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NOMADOLOGIA DA ARTE-REVOLTA: A MÁQUINA DE GUERRA ARTÍSTICA

psychanalyse II. Paris: Fayard, 1997, p 12 Tradução livre.

NOMADOLOGIA DA ARTE-REVOLTA: A MÁQUINA DE GUERRA ARTÍSTICA

Não há sujeitos fixos ou genéricos na arte política: a especificidade histórica, o posicionamento cultural é tudo aqui. Desse modo, reconsiderar o status da vanguarda não é desafiar sua eficácia crítica no passado, mas, ao contrário, ver como hoje ela pode ser reinscrita como resistente, como crítica no presente. – Hal Foster, Por um conceito político na arte contemporânea.53

Uma das principais questões, senão a mais fundamental, que a arte contemporânea coloca para a época presente é a de saber como a arte pode modificar a vida. Transposta para o plano político, a questão passa a ser como criar um novo mundo seguindo o exemplo da arte. Em um caso como no outro, entre a recusa completa e a aceitação total da realidade, vibra o impulso criador originário que anseia por realizar-se. No império do niilismo, o movimento da revolta arrasta consigo Eros e Thanatos, e para realizar a síntese que haverá de levar a civilização além de seus impasses, será necessário apropriar-se de suas forças para dissipar os enganos que levaram à tirania atual e criar enfim o que ainda hoje não possui nome, mas que é tão necessário.

Não se trata de ecoar um grito insensato e sem propósitos a se perder no vazio, mas para superar a confusão que domina o tempo presente, há que se extrair um pensamento coerente da imensa energia acumulada em torno da revolta, que nas artes e na política deu o tom dos últimos dois séculos. As forças titânicas alojadas no inconsciente coletivo, sejam quais forem as suas formas, dinamizam o movimento histórico, constituem o mal-estar e a vontade de mudança que marcam de forma indelével a aurora do milênio. Em um cenário de problemáticas aparentemente insolúveis, cabe ao pensamento contemporâneo lançar luzes sobre as sombras que insistem em obliterar os sentidos criadores aí latentes.

A situação não é das melhores, no entanto, um mundo que a cada dia propaga o inaceitável, por mais que queira não será capaz de conter os impulsos transformadores

53 Hal Foster, “Por um conceito do político na arte contemporânea”, in Recodificação: arte, espetáculo,

que se insurgem contra a dominação, a servidão e o conformismo, as faces mais humanas do espetáculo de horror que se instalou na história recente. Mesmo porque, se as forças da vida forem simplesmente recalcadas e reprimidas, os efeitos de retorno, imponderáveis em suas intensidades no psiquismo individual e coletivo, tornar-se-ão fatalmente devastadores.

Quando os instintos não encontram uma forma adequada de se expressar na realidade, e o desejo não converte sua energia em atos, não resta outra saída: a vida se inquieta, a revolta se inflama. Se a condição for partilhada, então, a paixão se torna coletiva, as mentes conspiram revoluções intestinas e as resistências logo se organizam. As insurgências dos últimos anos, vistas em retrospecto, são a confirmação prática de que os poderes constituídos não governam sozinhos a realidade, de que a revolta tem um poder ainda desconhecido em todas as suas consequências. Que os tiranos cometam o erro de impor o peso da morte sobre a voz dos poetas, recolham os livros, fechem os teatros e interditem os palcos, desativem os sítios eletrônicos e apreendam as ferramentas artísticas, e então, mais cedo do que tarde, o espírito da revolta retornará pelo avesso como fúria incendiária, insurreição e levante popular.

A arte oferece um excelente laboratório para a experiência da revolta catártica e estética. Na poesia, na literatura e nas artes em geral, as vanguardas sempre encontraram um canal de expansão da consciência e da sensibilidade. O acontecimento estético, porém, é muito mais do que isso. Nele, signos, gestos, sons e sentidos geram forças que, uma vez evocadas, despertam as mentes, agitam os corpos, devastam fronteiras e adentram uma realidade coletiva de outra forma difícil de acessar. Por isso as vanguardas exploraram também suas potencialidades no campo mais amplo da cultura, em suas dimensões políticas e sociais. Em certas manifestações artísticas contemporâneas, ao colocar em xeque o próprio princípio de realidade, o experimento torna-se o prenúncio de uma consciência estética e política, assim como no ritual mágico se evocam as forças do espírito elevado em cada um dos participantes para daí retirar um aprendizado a ser incorporado na existência.

