando, inclusive, o mecanismo da representação (DELACAMPAGNE, 1995).

Em 1900, Sigmund Freud, publicou a Interpretação dos Sonhos, dando início ao que Jacques Lacan viria a chamar de “trilogia do significante”, que abrange, também, a “Psicopatologia da vida cotidiana”, de 1901, e os estudos sobre os chistes (Witz), de 1905. Esses trabalhos, além de fundamentarem uma concepção de subjetividade pautada em um saber inconsciente e na relação deste com a linguagem, problematizam toda a lógica da representação.

(19)

18

Na Interpretação dos Sonhos, Freud (1900/2016) estabeleceu que o efeito de distorção produzido nos sonhos é gerado por condensação (efeito metafórico, em que várias ideias se condensam em um único elemento) e deslocamento (efeito metonímico, em que há um deslize de uma ideia para uma representação alusiva a essa ideia). Estes mecanismos de distorção, presentes não só nos sonhos, mas em todas as formações do inconsciente, estão relacionados a uma das características do inconsciente, sua mobilidade de investimentos, em que uma ideia pode ceder à outra toda a sua carga de investimento, como, também, pode apropriar-se de todo o investimento de várias outras ideias (FREUD, 1915/2006).

Freud (1915/2006) também acrescenta que as representações que transferem suas intensidades umas às outras. Quando se encontram em relações mais frouxas, são ligadas a associações equivalentes entre si, principalmente as que são baseadas na homofonia e na literalidade, produzindo o efeito humorístico que observamos nos chistes.

Há, ainda, a possibilidade de, no fluxo normal das representações, do qual importa, acima de tudo, a escolha e conservação do elemento representacional “correto”, formarem-se representações intermediárias, produzindo um efeito inédito, quando buscamos expressões linguísticas para os pensamentos pré-conscientes – é o caso dos lapsos.

Desde 1900, Freud já havia estabelecido que os processos do pensamento são em si mesmos inconscientes e só atingem sua capacidade para se tornarem conscientes através de ligação com os resíduos de percepções de palavras. Mas, se as representações de palavras se originam das percepções sensoriais, da mesma forma que as representações das coisas, caberia, então, indagarmo-nos: por que as representações das coisas não podem tornar-se conscientes por intermédio de seus próprios resíduos perceptivos?

Provavelmente, responde Freud (1915/2006, p. 207), “o pensamento prossegue em sistemas tão distantes dos resíduos perceptivos originais, que já não retêm coisa alguma das qualidades desses resíduos e, para se tornarem conscientes, precisam ser reforçados por novas qualidades”. Além disso, estando ligadas a palavras, “os investimentos podem ser dotados de qualidade mesmo quando representem apenas relações entre [representações] de objetos, sendo assim

(20)

19

incapazes de extrair qualquer qualidade das percepções.” (FREUD, 1915/2006, p. 207).

Em seu ensaio sobre as afasias, de 1891, Freud já se debruçara sobre a questão da representação. Nesse artigo, Freud estabeleceu que a palavra adquire seu significado ligando-se a uma representação do objeto – processo que se caracteriza por um complexo de associações que se formam por uma variedade de representações visuais, acústicas, táteis, cenestésicas etc.

Da filosofia aprendemos que a representação do objeto não compreende senão isto, e que a aparência de uma “coisa”, de cujas diferentes “propriedades” falam aquelas impressões sensoriais, surge apenas na medida em que no leque das impressões sensoriais obtidas por um objeto incluirmos também a possibilidade de uma longa sucessão de novas impressões na mesma cadeia associativa. (FREUD, 1891/1979, p. 71)

Freud conclui, assim, a partir de seu estudo sobre as perturbações da fala, que a representação da palavra está ligada, por suas imagens sonoras, à representação do objeto. Em suma, as representações são investimentos de traços mnêmicos – repetições da percepção –, mas não há nada que impeça o representante pulsional de, no inconsciente, encontrar novas formas de expressão. Na verdade, é justamente por estar afastado da influência da consciência que esse conteúdo pode formar representações derivadas e estabelecer ligações, havendo, assim, um “desdobramento desinibido da representação na fantasia” (FREUD, 1915/2004, p. 179).

Qualquer tipo de semelhança entre dois elementos do material inconsciente – uma semelhança entre as próprias coisas ou entre as representações de palavras – serve de oportunidade para a criação de um terceiro elemento, que é uma representação mista ou de compromisso. (FREUD, 1901/2006, p. 72)

Enquanto Freud desenvolvia sua “trilogia do significante”, rupturas também eram feitas em diversos campos do saber, impactando radicalmente o que até então estava estabelecido. No que se refere à concepção clássica de representação, a maior subversão se deu com o advento da psicanálise e, no âmbito da arte, com o modernismo.

Segundo Borges (2010, p. 58), a compreensão psicanalítica acerca da representação “implica o abandono da noção de percepção como impressão

(21)

20

sensível.” É nesse sentido que daremos continuidade a este estudo com uma reflexão sobre a relação de objeto, visando pensar a representação na criação artística a partir da teoria psicanalítica.

Lacan (1958-1959/2016), em seu Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação, adverte que existe uma confusão a propósito do próprio termo “objeto”. Há, por um lado, o objeto que se situaria na realidade material e, por outro, o objeto que se inscreve na relação do sujeito com este.

Quando falamos de relação de objeto, nos referimos à relação entre o sujeito e os objetos parciais. O objeto é sempre uma forma encarnada, devido a relação estabelecida com ele do seio, voz, olhar e fezes. Esses objetos, segundo Lacan (1966-1967/inédito) são irrepresentáveis, mesmo o seio e as fezes. Sim, o seio pode constituir um objeto erótico. Mas, em termos de representação, como defini-lo? “O que é um belo seio, por exemplo?”, questiona Lacan. Ainda que o isso seja comumente pronunciado, o que daria algum suporte ao termo “Belo seio”?.

