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CAPÍTULO II – FOTOGRAFIA: HISTÓRIA, USOS, DESDOBRAMENTOS

2. Fotografia, um apanhado para iniciados e não iniciados

2.2. Sobre os usos das fotografias

Para que possamos nos aprofundar sobre os usos conferidos às imagens científicas e suas funções capitais, vemos a necessidade de se clarear o cenário das fotografias, uma vez que se tem a rasa e incorreta percepção de que as imagens da ciência são apenas os registros de fragmentos biológicos, de nanopartículas, as microfotografias, as fotografias do espaço, da vida marítima, as fotos selvagens etc. As fotografias científicas incluem também imagens de artes e humanidades. Por exemplo: o registro de um indígena, no contexto de uma investigação antropológica, configura-se fotografia científica. Vejamos abaixo (Figura 2), como referência, o icônico registro de E. Thiesson:

Figura 2

40 As reflexões que compõem este tópico foram originalmente desenvolvidas no artigo “Fenômenos latentes: espaço, tempo e inconsciente óptico em fotografias científicas” (MEDINA, 2018). O artigo foi publicado na Revista Visuais, v. 3, n. 5, 2018. A Revista Visuais é o periódico do

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Unicamp:

https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/visuais/index. O artigo completo integra os anexos desta dissertação.

Figura 2:Native woman of Sofala (Fonte: Reprodução/E. Thiesson, Mozambique, 1845)41

E. Thiesson (seu prenome segue impreciso) foi um importante antropólogo e daguerreotipista francês encarregado dos mais famosos e estudados daguerreótipos de povos indígenas. Seu retrato da jovem moçambicana (Figura 2) viera acompanhado do comentário: "trinta anos de idade, ainda que jovem, esta mulher tem um cabelo que é quase inteiramente branco" (SCHAAF, 1997, p. 55, tradução nossa)42. A legenda, fundamental para a compreensão do que o autor nos quer mostrar, completa a importância do caráter científico dessa fotografia, que transita entre os campos da antropologia e da etnografia, se assim desejarmos expandir a reflexão ao estudo da cultura e dos hábitos.

Que a fotografia antropológica é de fundamental importância para a compreensão dos tipos, da fisionomia e dos hábitos dos povos não nos restam dúvidas. No entanto, percebemos que esses registros, ainda que abundantes, ficam extremamente restritos e segregados aos livros de história, enquanto outros motivos científicos são amplamente difundidos. Notaremos, inclusive, ao adentrarmos no objeto de estudo (Cf. Capítulo 4), que as fotografias publicadas na seção

41 Acesso em 12 de fevereiro de 2018. Disponível em

http://mythfolklore.net/3043mythfolklore/reading/africa/images/people_woman_mozambique. htm.

FOTOLAB da Revista Pesquisa FAPESP apresentam, na totalidade dos exemplares avaliados, apenas uma fotografia científica “não-convencional” (por exemplo, fotografias de fenômenos não perceptíveis a olho nu). Naturalmente, não se trata aqui de uma crítica ao que é publicado na revista, uma vez que a seção depende majoritariamente do conteúdo que tem sido produzido atualmente na academia, mas revela um curioso panorama sobre as áreas que mais recorrem às imagens na produção e divulgação do saber.

Havíamos, numa primeira versão deste texto, proposto uma classificação às imagens fotográficas em que considerávamos três categorias: utilitaristas; artísticas; e informacionais. Durante a banca de qualificação fomos alertados de que tais classificações esbarravam em problemas de ordem teórica que complicavam e, de certa forma, limitavam a potência das imagens. Desta forma, abandonamos o caráter estruturalista inerente às classificações. Inclusive, cabe observar, que ao longo do processo em que pensávamos as classificações chegamos a refletir que as categorias se misturavam: uma mesma imagem poderia pertencer às três categorias bastando para isso um deslocamento do medium43 – a ideia de

confluência acabou então se tornando predominante e evitou o prolongamento dessa questão. Convenientemente identificamos que outros autores de viés estruturalista já haviam discutido com profundidade muitas das problematizações que havíamos nos debruçado a pensar.