Em sintonia com essa compreensão da arte, Julia Kristeva afirma que “a noção de experiência compreende o princípio de prazer e o renascimento de um sentido para o outro, que só seria possível compreender à luz da experiência-revolta”.54 A experiência da revolta que, na sua acepção subjetiva e política de transgressão da normalidade, da

54 Julia Kristeva. Sentido e contra-senso da revolta: poderes e limites da psicanálise I. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 24.

ordem, da lei, da autoridade, da tradição, deu o tom na história moderna tanto nas revoluções políticas quanto nas artes.

Não é à toa que o espetáculo das indústrias culturais desempenha há muito sua função política ao domesticar as potências artísticas. O espetáculo integrou os procedimentos puramente formais e estéticos criados pelas vanguardas e transformou a arte em puro entretenimento desligado dos problemas enfrentados pelos mesmos sujeitos que a consomem no seu dia a dia. Em vez de vozes determinadas, confiantes e criadoras, reproduzem-se em escala massiva as celebridades e seus clones ávidos por visibilidade.

No entanto, a arte que se instalou comodamente na vida cotidiana não deixou de sentir os choques, as distorções, as interferências e os distúrbios que são os efeitos de uma arte-revolta, a qual, apesar das dificuldades, continua a produzir suas valiosas rupturas libertárias no dia a dia, no espetáculo e em cada ocasião que se mostrar necessária. O combate que os Futuristas, os Dadaístas, os Surrealistas e os Situacionistas deflagraram na cultura criou as condições para a formação da máquina de guerra artística que ainda hoje se debate contra as tentativas de captura do espetáculo. Entre a violência e a sedução dos poderes, o abandono e o estado de exceção, a arte-revolta forja os laços, os valores e as obras que haverão de inspirar aqueles que nutrem em si a vontade de superação tão necessária a uma vida mais livre e plena. O espectro da revolta, que durante muito tempo foi o guardião dos sonhos utópicos, ronda às voltas na arte e na política contemporâneas, por vezes em silêncio, elaborando um sentido visionário capaz de inspirar outra vez o mundo.

Espectros da Revolta

O mundo foi transformado pela obstinação de homens e mulheres devotados a questionar e produzir conhecimento. As ciências que estão à frente dos processos civilizatórios, mercadológicos e tecnológicos há séculos surgiram de rupturas epistemológicas instauradas por mentes que se esquivaram aos poderes, quando não os combateram frontalmente em um período histórico no qual pensar era algo desafiador e muitas vezes perigoso.

A coragem de inovar no pensamento, como nas artes, no passado e no presente, tem sido a marca daqueles que recusam uma parte do mundo para afirmar uma possibilidade até então insuspeitada. A criação, considerada atividade humana por excelência, sempre adiciona algo novo à realidade, e por meio dela o mundo se transforma

desde a aurora dos tempos.

A história do pensamento e da arte moderna foi igualmente impulsionada pela vontade na direção da criação. A curiosidade, a ânsia por saber, por descobrir os segredos da natureza, o desejo de captar a beleza em uma escultura ou em uma tela, tudo o que a vontade projetou no tempo, sobre o real, contribuiu para a construção da magnífica e terrível máquina do mundo sobre a qual se debruçou Camões do alto dos montes prefigurando a visão da Terra séculos atrás.55

No entanto, as conquistas do pensamento, as inovações artísticas e as revoluções sociais que fizeram a história moderna ser o que é sofreram a influência arrebatadora da revolta como jamais acontecera, e até as figuras da loucura nas formas extremas de recusa, negação, crítica, devaneio e crueldade tiveram seu lugar na construção do mundo atual.

Concretamente, não se pode falar dos grandes acontecimentos recentes na história da humanidade sem considerar as potências da revolta que os anima ao fundo. A liberdade em si tão almejada nada mais é que a inteira positividade da revolta que os iluministas, os revolucionários e depois os artistas reafirmaram no pensamento, na práxis e nas obras que hoje se conhece.

Por isso, quando alguém se interroga sobre as relações da arte com a política, na revolta fatalmente se revela o elo que une uma dimensão à outra. A vontade de verdade, de saber, a vontade de poder, de transformar, de criar, destruir, todas elas estão relacionadas de alguma forma com o movimento da revolta, sobretudo na política e nas artes.

A revolta é compreendida por Albert Camus como uma relação do ser com o mundo, um certo movimento interior que, face à realidade, diz sim e não, para, negando uma parte, melhor afirmar a outra. Como tal, a revolta não se compraz nem na aceitação completa nem na negação absoluta e, portanto, coloca-se a tarefa de criticar a realidade sempre em função da criação, o que significa, no campo estritamente estético, produzir uma arte que expressa e exige uma modificação da realidade, e no plano político, um compromisso ético com a transformação social a fim de valorizar e respeitar cada ser vivo enquanto tal.