Se há alguma coisa que o seio constitui, seria preciso para isso, como um dia um aprendiz-poeta [...] o articulou ao fim de uma de suas quadras [...] com essas palavras: “a nuvem ofuscante dos seios”; não há outro modo, me parece, senão jogar com o registro do obscuro, adicionando aí alguma coisa a mais, da ordem do reflexo, a saber do menos apreensível, pelo que ele pode ser possível de suportar, na

Vorstellung, o que é desse objeto que, bem antes, não há outro

estatuto do que podemos chamar, com toda a opacidade dos seus termos, um ponto de gozo. (LACAN, 1966-1967/inédito, lição de 25/01/1967)

Figura 1: José Maurício Loures: Sobre-posições #1 (2017-2019)

(22)

21

É com essa dificuldade de apreensão do objeto que os artistas criam, eles jogam com a impossibilidade de se representar a Coisa, “se viram” com essa impossibilidade. Borges, em referência a Heidegger, afirma que “A arte ‘deixaria ser’, ‘deixaria ver’, um algo que interesses demasiadamente discursivos e racionais nos impedem de perceber.” (BORGES, 2017, p. 8). Assim, o ato criador supõe a desconstrução da representação ordinária. O artista apreende, a sua maneira, a partir de sua fantasia, o objeto e faz disto obra de arte.

O pintor anglo-irlandês Francis Bacon, em entrevista a David Sylvester, nos traz um perfeito exemplo disto. O artista revela que, ao pintar a cabeça de alguém, percebeu que “aquilo que formava as órbitas dos olhos, do nariz, da boca, era, quando [foi] analisar, simples formas que nada tinham a ver com olhos, nariz ou boca” (BACON apud Sylvester, 2007, p. 12). Bacon diz:

[...] no dia seguinte, tentei chegar ainda mais perto do que procurava, tentei ser mais penetrante, mais profundo, e perdi complemente a imagem. [...] Está na fronteira com a abstração, mas, na verdade, nada tem a ver com ela. É uma tentativa de fazer com que a coisa figurativa atinja o sistema nervoso de uma forma mais violenta, mais penetrante. (BACON apud Sylvester, 2007, p. 12)

Figura 2: Francis Bacon: Cabeça 1 (1966)

Fonte: SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 13. Mas a tinta, indo de um contorno para outro, apesar de criar uma imagem desfigurada, fez surgir, segundo o artista, uma semelhança com a pessoa que ele estava querendo pintar.

(23)

22

1.1 A PRETENSA RELAÇÃO DE OBJETO

No ano de 2018, tive o privilégio de conhecer as obras do fotógrafo chileno Sergio Larrain (1931-2012), em sua exposição intitulada Um retângulo na mão, no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro. O fotógrafo possui um estilo marcado por composições nada óbvias: o chão ocupa, muitas vezes, a maior parte da fotografia; figuras desfocadas são colocadas em primeiro plano, enquanto a cena principal se desdobra ao fundo; há horizontes inclinados e, principalmente, pessoas em movimento, flagradas em situações inusitadas.

Figura 3: Sergio Larrain: Trafalgar Square (1958-1959)

Fonte: https://www.henricartierbresson.org/wp-content/uploads/2014/09/Sergio-Larrain_FHCB_5-e1411479306298-728x1098.jpg (Acesso em: 28/12/2019)

Não há uma preparação prévia do que vai ser fotografado. É assumida uma postura que não antecipa os fatos, simplesmente deve-se estar atento ao instante. Com suas fotografias, Larrain evidencia que o acaso pode ser mais comovente e surpreendente do que qualquer narrativa imagética planejada. As imagens que captura – e que o capturam – são acontecimentos efêmeros.

(24)

23

O artista decupa fragmentos do instante percebido, de modo que a sua máquina fotográfica opera como uma lâmina, que explora, percorre a realidade visível para, repentinamente, recortá-la, dando a ver algo da ordem do inesperado. Seu fazer fotográfico nos remete às considerações de Walter Benjamin, em seu ensaio Pequena História da Fotografia:

Percebemos em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundos em que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude, através de seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente óptico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. (BENJAMIN, 1931, p. 94)

Figura 4: Sergio Larrain: Niñas (1952)

Fonte: https://www.henricartierbresson.org/wp-content/uploads/2014/09/Sergio-Larrain_FHCB_3-728x1190.jpg (Acesso em: 28/12/2019)

(25)

24

O fotógrafo define a maneira como concebe suas imagens: “É dentro de mim próprio que procuro as fotografias quando, de câmera na mão, vou passeando o olhar pelo que está lá fora. Posso assim solidificar esse mundo de fantasmas quando acho algo que encontra ressonância dentro de mim” (LARRAIN, 2018, n.p.).

Não estaria Larrain trabalhando com esse “inconsciente óptico” de que fala Benjamin? Afinal, o que se revela em suas fotografias é o instante não percebido: aquilo que foge aos nossos olhos, mas que não escapa das lentes do fotógrafo. Para Benjamin, “a natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substituiu a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente.” (BENJAMIN, 1931, p. 94).

Seguiremos agora para o estudo acerca da relação de objeto, visando melhor entender esta complexa relação entre o artista, a maneira como percebe as coisas e as obras que cria.

A fórmula da relação de objeto, para Lacan (1958-1959/2016, p. 393), é o matema da fantasia, considerando a fantasia fundamental como sendo o que garante sua estrutura mínima ao suporte do desejo. Esta fórmula justifica o fato de Lacan se referir à relação entre sujeito e objeto como uma “pretensa relação”, pois o que $◊

a

revela é que há uma infinidade de relações possíveis entre sujeito e objeto, exceto uma, a de igualdade.