Superadas nessa investigação o trabalho com as classificações, segue sendo fundamental pensar o lugar das imagens de ciência. As vemos aplicadas em artigos científicos, livros escolares, apostilas técnicas, treinamentos, aulas expositivas. Podem ser utilizadas, por exemplo, em aulas de anatomia para apresentação de anomalias, no auxílio à identificação de órgãos. Nos artigos científicos, fotografias podem ser adotadas com o intuito de se comprovar determinado experimento, comunicar um feito inédito, refutar ou questionar afirmações sobre outros estudos;

43 Nessa direção, Wilder oferece uma passagem elucidativa: “Frequentemente a fotografia tem múltiplas funções em sua trajetória. Ela pode servir como um dispositivo [meio] de detecção em um experimento, ser impressa como uma ilustração e eventualmente pendurada na parede como arte” (WILDER, 2009, p. 53, grifo nosso, tradução nossa). Do original: “Often a photograph has multiple functions in its lifetime. It might begin as a detection device in an experiment, be printed as an illustration and eventually be hung on the wall as art”. Reconhecemos, portanto, que nossa visão anteriormente estava de certa forma muito limitada ao colocar as imagens em caixas de tipos.

enfim, comunicar de maneira visual um dado experimento. Nos livros escolares, assim como nos artigos, mas numa linguagem menos hermética, as imagens fornecem informações adicionais aos leitores que podem complementar o raciocínio a partir do visionamento das imagens.

As imagens científicas também têm recebido ampla atenção em iniciativas de circulação dessas fotografias em mostras e premiações. Muitas fotografias científicas possuem uma plasticidade admirável – voltaremos a isso no Capítulo 344

–, sendo elas mesmas, por vezes, incorporadas aos acervos de museus – as fotografias de Thiesson, por exemplo, já transitaram pelas coleções de George Eastman Kodak, nos EUA, e por museus de Paris. Há de pontuarmos ainda a significativa quantidade de museus dedicados exclusivamente a motivos científicos, como aqueles de história natural e os de ciência propriamente ditos, espaços que mesclam, entre itens diversos e recursos audiovisuais (filmes, sons, animações), também fotografias e ilustrações.

44 O primeiro tópico do capítulo 3 nos ajuda a elucidar um pouco essa questão: “Dos usos documentais e utilitários do século XIX para a arte, notamos que as fotografias de ciência são cada vez mais artísticas e ao mesmo tempo, as produções artísticas são cada vez mais tecnológicas (portanto científicas)” (P. 72).

Figura 3

Figura 3: Imagem produzida a partir de técnica conhecida como micrografia de luz polarizada (Fonte: Reprodução/David Linstead/Wellcome Image Awards)45

Finalmente, existe a perspectiva da imagem e sua presença na imprensa (jornais, revistas e sites de notícia). No campo jornalístico, a imagem é recurso primordial e indissociável: a fotografia informa, põe em dúvida, denuncia, comunica, ensina. Mas é na imprensa, também, que as fotografias correm o maior risco de deturpação, manipulação e subordinação. Aliada aos textos que as acompanham, as imagens podem ganhar significados verossímeis, mas igualmente falsos. Voltaremos a essa estranha relação de falsidade versus verdade mais adiante.

45 A imagem apresenta fragmento de pele de gato revelando pelos, bigodes (ambos representados pela cor amarela, sendo o bigode o mais grosso) e vasos sanguíneos (preto). A fonte desta imagem revela que “os vasos sanguíneos foram injetados com corante vermelho de carmim (reproduzido em preto) para permitir a visualização dos vasos na amostra biológica”. O mesmo texto explica que a imagem final é uma composição de outras 44 imagens individuais que geraram uma figura com 12 mm de largura. Disponível em http://www.wellcomeimageawards.org/2017/cat-skin-and- blood-supply. Acesso em 7 de outubro de 2017.

Domènech46 (2008), ao tratar da imagem na imprensa, sugere que o primeiro valor de uma fotografia num jornal é, obviamente, o informativo – mas este não é seu único valor. Na perspectiva da imprensa a imagem tem a função de comunicar algo, atestar que determinado fato aconteceu. Mas às mesmas fotografias de caráter informativo podem ser atribuídos outros valores que afloram também questões de natureza estética (Figura 3), ou seja: uma fotografia publicada num jornal, no contexto de uma reportagem e não de uma publicidade (dado que a natureza do anúncio recorre quase que majoritariamente a uma comunicação mais impactante do ponto de vista visual, portanto estético), pode muito bem se apresentar com uma plasticidade tal que seu valor enquanto notícia pode vir a ser posto em segundo plano. Eis aqui novamente a questão da confluência.

Da mesma maneira, prossegue, “na pintura (...) o fator primordial é o fator estético, mas imediatamente por trás dele pode estar o fator informativo, se a pintura for realista” (DOMÈNECH, 2008, p. 32, tradução nossa)47. Em linhas gerais, entendemos que uma fotografia de caráter informativo pode também ter atributos estéticos que permitam seu acesso a categoria artística e o inverso também é verdadeiro. É possível ainda supor que as fotografias consigam transitar entre mais de uma área48, dado que uma mesma imagem que informa pode despertar no observador reações de ordem puramente estética; ao mesmo tempo, uma imagem considerada artística pode ainda ser posta à prova em contextos mais utilitários, como num jornal ou num livro didático, servindo assim, a diferentes públicos e propósitos, transitando entre circuitos de difusão diversos sem que nada seja alterado na fotografia, senão seu espaço de fruição.