• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I – ANOTAÇÕES SOBRE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA

1. Fotografia e percepção pública de ciência: como a imagem contribui para a

1.2. Notas sobre a cultura científica

É flagrante que os tais elementos de criatividade mencionados anteriormente são bem-vindos para a fluidez do consumo informativo. Em reflexões semelhantes, Vogt diz que a linguagem científica, de construção tão complexa, se apresenta na forma de abstração, tal qual o próprio linguajar da natureza “uma vez que também é complexa a natureza e também [é] codificada para a nossa compreensão” (VOGT e MORALES, 2017, grifo nosso). Para escapar do extremo eruditismo científico de uma linguagem essencialmente abstrata e codificada, Vogt sugere que o sujeito da divulgação científica persiga uma tal subjetividade, um método ou um estilo que abarque elementos mais sensíveis – metáforas, figuras tanto imagéticas quanto de linguagem – capazes de amenizarem os impactos do processo de decodificação do texto científico. Eis o germe da “cultura científica”

14 “Em este sentido la divulgación es uma tarea artística em la que se combinam la sencillez, la estrutuctura, la riqueza de linguaje, la motivación, el desarrollo del conocimiento científico, su evolución, las características del pensamento científico, la capacidade para transmitir la beleza de um resultado, la capacidade para dirigirse a um público determinado, el uso del linguaje, la presentaciónn, las imágenes visuales, la sínteses visual, la reiteración, las analogias,, el contexto, todas ellas características que deben ser desarrolladas por um buen equipo de divulgación”. As omissões representadas por “(...)”, como pode ser visto no original em espanhol aqui referenciado, não prejudicam a essência da citação e foram removidas para melhor fruição.

do linguista Carlos Vogt, autor da noção que melhor se conecta com o entendimento proposto nesta pesquisa.

Para além da cultura científica, existe ainda uma significativa literatura repleta de teorias e noções que permeia o universo da divulgação científica e se propõe a pensar o campo para problematizar e sistematizar o fazer do jornalismo de ciência. Teceremos sobre elas alguns breves comentários. Conforme Fonseca e Oliveira (2015, p. 456), as noções de "alfabetização científica" e "difusão/popularização da ciência" se apoiam na ideia de que o conhecimento deve ser transmitido ao público leigo; enquanto que a expressão "percepção/compreensão pública da ciência" pressupõe existir um problema de ordem cognitiva no receptor, supostamente incapaz de compreender o que o divulgador trata de transmitir.

Tais condições não nos parecem exatamente adequadas: as primeiras ("alfabetização científica" e "difusão/popularização da ciência") por simplificarem muito o problema; e a segunda ("percepção/compreensão pública da ciência") por sugerir um déficit do entendimento do público e tratá-lo como uma massa ignorante. Ora, as lacunas e resistências sobre determinados temas, características inerentes à cultura popular, rebaterão Fonseca e Oliveira, não devem ser entendidas como ilegítimas ou ainda como espécies de problemas ou déficits; ao contrário, são condições cujas quais o divulgador de ciência precisa conhecer para então ser capaz de contornar e fazer circular o conhecimento científico por entre as camadas mais sensíveis.

Deste modo, a proposta de cultura científica esquematizada por Carlos Vogt se revela como um caminho possível e mais sofisticado para esclarecer as questões. Seu modelo de espiral (como veremos a seguir) considera um contexto que começa com a produção e difusão da ciência, evolui para o ensino da ciência e formação dos cientistas, avança para o ensino para a ciência e atinge seu ápice com a divulgação da ciência (último quadrante).

Figura 1:Espiral da Cultura Científica (Fonte: Reprodução/VOGT, 2012)

A Espiral da Cultura Científica mostra uma clara separação entre etapas de produção de ciência e formação de cientistas; e do ensino para ciência e divulgação científica. Existe ou deveria existir, na aplicação dos conceitos previstos na espiral, um exercício que exige o salto que parte do universo esotérico em direção ao ecossistema exotérico. Conforme Vogt, o grupo esotérico é formado por uma audiência composta por público restrito e é neste meio em que se configura a “produção e disseminação da ciência e do ensino de ciência e treinamento de cientistas”. Já no campo exotérico, em oposição, percebe-se a “apropriação da ciência” por uma parcela mais ampla da sociedade, conforme representado na imagem acima pelos quadrantes 3 e 4 (Figura 1).