Mas o que mais nos interessa aqui é o fato de que a fantasia é como uma lente, como diz Freud em sua Interpretação dos sonhos (1900). Mas esta lente, ao contrário de possibilitar uma fiel apreensão do objeto, perturba a percepção deste, apresentando-se, como afirma Lacan (1958-1959/2016), como um tormento para o homem, chegando a degradar, desorganizar, aviltar, abalar o objeto representado.

A fantasia é um véu entre o sujeito e o mundo. Há, em cada sujeito, uma reserva de fantasia, que tende à satisfação pela ilusão, alucinação inconsciente, tal como nos ensinou Freud no “Projeto para uma psicologia científica” (1950 [1895]/2006), solidificando essas ideias no capítulo 7 da Interpretação dos sonhos (1900/2016).

Em suas “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico”, Freud (1911/2006) afirma que, com a introdução do princípio de realidade, uma forma de atividade de pensamento encontra-se separada por clivagem, permanecendo independente da prova de realidade e submetida unicamente ao princípio do prazer – ou seja, submetida à lei da redução das tensões. É à fantasia, esse “domínio que ficou

(26)

25

separado do mundo externo real na época da introdução do princípio de realidade”, que o sujeito recorre a cada vez que um obstáculo se erige em relação à satisfação pulsional (FREUD, 1924/2006, p. 208). Trata-se do enredo que constitui o núcleo que organiza toda a subjetividade.

Na fantasia, segundo Lacan, “frequentemente o sujeito é despercebido, mas ele está sempre lá, quer seja no sonho, no devaneio, em não importa quais formas mais ou menos desenvolvidas. O sujeito se situa a si mesmo como determinado pela fantasia” (LACAN, 1964/2008, p. 181). Já que o acesso ao objeto é impossível, a fantasia fundamental simula a presença do objeto, viabilizando, assim, o vínculo com o Outro.

O que Freud descobre é que as fantasias, “no final das contas, servem apenas para dissimular a atividade autoerótica” (WINTER, 2001, p. 113). O que velamos, pelo fato mesmo de velá-lo, desvelamos, pois o véu é que nos indica a presença. E o que seria isto que o véu designa? O véu designa a vida sexual da criança que fomos e que permanecemos fixados. A fantasia deve, então, criar uma barreira ao redor da sexualidade infantil. Conforme afirma Coutinho Jorge, “em todas as fantasias originárias, assim como em todas as fantasias, o denominador comum diz respeito ao enigma da sexualidade.” (COUTINHO JORGE, 2006, p. 63, grifo do autor).

Freud (1905/2006a) destaca como uma das características mais importantes da prática sexual da criança o fato de que, em um primeiro momento, esta não está dirigida a outra pessoa, mas se satisfaz no próprio corpo, é autoerótica. E observa que a sexualidade infantil apresenta uma característica fundamental, é “perversopolimorfa”, de modo que o pequeno sujeito vem a praticar todas as transgressões possíveis: se exibe e gosta de ficar olhando, ou seja, ele é exibicionista e voyeurista; se satisfaz ao chupar o dedo, por exemplo, e ao manipular a própria genitália; e pratica atividades anais e sadomasoquistas.

O que se encontra na sexualidade infantil se manifesta na idade adulta nos fetiches dos perversos, nas alucinações e delírios dos psicóticos, no inconsciente dos neuróticos e nos jogos sexuais de todos. E por que não na obra de arte?

A compreensão tradicional da sublimação como relacionada a uma “dessexualização”, considerando o desvio do alvo e do objeto sexual da pulsão em direção a objetos socialmente valorizados, é relativizada por Lacan, que, desde o seu Seminário, livro 7: A ética da psicanálise, insiste na estrutura particular do objeto na

(27)

26

sublimação. Afinal, afirmar que a pulsão pode encontrar satisfação em um alvo e em um objeto que não sejam diretamente sexuais não significa que ela seja necessariamente dessexualizada.

Após conceituar o objeto a, Lacan (1968-1968), em seu Seminário, livro 16: de um Outro ao outro, retoma o tema da sublimação, enfatizando a relação desta com o gozo, o gozo sexual. O objeto a faz cócegas dentro da Coisa e é isso “que constitui o mérito essencial de tudo o que chamamos de obra de arte”, afirma Lacan (1968-1969/2008, p. 227). Assim, em Lacan encontramos uma tríade fundamental para se pensar a sublimação: estética, ética e erótica (PORGE, 2019).

Figura 5: José Maurício Loures: Sobre-posições #2 (2017-2019)

(28)

27

Posto isso, se, num primeiro momento, a criança expressa sua sexualidade na relação consigo própria (autoerotismo), é na relação com os pais – ou com seus substitutos – que ela irá desempenhar suas primeiras relações objetais e todas essas relações serão decisivas para a expressão futura da sua sexualidade, considerando-se que a concepção de considerando-sexualidade em psicanáliconsiderando-se abarca muito mais do que o ato sexual, mas todas as relações objetais do sujeito.

A criança, inicialmente, encontra-se num momento de domínio das necessidades. Os aparelhos lhe estão assegurados e os objetos pré-formados (boca para comer, olhos para ver etc.). Contudo, no cumprimento dessas funções, há uma redução da tensão causada pela necessidade, resultando no prazer, um tipo de mais-valia, mais-de-gozar, como dirá Lacan. Quando ocorre a separação do objeto, que é inscrita no sujeito como uma perda, o mecanismo da fantasia vem assegurar a manutenção do princípio do prazer. Já que perdemos o objeto, não nos resta outra coisa a não ser ter uma relação com um objeto alucinado. O seio, as fezes, o olhar, a voz, são peças destacáveis e, contudo, fundamentalmente religadas ao corpo, e é disso que se trata na relação de objeto.