55 “Digamos, para simplificar, que o desconcerto entrevisto por Camões, latente nos desvãos de um mundo que todos, então, acreditavam harmonioso e concertado, foi chegando, aos poucos, à tona das obras e consciências, no decorrer desses quatro séculos, até aflorar, em largo volume, com a grande insurreição surrealista”. Carlos Felipe Moisés. O desconcerto do mundo: do renascimento ao surrealismo. São Paulo: Escrituras Editora, 2001, p. 22. Sobre a “máquina do mundo” na poesia de Camões, ver no mesmo livro o capítulo “A máquina do mundo”, p. 23ss.

É possível dizer portanto que a revolta, quando desemboca na destruição, é ilógica. Ao reclamar a unidade da condição humana, ela é força de vida, não de morte. Sua lógica profunda não é a da destruição; é a da criação. Para que continue autêntica, seu movimento não deve deixar para trás nenhum dos termos da contradição que o sustenta. Ele deve ser fiel ao sim que contém, ao mesmo tempo que a esse não isolado na revolta pelas interpretações niilistas.56

Nesse sentido, a revolta desencadeia o movimento na sensibilidade, na ação e no pensamento que, na política, projeta-se historicamente nos incessantes conflitos contra o poder ilimitado, e na arte, converte-se em fonte aparentemente inesgotável de criação. Realmente, o homem moderno tem feito a si mesmo e seu mundo inspirado pela revolta, e insatisfeito ou exasperado pela urgência de realizar-se, quando não consegue fazê-lo de imediato no campo social, quando algo além de suas forças o impede de ser o que é, sublima seu mais nobre desejo na obra artística, um dos últimos redutos para a livre expressão do espírito.

Nas artes revelam-se assim os estertores dos oprimidos, o gozo dos lascivos, a inocência dos apaixonados, a fúria dos traídos, o sonho dos visionários, enquanto se preparam e se acumulam as potências revolucionárias para a guinada no mundo. Aproveitando-se de tantas possibilidades, as vanguardas criaram as condições para a livre expressão da imaginação, do desejo e do inconsciente em termos estéticos além dos parâmetros tradicionais que capturavam as forças criadoras nas formas previamente admitidas, e conduziram a vontade criadora para o campo da ação e da prática por meio da invenção de matrizes performáticas. Eis o arcano que modelou as vanguardas artísticas do século XX apesar de suas diferentes formas de compreender o fenômeno da arte, sua função no mundo e as atitudes que encarnaram existencial e socialmente. Um dos maiores feitos das vanguardas foi reconverter as forças que a arte sublimava em termos psicológicos para o plano da ação, dotando de potência revolucionária as forças da criação.57 Assim, de expressão do espírito, a arte tornou-se canal do desejo e da ressurgência das imensas forças até então reprimidas que encontraram na revolta histórica sua forma mais atual de manifestação: a Arte-Revolta, que toma a revolta como princípio de criação, e a criação como princípio de ação.

56 Albert Camus. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 327.

57 Mario Perniola capta bem esse preceito implícito no projeto de superação da arte e sua correspondente realização entre os Situacionistas: “En vez de sublimarse en el arte, el deseo debe tender hacia la formulación de un proyecto que haga posible su realización”. Cf. “El concepto de ‘situación’”, in Los

situacionistas: história crítica de la última vanguardia del siglo XX. Acuarela & A. Machado, 2007, p.

Por isso, na história da arte moderna e contemporânea é possível identificar a atividade de uma série de indivíduos, movimentos, organizações e coletivos que se esforçaram por fazer da práxis artística um gesto político. Para uma gama considerável de artistas cujas linhagens remontam às vanguardas históricas, vale uma concepção de arte que está relacionada intrinsecamente à vida, às venturas e às vicissitudes que a existência comporta, o que exige ao lado da estética uma atitude correspondente no mundo. Uma forma de se portar, agir, ser. Uma arte, portanto, vivida intensamente como um componente existencial, criativo, rebelde, afirmativo e, como tal, político.

O artista moderno foi moldado pela conjunção de elementos advindos de dois arquétipos históricos: o alquimista e o dândi. Na genealogia apresentada por Nicolas Bourriaud, a figura típica do artista encarna a experiência da invenção de si por meio da experimentação e da ascese, bem como, a busca por um estilo de vida autônomo, despojado dos valores dominantes.58 Tanto o alquimista quanto o dândi concebem a existência como um campo aberto à experimentação, consigo e com o mundo:

O artista moderno mostra que criar não significa para ele fabricar objetos, e sim fazer avançar uma obra, mesclar produção e produto num dispositivo de existência. Unindo práxis e poiésis, ele visa a uma totalização da experiência, totalidade de que o homem foi desapossado pela civilização industrial. A arte moderna se autocritica enquanto atividade ‘separada’, em busca de uma unidade perdida.59

Durante algum tempo, esse elemento constitutivo do tipo de subjetividade artística nutriu as prerrogativas éticas, estéticas e políticas que encontraram seu canal de expressão mais radical no início do século XX, com a deflagração da guerra artística pelas vanguardas.