Disse Einstein que: "Onde o mundo cessa de ser a cena de nossas esperanças e desejos pessoais, onde podemos encará-lo como seres livres, admirando, perguntando, observando, (...) entramos nos domínios da arte e da ciência" (EINSTEIN apud VOGT, 2003). E continuara: "Se [algo] é comunicado através de formas cujas conexões não são acessíveis à mente consciente, mas são reconhecidas intuitivamente como importantes, então estamos engajados na arte" (EINSTEIN apud VOGT, 2003, grifo nosso). Einstein revela nesse trecho um pensamento bastante contemporâneo sobre o que Vogt viria a chamar de "cultura científica", noção a qual nos agarramos firmemente nesta investigação uma vez que

percebemos que a junção dos termos cultura e ciência não se expressa enquanto uma dicotomia, senão como sintonia. A cada etapa percorrida em nosso trabalho, mais evidentes se mostram as conexões entre os campos da cultura e da ciência. Talvez, no futuro, à espiral da cultura científica Vogt possa vir a acrescentar a arte aos quadrantes de sua teoria como um elemento individual, visto que o germe da cultura já está implantado na divulgação.

Fundamentalmente existem distinções entre arte e ciência no que se refere aos métodos e teorias, mas, ainda conforme Vogt, persiste entre ambos os campos um denominador comum manifesto pelo interesse da criação e da geração do conhecimento "através da formulação de conceitos abstratos e ao mesmo tempo, por paradoxal que pareça, tangíveis e concretos" (VOGT, 2003). A ciência, dirá, expressa sua concretude pela demonstração e pela experiência; na arte, a expressão se dá "pela sensibilização do conceito (...) e pela vivência" (VOGT, 2003). Novamente, a designação de cultura científica em detrimento de outras expressões é capaz de expressar a sintonia existente, ainda que não evidente, que permeia ciência, tecnologia e arte no cerne do desenvolvimento humano e social.

Para que a ciência seja abarcada sob a perspectiva de uma cultura científica é preciso que antes de mais nada ela se posicione culturalmente. Nas palavras de Jean-Pierre Dupuy, “é preciso pelo menos que ela [a ciência] seja capaz de um retorno reflexivo sobre si mesma e que entre em intensa comunicação com o que ela não é. A ciência hiper-competitiva, portanto hiper-especializada, é tudo menos uma atividade cultural” (DUPUY apud JURDANT in VOGT, 2006, p. 48). O cenário que nos propõe Vogt em sua espiral se apresenta como contribuição significativa para transpor uma atividade altamente intelectual como a ciência para um ecossistema de maior acesso, com alguma coisa de popular se assim o quisermos, por fazer com que a ciência percorra os quadrantes que consideram as etapas desde sua produção até sua posterior divulgação. A adoção do termo divulgação científica não constitui automaticamente a cultura, porque o processo é marcado por por muitas reticências, desserviços, desinformações e mentiras travestidas de divulgação. Mas a divulgação legítima, de qualidade, é sem dúvidas sintomática de uma ascenção à ideia de cultura. A hiper-competitividade e a hiper- especialização relatadas por Dupuy, em trecho acima, são características que muito possivelmente irão perpetuar. Basta recorrermos a bases de indexação – pensemos na Web of Science – e teremos acesso a um número absurdo e crescente de

periódicos, cada qual voltado a sua área de interesse que não raramente se debruça sobre um pequeno pedaço de uma área do conhecimento. Esses periódicos notavelmente não produzem cultura como conhecemos; os jornalistas de ciência extraem desse arcabouço uma pequena fração que adquire ares de cultura e tornam- se finalmente acessíveis.