Enquanto o princípio de prazer implica em uma relação da criança com o objeto, tomando este como parte de seu próprio corpo, o princípio da realidade faz com que ela deva apreender a abster-se desse objeto. Isso, conforme aponta Lacan, fica bastante evidente na noção de objeto transicional proposta por Winnicott, que “observa que [...] é preciso que a mãe opere estando sempre ali no momento necessário, isto é, precisamente vindo colocar, no momento da alucinação delirante da criança, o objeto real que a satisfaz” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 34).

Nesse sentido, não existiria, inicialmente, nenhuma distinção entre a alucinação do seio materno – que surge, por princípio, do processo primário – e o encontro do objeto real de que se trata. Em outras palavras, a criança não teria “nenhum meio de distinguir entre o que é da ordem da satisfação fundada na alucinação do princípio, ligada ao funcionamento do processo primário, e a apreensão do real que a preenche e satisfaz efetivamente” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 34).

Quando, de tempos em tempos, a realidade não coincide com a alucinação surgida do desejo, vemos aparecer esses objetos que Winnicott chama de objetos transicionais, a partir dos quais podemos situar a dialética da alucinação e do objeto real. É aí que se situa, também, “um dos pontos mais essenciais da experiência

(29)

28

analítica, [...] a noção da falta de objeto”, que é, “a própria mola da relação do sujeito com o mundo” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 35). Afinal, o núcleo do desejo é a falta que o origina, esse resto irredutível da primeira experiência de satisfação.

A fantasia é a cena na qual o sujeito não visa ao objeto. Ela desvia o sujeito do objeto que, como sabemos, não existe e nem nunca existiu – desde o início fora alucinado. Por isso, a pulsão se presentifica na série infinita de objetos substitutivos e evidencia a impossibilidade de representação da Coisa. A pulsão precisa do objeto não para tê-lo, mas para contorná-lo. E criação do objeto de arte é bastante ilustrativa disto. Lacan (1959-1960/2008), ao abordar o “problema da sublimação”, enfatiza que todas as modalidades de arte se caracterizam por um certo modo de organização em torno do vazio da Coisa.

Para Freud (1950[1895]/2006), se tratando do deslocamento da satisfação como substituição, essas satisfações chamadas substitutivas voltam a atualizar a “verdadeira” satisfação, e, com efeito, no núcleo do desejo está o investimento alucinatório dessa lembrança. Por isso, Lacan afirma que “qualquer espécie de constituição do mundo objetal é sempre um esforço para redescobrir o objeto” (LACAN, 1954-1955/1995, p. 131). Contudo, esse investimento alucinatório é incapaz de ser mantido até o esgotamento, e, por isso, não provoca a cessação da necessidade (FREUD, 1900/2016).

Freud (1925/2006), ao desenvolver sua concepção de Verneinung, em 1925, preconiza que não só é importante ao sujeito que o objeto de satisfação possua o atributo “bom”, assim merecendo ser integrado ao seu Eu (juízo de atribuição), mas, também, que esteja no mundo externo, de modo que o sujeito possa se apossar desse objeto sempre que dele necessitar, julgando se algo existente no Eu como representação pode ser reencontrado também na percepção (juízo de existência).

Ainda, segundo Freud (1925/2006, p. 267), a antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o início, mas surge do fato de que “o pensar tem a capacidade de trazer diante da mente, mais uma vez, algo outrora percebido, reproduzindo-o como representação sem que o objetivo externo ainda tenha de estar lá”. Portanto, o objetivo primeiro e imediato do teste de realidade não seria o de encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, “mas reencontrar tal objeto, convencer-se de que ele está lá.” (FREUD, 1925/2006, p. 267).

(30)

29 Tratava-se, no julgamento de atribuição, de expulsar ou introjetar. No julgamento de existência, trata-se de atribuir ao [Eu], ou , antes, ao sujeito (é mais compreensível) uma representação a qual o seu objeto não corresponde mais – mas correspondeu numa volta atrás. O que aqui está em causa é a gênese do exterior e do interior. (HYPPOLITE, 1971, p. 54)

Podemos, então, concluir que é impossível uma representação fiel do objeto já que a percepção não é um processo puramente passivo, pois são enviadas periodicamente pequenas quantidades de investimentos no sistema de percepção, por meio dos quais prova os estímulos externos para retirar-se novamente depois de cada um de seus avanços. Assim, a percepção do objeto pode ser modificada por omissões e alterada por fusões de elementos diferentes.

É o teste de realidade que controla até onde se estendem essas deformações, exigindo e forçando a representação a sempre veicular uma falta. Assim, o teste de realidade trabalha na delimitação do buraco no simbólico, a falta fundante no campo da representação. A Coisa é irrepresentável – do objeto não há ideia nem representação –, contudo, é condição de toda representação.

Segundo Lacan (1956-1957/1995), uma nostalgia liga o sujeito ao objeto perdido, fazendo com que se exerça todo o esforço da busca e marcando, também, uma repetição impossível, já que, precisamente, este não é o mesmo objeto da primeira experiência de satisfação.

Há pouco mais de 20 anos, quando passava por um ferro-velho nos arredores do Morro da Conceição, atrás da estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, artista plástica brasileira Anna Bella Geiger encontrou no chão uma antiga gaveta de ferro enferrujada. Começou ali a sua série “Fronteiriços”, compostas de mapas contidos em gavetas, fixados em grossa camada de cera de abelha tingida com pigmentos.

Em entrevista, a artista revela:

[...] Surgia na minha frente o que eu sempre procurava, mas nunca soubera nem o que nem como era. Parecia que eu havia caminhado pelo deserto durante 20 anos [...] até encontrar, sem buscar, o contêiner ideal para abrigar o mundo. 1

(31)

30 Figura 6: Anna Bella Geiger: Tordesilhas, da série “Fronteiriços” (2014)

Fonte: https://www.pinterest.nz/pin/628111479252515142/ (Acesso em 19 jan. 2020).