Um século de transformações, conflitos, rupturas, inovações e lutas intestinas no universo das artes resultou profundamente revolucionário para a livre expressão do pensamento e da sensibilidade humana.60 A arte contemporânea deve muito ao impulso

58 Nicholas Bourriaud, “Uma genealogia do artista moderno”, in Formas de vida: a arte moderna e a

invenção de si. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 39ss.

59 Nicholas Bourriaud, “O fim da arte: rumo a uma existência unificada?”, in Formas de vida: a arte

moderna e a invenção de si, p. 68.

60 “O movimento [surrealista] exerceu enorme influência sobre sucessivas gerações de artistas. Sua ênfase na coletividade e na ruptura da distinção entre o privado e o público, o artista e o espectador, voltaria à tona em outros modos de fazer arte, como, por exemplo, o situacionistmo e o movimento Fluxus. (...) Num certo sentido, toda obra de arte que toma como objeto as operações da mente ou prioriza a subjetividade pode ser vista como ‘influenciada’ pelo surrealismo. (...) O surrealismo foi um movimento internacional que espalhou sua influência mediante a imigração de seus membros e a divulgação de suas ideias. Sua rede de influência é potencialmente imensa”. Fiona Bradley, “O legado do surrealismo”, in Surrealismo. São

transgressor, crítico e revolucionário de indivíduos e grupos que se beneficiaram do que as vanguardas históricas das primeiras décadas do século XX produziram e deixaram para a posteridade.

Portanto, na hora de fazer o balanço, o que a história da revolta atribui como legado das lutas aos movimentos sociais no campo da política, no campo cultural (das visões de mundo, dos comportamentos, dos estilos e dos modos de ser, sentir, desejar, imaginar e pensar atuais) precisa reconhecer o legado das vanguardas artísticas, que se deve sobretudo ao impulso inaugural da criação nas dimensões subjetivas que ninguém jamais pode lhes negar ter aberto para o mundo político.

Afinal, se hoje o paradoxo aparentemente insolúvel colocado pela história da arte se formula nos termos “tudo pode ser arte”, sem dúvida isso se deve ao movimento da revolta que marcou igualmente as artes e a política mundial, e no interior do qual multiplicaram-se estéticas, sentidos, valores, formas diferenciadas de pensar, sentir e experimentar a vida e o mundo. Tanto que no pós-guerra, os movimentos de contracultura, o Provos, os Beatniks, os Hippies, os Punks, os ecologistas, as feministas, os movimentos negros e indígenas, juntos aos demais movimentos de experimentação e resistência que perfazem desde então as lutas libertárias, atualizaram uma vez mais a revolta mesclando os seus ideias políticos com as mais diferentes e criativas expressões estéticas.61

Foi assim que, na sua escalada histórica, o movimento da revolta conseguiu montar, com as pistas deixadas pelas vanguardas, uma autêntica máquina de guerra ao fundir os dispositivos artísticos com os dispositivos políticos, e sem que poder algum pudesse deter de todo, ainda agora, em vários recantos da Terra, uma quantidade imensa de artistas e ativistas dinamizam e dão vida às suas criações com o desejo revolucionário, passando adiante, uns aos outros, o legado de linhagens que se desdobram e constituem o assalto à cultura da arte-revolta contemporânea.62

Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 73-74. Pode-se dizer o mesmo das repercussões do dadaísmo, do futurismo e dos situacionistas, com as devidas ressalvas.

61 O Provos foi um movimento pioneiro nesse sentido contracultural. Cf. Matteo Guarnaccia. Provos:

Amsterdam e o nascimento da contracultura. São Paulo: Conrad, 2001.

62 O que aqui se conceitua como linhagens de arte-revolta, Stewart Home denomina “corrente utópica” da arte no século XX, cuja genealogia remonta às heresias medievais: “Percebendo isso, é fácil distinguir uma tradição vinda do Livre Espírito, pelos escritos de Winstanley, Coppe, Sade, Fourier, Lautréamont, Wiliam Morris, Alfrefd Jarry, atravessando o Futurismo e o Dadá – e depois o Letrismo, via Surrealismo, continuando através dos vários movimentos situacionistas, Fluxus, Mail Art, punk rock, Neoísmo e cultos anarquistas contemporâneos”. Cf. Assalto à cultura: utopia subversão guerrilha na (anti) arte do século