Encontramos no relato da artista a fórmula enunciada por Lacan (1959-1960/2008), segundo a qual define a sublimação como elevar o objeto à dignidade de Coisa. A experiência descrita por Anna Bella nos remete imediatamente ao célebre dito de Picasso: “Eu não procuro, eu acho”. Com efeito, o objeto é por sua natureza um objeto reencontrado: que ele tenha sido perdido, é consequência disso – mas só-depois (LACAN, 1959-1960/2008). Só temos notícias desse objeto como perdido por meio desses reencontros. E, a Coisa, por ser velada, é sempre representada por outra Coisa: uma gaveta de arquivo, por exemplo.

Contudo, mesmo depois de uma experiência de reencontro, o sujeito continuaria buscando pelo objeto, e, por isso, seu desejo permanecerá deslizando. Na medida em que o objeto que se apresenta “só coincide parcialmente com aquilo que já lhe proporcionou satisfação, o sujeito se põe em busca, e repete indefinidamente sua procura até reencontrar este objeto” (LACAN, 1954-1955/1995, p. 132). Em outras palavras, “não para de engendrar objetos substitutivos” (LACAN, 1954-1955/1995, p. 132).

(32)

31 A primazia dessa dialética coloca, no centro da relação sujeito-objeto, uma tensão fundamental, que faz com que o que é procurado não seja procurado da mesma forma que o que será encontrado. É através da busca de uma satisfação passada e ultrapassada que o novo objeto é procurado, e que é encontrado e apreendido noutra parte que não no ponto onde se o procura. Existe aí uma distância fundamental, introduzida pelo elemento essencialmente conflitual incluído em toda busca do objeto. Esta é a primeira forma sob a qual, em Freud, aparece a relação de objeto. (LACAN, 1956-1957/1995, p. 13)

O objeto é aquilo que sustenta o desejo, exatamente por escapar ao sujeito, funcionando como suporte do desejo enquanto fantasiado, afinal, não se pode lidar com o desejo sem sentido, opaco e mortífero sem que se encubra ao menos um pouco o vazio que o causa. Com efeito, a fantasia, como vimos, é a cena que assegura ao sujeito uma relação com o objeto mediada por uma ficção e, por isso, mostra o objeto de forma velada – se não for velado, não dá para mostrar (LACAN, 1962-1963/2005).

Contudo, o objeto nunca está em simetria com o sujeito, já que em presença do objeto o sujeito esvanece. Na cena em que o Homem dos Ratos entra embaixo da saia da governanta, encontramos uma perfeita ilustração disso. Temos, de um lado, o sujeito em fading, apagado, o pequeno Lanzer escondido; de outro, o objeto ausente, as partes genitais de Mademoiselle Robert, que o pequeno Lanzer tateia e diz ter encontrado algo “curioso”. “Ele [o objeto] vacila completamente ao sujeito” (LACAN, 1963/1998, p. 792). Como bem observou Freud (1909/2006), o menino designava a governanta pelo seu sobrenome masculino. Se os órgãos genitais parecem “curiosos”, é porque ele não sente ali o pênis. O “curioso” é a marca da castração, de cuja relação com o objeto este último tira uma parte de seu fascínio.

Desde Freud, no que se refere ao mecanismo de funcionamento da pulsão, trata-se fundamentalmente da satisfação como substitutiva do objeto ausente. A fantasia faz tela em relação a essa perda constituinte da pulsão. Esse lugar esvaziado pela imagem, pelo objeto de gozo, o sujeito vai reencontrá-lo no movimento em que o objeto se deixa perceber. “O sujeito está em uma exclusão interna a seu objeto.” (LACAN, 1966/1998a, p. 875).

É no plano das imagens que Lacan aborda a função da tela da fantasia como lugar das representações. O sujeito está sempre construindo uma ficção visando suturar a sua própria divisão, divisão esta que é a causa de seu desejo. A materizalização do nada que está na causa do desejo se dá através de um véu, plano

(33)

32

imaginário fundamental da relação simbólica. Em seu Seminário, livro 4: a relação de objeto, Lacan afirma que:

[...] com a presença da cortina, aquilo que está mais além como falta, tende a se realizar como imagem. Sobre o véu pinta-se a ausência. Isso não é mais que a função de uma cortina qualquer. A cortina assume seu valor, seu ser e sua consistência justamente por ser aquilo sobre o que se projeta e se imagina a ausência. (LACAN, 1956-1957/1995, p. 157)

Figura 7: José Maurício Loures: Sobre-posições #3 (2017-2019)

Fonte: Arquivo próprio.

É nesse sentido que Lacan (1956-1957/1995) considera que há uma ilusão fundamental em todas as relações tecidas pelo desejo. Ali onde vemos simbolicamente o objeto de desejo, onde o supomos sob o véu, é justamente onde ele não está – presença invisível que faz com que a imagem adquira brilho fálico. “O que é amado no objeto é aquilo que falta a ele – só se dá o que não se tem” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 153).

(34)

33 Figura 8: Esquema do véu

LACAN, Jacques. (1956-1957). O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1995, p. 158.

A imagem como véu esconde a vacuidade que há por trás dela. No instante em que o véu se rasga, a nudez da imagem emerge em meio ao brilho do olhar e, como efeito dessa ruptura, o sujeito se experimenta diante do nada, já que o Eu não pode se reconhecer em sua vertente especular, sendo traído em seu desejo e confrontado com a morte.

Hoje, principalmente, encontramos na arte obras que, sob o tecido da representação, fazem fraturas, são criações que não estancam a falta e encontram-se no limite do que pode encontram-ser repreencontram-sentado. Ligeiro e Coutinho Jorge (2018, p. 16) destacam que:

[...] algumas obras chamam particularmente a atenção por parecerem estar quase inteiramente despidas do belo e unificante envelope imaginário, que nos convidaria à contemplação. Ao contrário, o nosso olhar é traído pela violência e horror que suscitam, ao revelar a face crua do objeto, o real, impossível de ser representado por imagens ou palavras, mas que ex-siste e retorna.

(35)

34 Figura 9: José Maurício Loures: Sobre-posições #4 (2017-2019)

Fonte: Arquivo próprio.

Quinet (2004, p. 99) afirma que “Para aquém da cortina temos a associação do olhar com o (- φ) da castração. A realidade visual do percepiens sustenta-se nessa cortina que vela a falta no Outro e a presença do objeto a como olhar”. E sobre o véu se instaura a relação de um mais além como captura imaginária, “fundamental em toda instauração da relação simbólica” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 159).

Em seu Seminário, livro 10: a angústia (1962-1963/2005), Lacan conceitua o objeto a. Diferentemente do objeto do conhecimento, correlato da razão, o objeto a é aquilo que faz furo, que problematiza a teoria do conhecimento. Evitando, pois, o equívoco de uma apreensão fenomenológica do objeto do desejo, Lacan o concebe não como objeto a desejar – objeto positivo, autônomo, constituído desde sempre – mas como um objeto negativo que não se presta à fenomenologia, não aparece. O objeto é externo a toda definição possível de objetividade, pois o seu campo é o da objetalidade – campo inaugurado pelo corte que o significante introduz.

É preciso conceber o objeto de que se trata em psicanálise não como um objeto visado pelo desejo, que se situa à frente do desejo, mas atrás, como sua causa

(36)

35

(LACAN, 1966/1998a). O objeto a, enquanto revestido imaginariamente, vem mascarar o fundo fundamental de angústia que marca a relação do sujeito com o mundo.

Tradicionalmente se diz que, diferente do medo, a angústia não tem objeto. Mas Lacan (1962-1963/2005) vem nos mostrar o contrário, ela “não é sem objeto”. Por não ter consistência, o objeto marca uma falta radical na estrutura do sujeito. Paradoxalmente, o objeto causa de desejo é, também, objeto da angústia.

Lacan (1962-1963/2005) nos mostra que a conjuntura da angústia está relacionada ao rompimento das significações do Outro que recobrem o desejo. E diz que a angústia não engana, aproximando a angústia da verdade, precisamente devido à proximidade da angústia com o objeto. A angústia é amarrada ao objeto e, assim, não se desloca na cadeia significante – daí a fórmula “amarração da angústia”.

Jacques-Alain Miller, em seu livro La angustia – Introdución al Seminário X de Jacques Lacan (2015), apresenta o seguinte esquema, aqui traduzido:

Figura 10: Esquema de Jacques-Alain Miller

Fonte: Arquivo próprio.

Entre gozo e desejo há duas vias possíveis, uma passa pela angústia, ou seja, o objeto a sem nenhum recobrimento imaginário, e a outra pelo amor, o objeto a revestido imaginariamente, fazendo do objeto da realidade um objeto idealizado. Se o imaginário, devido ao caráter ilusório e alienante, sempre bloqueia a verdade, é no real, o a sem véu, que podemos situar a verdade (LACAN, 1975-1976/2007). No lado da angústia, encontramos o objeto não especularizável, que se caracteriza como uma aparição, perturbação no mundo visível.

Žižek (2006), em seu documentário O guia pervertido do cinema, traz uma bela ilustração do objeto enquanto perturbação a partir do filme Pássaros, de Hitchcock. O filme termina sem uma resposta à pergunta “por que os pássaros atacam tão

(37)

36

violentamente?”. Segundo Žižek, não basta dizer que os pássaros são parte do cenário natural da realidade. Trata-se de uma irrupção explosiva: invasão súbita de uma dimensão externa que rasga em pedaços a realidade. Assim, a realidade se desintegra, perturbando o lugar onde nos situamos dentro do simbólico. O objeto não especularizável, paradoxalmente, se especulariza, dando a entrever algo do invisível (MILLER, 2015).

A angústia está sempre referida à Coisa que habita o sujeito. Trata-se de uma estrutura temporal e efêmera: os momentos da angústia são os que o sujeito se faz equivaler ao objeto. Cabe então distinguir o objeto em sua função de causa do desejo e na angústia. Na angústia, longe de estar em função de causa, o objeto está em função de identificação destituinte. Quando o objeto está em função de causa, causa de desejo, ele está oculto, velado (LACAN, 1962-1963/2005).

Por isso mesmo, como enfatiza Lacan (1975/inédito) em R.S.I., constatamos o desejo e, a partir dele, deduzimos o objeto. O objeto “não está atrás do que corremos, mas é o que nos faz correr, é o que institui o valor da dinâmica do sujeito, e dali se induz o objeto como subtraído” (SOLER, 2012, p. 48).

Também, cabe acrescentar que o objeto a pode ser situado nos três registros. No imaginário, pode ser localizado na representação do corpo: boca, anus, olhos e orelhas. No simbólico, encontra-se negativado enquanto objeto perdido, ou melhor dizendo, extraído, subtraído – “A perda do objeto em sua naturalidade é solidária da captura do ser humano pela linguagem.” (RABINOVICH, 2009, p. 105). E no real, quando toma substância corporal, considerando que o corpo não é feito só de imagem, mas é na carne que se goza.

Um belo exemplo do objeto a enquanto substância corporal encontramos no sonho da injeção de Irma, analisado por Freud em sua “Interpretação dos sonhos”.

[Sua] boca se abre com facilidade, e à direita encontro uma grande mancha branca, e noutra parte, sobre estranhas estruturas curvas que imitam de maneira evidente os cornetos nasais, vejo amplas crostas cinzas esbranquiçadas. (FREUD, 1900/2016, p. 128)

Este sonho põe em evidência o sujeito se deparando “com a experiencia de seu rasgamento, de seu isolamento com relação ao mundo”. A relação humana com o mundo, para Lacan (1954-1955/1995, p. 212) “tem algo de profundamente, inicialmente, inauguralmente lesado.”

(38)

37

A imaginarização do corpo informe no sonho dá a entrever aquilo que está para além do narcisismo, um “espetáculo medonho”, como diz Lacan (1954-1955/1995, p. 197). Nesse sonho, o núcleo real da fantasia transcende a ilusão especular, desvelando o objeto a em sua face de abjeto. Lacan, ao comentar a cena em que Freud investiga o interior da boca de Irma, diz:

Eis ai uma descoberta horrível, a carne que jamais se vê, o fundo das coisas, o avesso da face do rosto, os secretados por excelência, a carne da qual tudo sai, até mesmo o íntimo do mistério, a carne, dado que é sofredora, informe, que sua própria forma é algo que provoca angustia. (LACAN, 1954-1955/1995, p. 197)

Lacan assinala este ponto que revela algo inominável, uma revelação do “real sem nenhuma mediação possível, de um real último diante do qual as palavras se detêm e as categorias fracassam.” (RABINOVICH, 2009, p. 117). A angústia se situa justamente na borda da intercessão do corpo imaginário, “saco de buracos”, e do corpo real, substância de gozo – substâncias episódicas e múltiplas, que não são de falta: anal, oral, escópica e invocante; são substancias destituintes do sujeito na medida em que o sujeito percebe que é o que o anima.

1.2 O REAL POR UM IMPASSE DA FORMALIZAÇÃO

Em seu Seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan (1972-1973/2008, p. 99), propõe que “O real só se poderia inscrever por um impasse da formalização”. No ponto em que estamos, o que podemos fazer com essa fórmula? Lacan (1972-1973/2008) segue o seu raciocínio, trazendo a formalização matemática como índice dessa formulação.

Alain Badiou (2017), em seu livro Em busca do real perdido, desenvolve esta ideia, explicando que mesmo a aritmética básica carrega consigo algo que está para além do conceito. Isso porque, na aritmética, seja qual for a duração do cálculo finito, sempre encontraremos um número. Porém, para que seja possível sempre se chegar a um resultado em número finito, é necessário haver uma série de números sem fim. Esse infinito funcionaria de maneira oculta no interior do próprio cálculo finito. “Logo, o real da aritmética finita exige que se admita uma infinidade subjacente que funda o

(39)

38

real do cálculo ainda que como impasse de qualquer resultado possível desse mesmo cálculo, que só pode produzir números finitos.” (BADIOU, 2017, n.p.).

Em suma, “no exemplo aritmético, um infinito oculto é a condição do cálculo finito, mas ao mesmo tempo não pode ser calculado e, portanto, não pode figurar ‘em pessoa’ na formalização dentro da qual o cálculo opera” (BADIOU, 2017, n.p.). Assim, podemos entender que o real é o ponto de impossível da formalização. Em outras palavras, aquilo que a formalização torna possível “só é possível pela existência implicitamente assumida daquilo que não pode se inscrever nesse tipo de possiblidade.” (BADIOU, 2017, n.p.). Há algo da ordem do inapreensível no cerne da formalização e este inapreensível não é suprimido, mas conservado.

Disso extraímos que o real é evocado através daquilo que é impossível em determinado tipo de formalização. Se o real é o impasse da formalização, é preciso que haja um arranjo, uma forma, para que seja possível situar o que desta forma é inalcançável, o que representa um tipo de divisão nessa formalização, “becos sem saída que mostram o real acendendo ao simbólico” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 100).

Com toda a teorização a respeito da relação de objeto, entendemos que aquilo que é referido ao objeto a é o que causa o fascínio na imagem. Assim como o número infinito é o real da aritmética, o fora de campo seria o infinito próprio da representação, mas é também seu impossível, já que, por definição, o invisível nunca é capturado pela imagem.

O lugar dos objetos de desejo é o campo das representações. Lugar onde encontramos os objetos secundários que velam a obscuridade do desejo enquanto desejo puro. O objeto a, vazio, mas preenchido por suas encarnações fantasmáticas, dá à imagem “ar de presa” (LACAN, 1960/1998, p. 832). A imagem veste o objeto e seu prestígio vem disso que ela envelopa. Quando esse recobrimento falha e é possível entrever o objeto, desvela-se a angústia.

Lacan considera que a imagem envelopa/veste o objeto, e isto quer dizer que ela o dissimula, o oculta, o encobre. Cobrir para que? Para esconder, claro! Mas essa não seria talvez a melhor e a única forma de aproximação, já que o objeto, em sua dimensão real, não é da ordem do visível? Ao mesmo tempo em que esconde o objeto, o envelope fabrica a imagem.

(40)

39 Figura 11: José Maurício Loures: Sobre-posições #5 (2017-2019)

(41)

40

Desde o Seminário, livro 7: A ética da psicanálise, Lacan (1959-1960/2008), em seu desenvolvimento sobre a sublimação, enfatiza que o objeto de arte dá forma àquilo que não se deixa ver. Contudo, também nos mostra, a partir de seu comentário sobre a Dama do Amor Cortês, que, ainda assim, esse objeto carrega consigo uma opacidade.

Chegamos, assim, à relação que a arte estabelece entre o que é representável e o não-figurável. Em seu Seminário livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan (1964/2008) nos mostra que o anteparo é o lugar onde podemos manipular e mediar o olhar. Sem anteparo, não haveria arte possível. Contudo, acreditamos que ao encobrir o real, a arte é capaz de fazer com que este retorne em seu próprio encobrimento, assim, o objeto de arte tem o potencial de revelar a dualidade do objeto. Ao velar “o pior” – aquilo que não pode ser dito nem visto (LACAN, 1971-1972/2012) – o objeto de arte dá a entrever, mesmo que na bela forma, a opacidade mortificante do objeto de desejo.

A arte não cessa de evocar na representação o irrepresentável, questionando a realidade visível e denunciando a sua fragilidade. O que muitas obras revelam é, então, o logro de sua estrutura. Reconhecer o objeto como pura aparência é uma forma de não se tomar o simulacro, a ilusão, como única realidade plausível.

Por trás da tela está o objeto, o olhar, com o qual o artista joga. Sem relação com o real da Coisa, a obra perde sua força. Algumas criações artísticas dão maior visibilidade a esse vazio que suporta os objetos, revelando a incompletude constituinte destes e a relação assimétrica que os sujeitos estabelecem com eles. Esse vazio é o que há de real na representação, aquilo que está fora da cena, mas é sempre evocado, afinal, cada visível guarda também uma dobra invisível.

(42)

41

2.

SEM TÍTULO: O OBJETO DE ARTE

“A relação do artista com o tempo no qual ele se manifesta é sempre contraditória. É sempre contra as normas reinantes, normas políticas por exemplo, ou até mesmo esquemas de pensamento, é sempre contra a corrente que a arte tenta operar novamente seu milagre.”

(Jacques Lacan)

Em 2002, um artista britânico de identidade desconhecida, que assina seus trabalhos com o pseudônimo Banksy, criou um mural que retratava uma menina tentando alcançar um balão vermelho em forma de coração. Em 2016, o misterioso artista fez uma pintura que reproduzia essa imagem e, dois anos mais tarde, enviou para leilão na Sotheby's, em Londres. A pintura, que foi arrematada pelo valor de 1 milhão de euros, logo após o arremate, deslizou para fora de sua moldura, sendo parcialmente cortada em tiras por um triturador secretamente embutido na obra.

Figura 12 – Banksy: Love is in the Bin (2018)

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/10/banksy-planejava-picotar-o-quadro-menina-com-balao-todo-mas-so-cortou-metade.shtml (Acesso em: 28/12/2019)

(43)

42

A Sotheby’s anunciou que a pintura, que originalmente se chamava Girl with Balloon [Garota com balão], após a destruição, foi renomeada como Love is in the Bin [Amor aos pedaços]. Um vídeo feito pelo artista, intitulado Shredding the Girl and

Balloon – the Director’s cut2, revela a construção do mecanismo de destruição que foi

colocado no interior da moldura. Na sequência, surgem imagens do leilão, até o momento em que uma pessoa não identificada pressiona o botão de um controle remoto e começa a destruição parcial da pintura. Ao fim, pode ler-se a frase: “Nos ensaios funcionou todas as vezes”, revelando que o objetivo final do trabalho seria a destruição total da pintura.

“A performance de Banksy se transformou em um instante em história da arte mundial”, ressalta Alex Branczik, diretor da casa de leilão. E continua: “é a primeira vez que um novo trabalho artístico é criado durante um leilão [...] Banksy não destruiu uma obra de arte no leilão, ele criou uma”3. Em outro vídeo publicado por Banksy em seu Instagram, no dia seguinte ao leilão, ele cita Pablo Picasso, que afirma: “A necessidade de destruir é também uma necessidade criativa”. Essa ideia se alinha com a proposta lacaniana desenvolvida em seu Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, em que a criação estaria diretamente relacionada à pulsão de morte.

Esse episódio é ilustrativo do estranhamento que a arte pode causar quando enfatiza a experiência e adquire um aspecto questionador de seus próprios limites, se orientando para além de formas, materiais e técnicas e, sobretudo, para além da proposta contemplativa.

2.1 TRANSGRESSÃO DAS FRONTEIRAS

Hoje, nas salas e corredores dos museus e galerias de arte, nos deparamos com vídeos, desenhos pinturas, fotografias, gravuras, serigrafias, mas, também, com pregos, pedras, plásticos, livros, cartões-postais, cacos de vidro, textos, bolhas de plástico, jornais, brotos de feijão, enfim, uma disparidade de temas, técnicas e matérias. Encontramos toda a sorte de “materiais em profusão de formalizações de impossível classificação estilística ou por categorias, ou, ainda, ineficazes como

2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vxkwRNIZgdY (Acesso em: 10 jun. 2018). 3 Disponível em:

Referências

Documentos relacionados

Adotam-se como compreensão da experiência estética as emoções e sentimentos nos processos de ensinar e aprender Matemática como um saber epistêmico. Nesse viés, Freire assinala

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das

psicológicos, sociais e ambientais. Assim podemos observar que é de extrema importância a QV e a PS andarem juntas, pois não adianta ter uma meta de promoção de saúde se

Os principais resultados obtidos pelo modelo numérico foram que a implementação da metodologia baseada no risco (Cenário C) resultou numa descida média por disjuntor, de 38% no

Disto decorre que cada entidade sindical minimamente representativa deverá, num futuro próximo, escolher, em primeiro lugar, um dado mix de serviços,sejam de de natureza

continua patente a ausência de uma estratégia de desenvolvimento sustentável, o que poderá ser consequência ser tão insignificante que tal preocupação ainda não se

Neste sentido, surge o terceiro setor como meio eficaz de preenchimento da lacuna deixada pelo Estado, tanto no aspecto da educação política quanto no combate à corrupção,

Como já foi dito neste trabalho, a Lei de Improbidade Administrativa passa por uma releitura doutrinária e jurisprudencial, visando delimitar de forma precisa os tipos ímprobos,